Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de março de 2011

Opinião D. Dinis (III)

É com muita satisfação e, sim, também orgulho que chamo a atenção para a opinião da Paula, uma das participantes no blogue Destante e que tem igualmente o seu próprio, ...viajar pela leitura.... Talvez não haja nada melhor para um/a escritor/a do que constatar que o/a leitor/a entendeu exactamente aquilo que se pretendia transmitir. Pelo menos, é assim que eu vejo as coisas. Quando escrevo, não o faço só para mim, gosto de partilhar a minha visão daquilo que observo, vivo, leio e pesquiso.

Aqui, algumas passagens da opinião da Paula, publicada nos dois blogues mencionados:

A interpretação do amor entre Dinis e Isabel é conseguida de forma brilhante por Cristina Torrão (...) Dinis, um homem apaixonado mas que nunca conseguiu adequar o seu carácter à santidade da esposa (...) era um homem que gostava dos prazeres mundanos. Mas isso não o impediu de nutrir, até à hora da morte uma enorme paixão pela sua rainha, que ele admirava acima de tudo.

A rainha D. Isabel é apresentada neste livro de forma encantadora: é enternecedor o amor que ela sentia pelo povo, desde o momento em que chegou a Portugal, com apenas 12 anos.

Na parte final do seu reinado, D. Dinis confronta-se com o limite precário entre a autoridade e a arrogância. Exagerando no seu papel de justiceiro, o Rei vê-se confrontado com a oposição do próprio herdeiro do trono, dando ao livro um final verdadeiramente emocionante.

Um romance histórico de excelente qualidade literária, a merecer maior divulgação.

A Nossa Criança Interior

Tentei não fazer nada na minha vida que envergonhasse a criança que fui.

Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei de mão dada, com essa criança que fui.

Recebi, há tempos, um email com citações de José Saramago, entre elas, estas duas frases. Sensibilizaram-me muito, pois vão de encontro ao conteúdo de dois livros que modificaram bastante a minha vida e que, infelizmente, não estão traduzidos em português.

Um deles, da psicóloga americana Erika C. Chopich, tem, como título original, Healing Your Aloneness, mas eu, por acaso, gosto mais do título alemão: Aussöhnung mit dem inneren Kind, que quer dizer algo como: Fazer as Pazes com a Criança Interior. Porque é disso mesmo que ele trata.




Erika C. Chopich desafia-nos a descobrirmos a nossa Criança Interior. Através de técnicas interessantes, ela ensina-nos a falar com a criança que nós fomos e a fazer por ela aquilo que ninguém fez, fosse por ignorância, pelas circunstâncias da vida, etc. Não está em causa culpar os pais pelos nossos falhanços ou problemas. Felizmente, a maior parte dos pais fez e faz o melhor que sabe e pode. O que está em causa é corrigir erros que acabam por nos marcar durante toda a vida. O objectivo não é atirar as culpas da nossa infelicidade ao que sofremos na infância, mas, sim, descobrir o que correu mal e tentar repará-lo.

Dou um exemplo:
Façamos uma lista dos nossos defeitos. A lista que se segue serve apenas para dar ideias. Lembrem-se de que farão a lista sozinhos, por isso, sejam sinceros e digam o que pensam de vós próprios (os homens escrevem os adjectivos/substantivos no masculino, claro):

- sou tímida
- sou medrosa
- sou feia
- não sou suficientemente inteligente
- sou desajeitada
- não sou criativa
- sou desinteressante
- sou egoísta
- sou distraída
- sou triste
- tendo a depressões
- sou chata
- sou preguiçosa, etc., etc.

Agora, peguemos numa fotografia nossa dos tempos de criança. Olhemos para essa criança, respiremos fundo e perguntemo-nos o que vemos, usando a nossa lista de defeitos. Vemos uma criança feia, medrosa, desajeitada, chata, sem criatividade, triste, egoísta, desinteressante, preguiçosa, etc.? Vai constatar que responde "não" a quase todas as perguntas, talvez a todas!



Daqui


Há quem diga que se trata de um exercício inofensivo, que não leva a lado nenhum. Mas, se assim é, porque se revela tão doloroso para muitos de nós? Aliás, quanto mais doloroso se revelar, mais necessidade há de o fazer, porque descobrimos assim o nosso verdadeiro ser, aquilo que verdadeiramente somos, ou éramos, antes de interiorizarmos muitas das coisas que nos disseram e que são falsas.

Depois de saber a verdade sobre si, pegue, de vez em quando, na fotografia (principalmente, quando se sentir triste, ou em baixo, ou tenha uma tarefa difícil pela frente) e diga à criança aquilo que ela realmente é: tu és bonita, tu és alegre, criativa, enérgica, curiosa, meiga, corajosa, etc., etc. E também ajuda muito dizer: eu adoro-te, ou eu amo-te! Para usar uma expressão alemã: funciona como um bálsamo para a alma!

Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei de mão dada, com essa criança que fui.

Ao ler esta frase, fiquei com a impressão de que Saramago teve, de uma maneira ou de outra, contacto com este tipo de terapia/teoria. E, com esta convicção, a meu ver, ele conseguiu diminuir o medo que sentia da morte. Porque, estando em sintonia com a "nossa criança", nunca nos sentimos sozinhos. Erika C. Chopich aconselha a estabelecer uma relação íntima com a Criança Interior, se possível, dialogar com ela todos os dias, perguntar-lhe, por exemplo, se está triste, o que lhe apetece fazer, ou, mesmo, se gosta das pessoas com quem lidamos. As respostas podem ser surpreendentes. E ajudam-nos a tomar as decisões certas, o que me leva à outra frase de Saramago:

Tentei não fazer nada na minha vida que envergonhasse a criança que fui.

Termino este post com uma frase do outro livro, Das innere Kind umarmen (Abraçar a Criança Interior), da alemã Kim-Anne Jannes:

Devemos tratar de nós próprios como, em criança, desejaríamos que os nossos pais nos tratassem.

26 de março de 2011

Batalha de Ourique V - A Vitória

Com os almorávidas desgastados e assustados com o poder de Ibn Errik (assim denominavam Afonso Henriques), o comandante Ibn 'Umar só viu uma possibilidade de dar a volta à situação: acabar com o próprio rei português.


Mas Ibn’Umar reagiu! Começou a juntar cavaleiros à sua volta, com um único intuito: acabar com o próprio Ibn Errik. O comandante almorávida, que não acreditava em “golpes de magia”, cedo notou que o soberano era a fonte da força dos seus homens. Aniquilando Ibn Errik, o exército português soçobraria!
Com a cota de malha cheia de sangue dos adversários, Afonso manejava a sua espada como se o cansaço lhe fosse um fenómeno desconhecido. Nesta febre de matança, não se apercebeu das movimentações de Ibn’Umar. E o almorávida aproximou-se perigosamente dele.
Ao ouvir berros, Afonso viu três cavaleiros, entre eles Mendo Moniz, passarem a seu lado a grande velocidade, de espada no ar e gritando como possessos, precipitando-se sobre o grupo dos sarracenos. Logo atrás vinham Lourenço, o Sousão e o Braganção com mais quatro. Mas, para os três primeiros, esta ajuda chegou tarde demais, Afonso viu Mendo Moniz agonizando em cima da sua montada, com uma flecha espetada na barriga. Não tardou a cair por terra.
No rosto do irmão Egas Moniz desenhava-se o desgosto e o horror e o recém-aclamado rei reagiu impulsivo. Depois de murmurar: “Não me abandoneis, meu pai”, avançou, de espada em punho, ao encontro de Ibn’Umar. Porém, o Espadeiro atravessou-se-lhe no caminho, berrando:
- Quereis que os portugueses percam o seu rei, no próprio dia em que o aclamaram? Mantende-vos ao lado de meu pai, que não está mais em condições de combater! Eu tudo farei para vos proteger aos dois.
Com a ajuda do meio-irmão Soeiro e do Sousão, o Espadeiro organizou uma nova guarda de cavaleiros à volta de Afonso e Egas Moniz e conseguiu afastá-los do perigo. Faltava Fernando Mendes, o Braganção, que Afonso já não via em lado nenhum. Em vez disso, viu a fúria nos olhos de Ibn’Umar, antes de este abandonar o campo de batalha, ao notar que não tinha hipóteses de aniquilar Ibn Errik com as próprias mãos.


Batalha de Ourique


 O exército português tinha sofrido muitas baixas e o cerco montado à volta dos almorávidas apresentava muitas brechas. Mas a batalha estava ganha. Os mouros sobreviventes batiam em retirada, tentando salvar a pele. Logo se iniciaram as perseguições e o saque do acampamento inimigo. Ibn’Umar, porém, logrou escapar à ferocidade dos guerreiros portugueses.

Fizeram-se ao caminho de regresso, atravessaram o Tejo, passaram em Leiria. E, em todo o lado, contavam como tinham ganho a batalha de Ourique, a 25 de Julho daquele ano de 1139, contra um exército três vezes maior do que o deles, comandado por cinco reis mouros.
Afonso fez uma entrada triunfal em Coimbra, não havia memória de tantas riquezas e tantos mouros cativos juntos. Davam-se vivas a el-rei de Portugal e dizia-se que Jesus Cristo lhe aparecera na noite anterior à batalha, a fim de lhe prometer a vitória e dotar os portugueses de força divina.
           O reencontro com a sua amada Châmoa Gomes não foi a única alegria que Afonso sentiu ao chegar à alcáçova. Deparou com D. João Peculiar, acabado de regressar de Roma, onde assistira ao Concílio de Latrão, presidido por Inocêncio II. O novo arcebispo de Braga, além de ter aprofundado as suas relações com o cardeal Guido de Vico e o cisterciense Bernardo de Claraval, recebera, das mãos do Papa, o pálio: a insígnia da sua dignidade arquiepiscopal.


Cinco escudetes dispostos em forma de cruz


 Depois da aclamação em Ourique, Afonso Henriques não mais deixou de usar o título de rei. Estava aberto o caminho para o reconhecimento oficial do reino, para o qual, aliás, D. João Peculiar, o arcebispo de Braga, muito contribuiu. O Prof. José Mattoso diz-nos mesmo que Afonso Henriques não teria conseguido alcançar os seus objectivos sem a preciosa ajuda desse prelado. Se Afonso Henriques representava a demonstração de poder e força, D. João Peculiar era a astúcia em pessoa e um excelente diplomata.
 

24 de março de 2011

Batalha de Ourique IV - O Combate

José Filipe Photo

Na manhã de 25 de Julho de 1139, Afonso Henriques tinha, pela frente, um exército muçulmano muito maior do que o seu. Por outro lado, sabia que o seu futuro como rei de Portugal dependia da vitória. Segundo Miguel Sanches de Baêna (Grandes Enigmas da História de Portugal - Vol. I, Ésquilo 2008) a sua estratégia baseou-se em mandar à frente os cavaleiros vilãos dos concelhos portugueses, a fim de irem desgastando os lançadores de dardos e flechas muçulmanos. Embora não tão bem armados como a cavalaria pesada dos barões nortenhos, os cavaleiros vilãos eram mais leves e destros.


Afonso adiou o mais possível o início das hostilidades, esperando que aquela guerra de nervos desgastasse também o inimigo. Quando finalmente mandou os cavaleiros vilãos avançar, estes precipitaram-se em direcção à infantaria almorávida, que começou a lançar os seus dardos, acompanhados de nuvens de flechas e virotes. Mas também os cavaleiros vilãos disparavam os seus arcos, a galope, ganhando assim as suas flechas mais velocidade. E, ao chegarem à linha de alcance dos projécteis mouros, fizeram meia-volta, com grande rapidez, e recuaram.
Antes de chegarem ao local onde se encontrava o príncipe com os seus cavaleiros, tornaram a mudar de direcção e a repetir o ataque anterior. Afonso notava como esta ofensiva na base do ataca/recua desgastava a infantaria almorávida, provocando grandes baixas e surpreendendo Ibn’Umar e os seus comandantes.

Claro que também a cavalaria pesada dos barões do norte entrou em acção, porém, numa altura em que as tropas muçulmanas já estariam desgastadas e sofrido grandes baixas. O comandante almorávida Ibn 'Umar tentou dar a volta à situação, mas Afonso Henriques possuía outros trunfos. Aqui, permiti-me uma liberdade, a fim de destacar os Templários, Ordem de Cavalaria sempre muito ligada ao nosso primeiro rei. Fizeram a sua aparição, quando os muçulmanos já não contavam com mais ninguém. Estes lembravam ainda a estranha cerimónia, de que se tinham apercebido, antes do início da batalha, ou seja, a aclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal:

            Afonso fez então uso do ardil que reservara para o fim. Os Templários, até aí despercebidos pelos mouros, avançaram a toda a força, cercando o exército inimigo, antes que este tivesse tempo de recuar. As hostes sarracenas, vendo-se rodeadas pelos cavaleiros da cruz, que pareciam surgir do nada, começaram a desesperar. A verdade é que muitos dos almorávidas tinham avançado para a batalha já assustados. A estranha cerimónia que tinham notado no cimo do outeiro do acampamento cristão, aos primeiros raios de sol, tinha-os posto nervosos. Logo correra pelo seu acampamento o rumor de que Ibn Errik, que muitos consideravam ser o próprio diabo, invocava forças e espíritos obscuros.


Combate


            E aqueles cavaleiros da cruz, surgidos de repente, eram a prova do “golpe de magia” daquele demónio. Assim encurralados, em pânico, os almorávidas, embora em maior número, tornaram-se presa fácil para os cristãos. Faltava-lhes a força para aguentarem os embates das armas contra os seus escudos redondos e os portugueses, que pareciam realmente dotados de forças sobrenaturais, serviam-se dos seus machados e das suas maças, decepavam braços e mãos, esmagavam crânios e ombros. Cercados por todos os lados, os almorávidas e as suas montadas agonizavam, manchando de sangue a terra dos campos de Ourique. Afonso e os seus homens não conheciam perdão, só parariam à morte do último mouro.

22 de março de 2011

Batalha de Ourique III - O Combate

Que a Batalha de Ourique se deu a 25 de Julho de 1139 e que as tropas portuguesas, lideradas por Afonso Henriques, aclamado rei nesse dia, embora em menor número, venceram a peleja, parece não oferecer margem para dúvidas. Porém, e para variar, pouco se sabe da estratégia usada e de como decorreu o combate, pois não nos chegou nenhuma descrição pormenorizada.

Eu segui a versão de Miguel Sanches de Baêna, explanada nos Grandes Enigmas da História de Portugal - Vol. I, Ésquilo 2008.





Embora baseadas nessa versão, as citações que se seguem são do meu romance:


O cavaleiro cristão, com o seu armamento pesado e o forte cavalo normando, introduzido na Hispânia pelos francos, montava à brida, com loros compridos, as pernas esticadas para a frente e a lança firme, ou sobre mão, a fim de aguentar impactos e, ao mesmo tempo, apoiar-se na carga de grande violência.
Mas o exército de Ibn’Umar era quase três vezes maior do que o dele, não seria fácil destruir a sua formação, por mais demolidora que a carga fosse. Além disso, os mouros do Andalus tinham desenvolvido estratégias capazes de quebrar a violência de tais impactos. Os seus exímios lançadores de dardos e os não menos habilidosos archeiros posicionavam-se na primeira linha. Nuvens de flechas flagelavam a cavalaria cristã, mantendo-a à distância, e, assim que esta mostrava sinais de desgaste, a infantaria muçulmana criava intervalos na sua formação, a fim de deixar passar a sua cavalaria, que caía então sobre os cristãos desorganizados.
A leveza dos cavaleiros almorávidas revelava-se vantajosa neste tipo de táctica. Montavam à gineta, com loros curtos e ferro de boca em bridão, tirando partido da flexibilidade e da destreza dos seus cavalos árabes. Embora também usassem cotas de malha, os chamados lorigões, os seus escudos redondos eram mais pequenos e mais leves do que os oblongos dos cristãos, apelidados de cometa. Atacavam, fugiam, voltavam a atacar, em manobras que o cavaleiro pesado não conseguia acompanhar. Além disso, esgrimiam os dardos curtos, as espadas e os sabres com grande destreza.

Terras de Santiago


Temos, assim, de um lado, cavaleiros pesados, com mais força de impacto, e, do outro, cavaleiros leves, com mais poder de manobra. Os cavaleiros pesados cristãos europeus correspondiam à nobreza, mas, em Portugal, existia outro tipo: os cavaleiros vilãos. Tratava-se de proprietários de terras com algumas posses, que lhes permitiam sustentar cavalo e comprar armamento. Estavam organizados em concelhos, territórios que não pertenciam a nenhum senhor nobre, e que tinham o seu centro na vila (daí, o nome de "vilãos"). Não raro, eram vistos com desprezo pelos nobres, por andarem mal armados. Porém, por isso mesmo, eram mais leves e destros. Além disso, estavam habituados a fossados em terras de mouros e a combates de fronteira, ou seja, conheciam as formas de luta dos muçulmanos.

Segundo Miguel Sanches de Baêna, em Ourique, Afonso Henriques terá apostado na destreza e na experiência dos seus cavaleiros vilãos, embora tal provocasse o desagrado dos seus barões:


            Afonso acrescentou:
            - Os cavaleiros vilãos de Coimbra e dos outros concelhos formam uma cavalaria bem mais ligeira do que nós.
            Olhavam-no siderado. Fernando Mendes, o Braganção, não se conteve:
- Pudera! Faltam-lhes os recursos, andam mal armados e mal amanhados. Muitos deles nem sequer têm lorigão!
O príncipe conhecia o desprezo com que a nobreza nortenha tratava os cavaleiros sem pergaminhos. Mas ele, que lhes admirava a coragem e a astúcia, ripostou:
- Aprenderam as técnicas de construção dos arcos e das bestas dos infiéis e treinaram o seu uso a cavalo. Também as suas montadas dispõem de grande poder de manobra, são o resultado de cruzamentos com as raças árabes. É desses archeiros velozes a cavalo que nós precisamos, para dar cabo da infantaria de Ibn’Umar!

19 de março de 2011

Batalha de Ourique II - A Aclamação

etc...


O futuro do nosso primeiro rei jogou-se na Batalha de Ourique, atrevo-me mesmo a dizer que o "verdadeiro" Afonso Henriques, como hoje o conhecemos, nasceu naquele dia. Foi a partir de Ourique que começaram a cursar os rumores sobre a sua "força sobrenatural", entre os muçulmanos hispânicos. O que me leva a concluir que a sua aclamação de rei não se deu por acaso, terá sido uma manobra astuta, o que aliás confirma que muito do seu sucesso se baseou nas suas inteligência e astúcia, não só na força bruta.

Diz-nos a lenda que o exército inimigo era comandado por cinco reis mouros. Mais uma vez, deparamo-nos com dificuldades de interpretação. O império almorávida, que regia sobre o al-andalus, encontrava-se em decadência, ameaçado pelos almóadas. Muitos governadores de cidades consideravam-se independentes do poder central, formavam os chamados reinos taifas e intitulavam-se de reis, embora estivessem longe de possuir o poder de um verdadeiro monarca.

De qualquer maneira, parece não haver dúvidas de que o exército mouro era muito maior do que o de Afonso Henriques, mais do dobro, talvez o triplo. Eu aproveitei a lenda:


Ao cair da noite, o príncipe estava reunido com os seus comandantes, quando os espiões moçárabes regressaram. Os homens apresentaram-se tão hesitantes, que ele perguntou:
            - Não conseguistes misturar-vos com os soldados mouros?
            - Conseguimos D. Afonso... Mas aquilo que ouvimos, enche-nos de medo. Ibn’Umar, rei de Granada e de Córdova, veio em pessoa reunir as hostes que restavam em Badajoz, Évora, Beja e Silves. Já para não falar dos reforços de além-mar. Entretanto, até se lhe juntou Abu Zakariya, o rei de Santarém. O que faz deles cinco reis juntos!
            Os senhores entreolharam-se siderados. Afonso retorquiu impassível:
            - De que tamanho é o exército de Ibn’Umar?
            - Mais de cinco mil homens.
Os barões desataram num burburinho inquieto. Afonso calou-os com um gesto e fez sinal ao espião para que continuasse:
- Cortam-nos o caminho até ao Guadiana. Ibn’Umar tomou providências para que a zona entre Beja e o rio fosse igualmente vigiada. Diz-se que ele pretende acabar com Ibn Errik o mais depressa possível, pois anseia partir para Aurélia com os reforços, a fim de fazer frente ao imperador.


A lenda diz igualmente que Jesus Cristo terá surgido a Afonso Henriques, na noite anterior à batalha, e lhe prometeu a vitória. Talvez este aspecto sirva para explicar como é que homens assustados e em muito menor número do que o inimigo conseguiram vencer a peleja. No meu livro, Cristo não aparece ao nosso primeiro rei, mas este não deixa de receber "inspiração divina". Não revelo aqui, porém, qual, há-de haver razão para que queiram ler o romance ;-)


Terras de Santiago


O que parece não oferecer qualquer dúvida é o facto de Afonso Henriques ter sido aclamado rei pelas suas hostes, naquela manhã. O que terá funcionado a nível psicológico. Apercebendo-se de que os seus homens receavam o numeroso exército inimigo, Afonso Henriques, consciente de que naquela batalha se jogava o tudo e o nada, terá apostado na força psicológica, através de um ritual, pondo em prática aquilo que já muitos desejavam: a transformação do condado em reino e a sua aclamação como rei de Portugal.

  
Os primeiros raios de sol iluminavam o cimo do outeiro, onde se tinham juntado todos os guerreiros, a fim de assistirem à cerimónia, naquela manhã de 25 de Julho de 1139, dia de Santiago Mata-Mouros. Afonso Henriques, já armado para a batalha, ostentava o seu pavês, o escudo que usava em cerimónias solenes, adornado com as suas armas: escudetes azuis em forma de cruz. Deu-o para as mãos de Egas Moniz, que o pousou no chão. Afonso pôs-se então em cima do pavês e desembainhou a sua espada. Assim foi erguido, por vários dos seus cavaleiros.
O hábito de aclamação de um rei em cima do seu escudo era um antigo costume visigótico, uma aclamação guerreira que dispensava a coroação litúrgica. E quando os soldados o viram a ser erguido sobre o pavês, de espada em punho, jubilaram:
- Viva el-rei D. Afonso de Portugal!
Afonso pediu silêncio e falou-lhes:
            - Nada temei, bravos guerreiros! Somos menos do que o inimigo, mas a vitória está-nos garantida. - A sua voz, já de si poderosa, troava cada vez mais forte: - Porque para esta nossa primeira batalha contra os infiéis, sem ajudas, seja de quem for, a protecção divina foi-me pessoalmente garantida!
            Já nenhum dos soldados duvidava que a força daquela voz vinha directamente dos céus. Afonso bradava, sem que se notasse que fizesse pausas para respirar:
            - O povo de Portucale, ou Portugal, foi, é e será sempre capaz de lutar sozinho pelos seus interesses. Aqui vos prometo, bravos guerreiros de Portugal: tudo aquilo que viermos a conquistar à mourama, há-de pertencer só a nós! Nada entregaremos de bandeja ao imperador Afonso VII!
            Os homens responderam em uníssono, como se um maestro os dirigisse:
- Viva el-rei D. Afonso de Portugal!

17 de março de 2011

Antonio Skármeta

Foto El País

O autor de O Carteiro de Pablo Neruda, o chileno Antonio Skármeta, venceu, há dias, a quarta edição do Prémio Ibero-americano Planeta-Casa da América, com o livro Los días del arcoirisA narrativa remete para as eleições de 1998, quando os chilenos tentavam contrariar a manutenção de Pinochet no poder.

Ainda não li Skármeta, vi o filme baseado n' O Carteiro de Pablo Neruda, que tanto sucesso teve em Portugal. Gostei e claro que também me comovi. O que me levou, no entanto, a escrever este post, foi uma entrevista publicada na edição de Dezembro passado da revista Os Meus Livros (Nº 93; págs. 25/26). Na altura, marquei o artigo, mas acabei por me esquecer de o mencionar aqui. Agora, ao ler a notícia do Prémio ganho por este autor, fui procurá-lo, pois queria partilhar algumas opiniões de Skármeta, com as quais concordo inteiramente (destaques meus):

Quando era jovem, encenei teatro na universidade (...) E algumas vezes desempenhava papéis secundários. Essa é uma grande escola para um escritor: estar com uma personagem junto a outras personagens, e não acima delas. Partilhar a cena com os teus protagonistas cria uma sensação de intimidade, naturalidade e credibilidade no leitor.

As pessoas que têm grandes certezas espantam-me sempre um pouco.

O excesso de aspiração à genialidade produz apenas páginas em branco ou novelas pretensiosas.

Os verdadeiros artistas têm, por vezes, que abrir caminho entre o arvoredo cerrado do pedantismo, do obscurantismo e das poses "distintas" dos políticos e da ignorância disfarçada de sabedoria.

O Domínio da Natureza

Fernandes



«A natureza está à espera, lá fora, mas mantém exactamente a mesma força: recuou, é certo, mas não está sequer prisioneira. Está num outro sítio, num outro ponto da batalha, e afia as lâminas; não reza, não suplica, não pede piedade.
Não reza, afia as lâminas.»

Gonçalo M. Tavares, Aprender a Rezar na Era da Técnica

15 de março de 2011

Batalha de Ourique - Os Preliminares

À semelhança de vários aspectos da vida de Afonso Henriques, a Batalha de Ourique levanta problemas aos historiadores, a começar pelo próprio local em que se terá dado. O nome parece não deixar margem para dúvidas. Porém, à altura, a fronteira sul do Condado Portucalense ainda não chegava ao Tejo. Apesar de já ter mandado construir o castelo de Leiria e colocado um posto de vigia em Tomar, Afonso Henriques ainda não tinha feito nada daquilo pelo que haveria de se tornar famoso: a conquista de territórios aos mouros. Como é que se explica, assim, uma batalha em pleno Baixo Alentejo?




Baseado no Dr. José Saraiva, o Prof. Freitas do Amaral considera a hipótese do "«Campo de Ourique», junto à nascente do rio Lis, na freguesia das Cortes, concelho de Leiria - que fica situada a cerca de oito quilómetros a sul da cidade de Leiria" (Biografia de D. Afonso Henriques, 5ª Edição, Bertrand Editora 2000, página 81).

No entanto, o Prof. Mattoso, na biografia já aqui citada, considera verosímil a localização no Baixo Alentejo, baseado nas razias e nos fossados que as populações de fronteira levavam a cabo, em terras de mouros. Muitas vezes, os monarcas hispânicos embarcavam nessa prática, organizando expedições de grande envergadura, sem o intuito de conquista, mas tão-só de intimidação e saque. Também os muçulmanos usavam esse tipo de estratégia, numa demonstração de força, de parte a parte.




Afonso Henriques regia, há mais de dez anos, sobre o Condado Portucalense, mas ainda mal se tinha dado a conhecer aos muçulmanos, já que passara aquele tempo tentando intimidar o primo, D. Afonso VII. Depois de perder os territórios galegos conquistados (ver Tratado de Tui), o nosso primeiro rei terá sentido necessidade de mudar de estratégia, virando-se para sul.

O ano de 1139 era favorável. Os almorávidas, a casta bebere que dominava o al-andalus (assim se chamava a Hispânia islâmica) tinham problemas com os seus rivais, os almóadas. Tashufin, o filho do emir almorávida, teve de ir em ajuda do pai, ao Norte de África, deixando Ibn 'Umar, governador de Córdova e Granada, a substituí-lo. D. Afonso VII aproveitou esse momento vulnerável para cercar a cidade de Aurélia e Afonso Henriques para organizar uma grande expedição de saque, a sul do Tejo.


Em Miniatura



Com tantos homens armados, Afonso reconquistou Leiria. Atravessaram o Tejo a leste de Santarém, penetrando cada vez mais em zonas a eles estranhas, mesmo às milícias vilãs, que estavam habituadas a fossados e algaras em terras de mouros. Mantendo-se afastados, tanto de Évora como de Badajoz, atacaram e pilharam povoações, devastaram os campos e destruíram as colheitas. Ousaram mesmo atravessar o Guadiana, a sul de Badajoz, continuando os seus ataques sem se distanciarem muito do rio, pois era de evitar a zona de influência de Sevilha.
Julho ia a meio e o cerco do imperador Afonso VII a Aurélia já durava há dois meses. A fim de ir em socorro da cidade assediada, Ibn’Umar, governador de Córdova e Granada, representante de Tashufin, ocupava-se a reunir reforços e a comandar razias em territórios leoneses, numa tentativa de desviar o imperador daquela cidade. As hostes de Afonso viram-se assim livres para se apoderarem de muitos despojos e fazerem cativos, que venderiam ou manteriam como escravos.

No regresso, terão atravessado o Guadiana perto de Mértola, dirigindo-se para oeste, a fim de contornarem Beja. Aventuraram-se, talvez, longe demais e foram interceptados pelos mouros:

 
A preocupação de Afonso crescia, à medida que o mês de Julho se aproximava do fim, sem que tivessem sequer começado a deslocar-se em direcção ao norte. Aquela região inóspita, a que se chamava os campos de Ourique, deixava-o nervoso. Não havia florestas, onde se pudessem esconder em caso de necessidade, só uma imensa charneca, cujos arbustos o sol transformava em palha. E, quando os batedores, que eram mandados apalpar o terreno, esgotados e suados, se punham a observar a planície, o sol fazia-os ver movimentos e sombras onde estes não existiam.
No meio da sua preocupação, Afonso deu-se consigo a admirar ainda mais a arte dos mouros. Com os seus sistemas de irrigação, como noras e canais, alguns subterrâneos, os infiéis faziam surgir plantações viçosas no meio de zonas desérticas. Mas tais pomares e searas concentravam-se à volta das cidades, precisamente as zonas que o príncipe e os seus homens evitavam.
Afonso estava tão convencido de que a sua expedição já havia chegado aos ouvidos de Ibn’Umar, que, a 24 de Julho, quando o corso se virava finalmente para norte, ali nos campos de Ourique, não se surpreendeu ao ouvir os batedores informá-lo que um exército inimigo lhes cortava o caminho. Os homens relatavam, à beira do pânico, que, além dos estandartes do Andalus, com os versículos do Corão escritos a verde sobre fundo branco, tinham avistado outros com inscrições a negro sobre fundo vermelho, o que provava a existência de reforços de além-mar.

13 de março de 2011

Herança islâmica

Republico o texto que escrevi para o Delito de Opinião, ao aceitar o amável convite do Pedro Correia, concretizado a 4 de Fevereiro passado, agora que, continuando a minha série sobre D. Afonso Henriques, vou entrar na fase em que o nosso primeiro rei inicia os seus combates contra os mouros.

D. Afonso Henriques e os Mouros


Desde que me dediquei à pesquisa histórica medieval, aprendi que devemos aos mouros esta maneira portuguesa de ser, que se costuma resumir na palavra "saudade". E, no entanto, desprezamos a nossa herança islâmica. Tenciono chamar a atenção para esse desprezo a que votamos uma parte importante do nosso passado. Porque quem insiste em esquecer o seu passado, ignora parte da própria identidade.

Embora, nos últimos anos, tenha havido um certo esforço por parte de alguns historiadores e arqueólogos, existem poucas obras profundas sobre o período islamita em terras portuguesas. Quem eram os líderes islâmicos que aqui dominaram durante quatro séculos? Quais os seus contributos para o desenvolvimento das regiões, da cultura, etc., etc.?

Sabe-se, por exemplo, que os mouros possuíam conhecimentos muito mais avançados do que os cristãos. Com as suas invenções, como a nora e outros sistemas de irrigação, que incluíam canais subterrâneos, fizeram florescer a agricultura em regiões inóspitas. Traduziram as obras dos filósofos e médicos gregos da Antiguidade para o árabe e, a partir daqui, para o latim, permitindo à Cristandade entrar em contacto com escritos esquecidos desde o desmoronar do Império Romano. Aliás, tomando o exemplo da Medicina, não se pode comparar o nível dos médicos islâmicos de então com os cristãos, razão pela qual aqueles eram procurados pelos próprios monarcas hispânicos. Que tentavam, ainda, imitar, a todo o custo, o luxo e a grandeza das cortes mouras.

O próprio D. Afonso Henriques teve uma relação de amizade com Ibn Qasî, um líder islâmico originário de Silves. O teor dessa amizade ainda hoje se encontra coberto pela penumbra, pois falta quem se interesse pelo assunto. Ibn Qasî era líder do movimento espiritual sufi, que tinha o seu centro em Mértola.



Muito mais haveria para dizer sobre o tema, mas, como este texto se resume a uma chamada de atenção, refiro um último aspecto: a influência moura em Portugal não acabou com a conquista do Algarve por D. Afonso III. Persistiram as mourarias, os bairros destinados aos mouros, nas cidades mais importantes do reino. Num lindíssimo livro (tanto a nível de texto, como de ilustrações) intitulado Em busca da Lisboa Árabe, publicado pelos CTT em 2007, Adalberto Alves fala-nos no drama vivido pelos últimos mouros em terras portuguesas, depois de D. Manuel I decretar, em 1496, a expulsão do reino de todos os que não se convertessem à fé católica.

Muitos conseguiram simular uma integração, mas ficaram sujeitos às mais variadas atribulações, no que constituiu um dos maiores dramas da História da Península do século XVI. Como nos diz Adalberto Alves, na obra referida: “transformados em marginais, rufiões e desclassificados, ébrios de fatalidade, frequentavam ainda Alfama e Mouraria vagueando como fantasmas gastos, sob a pálida memória dos seus antepassados”; “inventam um género musical e com ele cantam o seu fado”; “ao percorrermos certas alfurjas esquecidas de Lisboa antiga, parece sentirmos ainda como que os ecos longínquos desses fados esquecidos, onde o árabe se enroupava em português para exprimir o lamento dos humilhados do destino.”

No livro, é ainda reproduzida, na página 147, uma fotografia do autor na companhia de Amália Rodrigues, que, como Adalberto Alves nos diz, “estava intimamente convicta da parentela entre o fado e a música árabe, que muito apreciava”.

Para quando estudos sérios (livros, ensaios, programas de televisão) sobre este e outros aspectos da cultura moura em Portugal?

Quando deixaremos nós de desprezar a nossa herança islâmica?

11 de março de 2011

O Olhar do Celestino

Comissão de Serviço V

O Celestino, neste dia, até estava contente. Tinha ido às compras e adorava a camisa nova. Tirou-se a fotografia, para marcar a efeméride. Mas o Celestino não sorriu para a câmara, como costumam fazer as crianças, na idade dele. Principalmente, quando estão contentes.

"Fi-lo rir-se. Só nunca lhe tirei os olhos tristes". O que fixam os olhos tristes do Celestino? Um horizonte longínquo, onde a felicidade espera por ele? Acreditaria ele na felicidade? Sentir-se-ia digno dela? Ou estaria conformado com uma vida que pouco tinha para lhe oferecer? O Celestino parece olhar para algo que só ele conhece, que talvez nem tenha nome.


O Celestino era mainato de Fernando Sousa, co-autor do Delito de Opinião, blogue onde ele vai publicando as suas "Notinhas de uma guerra engolida". Engolida, nem mais, como fazemos com algo que abominamos, mas que nos obrigam a comer. É a sua Comissão de Serviço, em episódios curtos, mas cheios de substância. Porque, mais do que ler frases pomposas e/ou complicadas, queremos ler sentimentos.

Gostei particularmente do primeiro episódio (Adeus Eternidade) e do quinto, esta Comissão de Serviço V, em que ele nos apresenta o Celestino e que aqui transcrevo:

8 de março de 2011

Fernando Pessoa na Suíça

A Moura Aveirense fala-nos do Café Literário Fernando Pessoa, em Genebra. Esteve lá e tirou fotografias.

Melhor Livro Estrangeiro

Os franceses podem ter muitos defeitos, mas sempre tiveram bom gosto literário e Paris foi (mais do que é) uma cidade-refúgio para escritores de diversas nacionalidades. O Prix du Meilleur Livre Étranger 2010 é uma garantia de qualidade. Fica-se curioso, embora não se possa evitar um certo cepticismo, afinal, há gostos pessoais.

Através d' O Cheiro dos Livros, tenho vindo a entrar em contacto, precisamente, com a obra vencedora deste Prix.




«A natureza está à espera, lá fora, mas mantém exactamente a mesma força: recuou, é certo, mas não está sequer prisioneira. Está num outro sítio, num outro ponto da batalha, e afia as lâminas; não reza, não suplica, não pede piedade.

«O Dr. Lenz, cirurgião importante da cidade, homem possuidor absoluto dos seus prazeres privados, apreciador de pequenas humilhações a prostitutas, e que ganhara o hábito recente de receber em casa um vagabundo, de lhe oferecer esmolas chorudas, de lhe dar pão e comida, e acima de tudo, de o humilhar, de atrasar a esmola, a comida, de saborear o prazer de estar na parte forte e de ter dois olhos sãos e claros para ver o que a claridade do mundo mostrava: a rudeza desse mesmo mundo, a violência e a indiferença entre quem tem saúde e quem não a tem, quem tem dinheiro e quem não o tem, quem é velho e quem não o é, quem é feio ou deficiente e quem não o é, quem tem marcas de acidente no rosto, queimaduras, cortes que desfiguram a beleza média e quem, pelo contrário, não tem nada que manche o seu orgulho, o seu orgulho exterior, físico, a única moeda comum a todos os séculos, a todos os países, a todas as línguas. Era isto que os olhos sãos e claros de Lenz viam, era isto que a claridade do mundo lhe mostrava.»

«- Nesta casa o medo é ilegal – era uma das frases mais marcantes de Frederich Buchmann.


O único problema, neste tipo de escrita, é o ritmo alucinante das frases de qualidade. Sucedem-se umas às outras, quase se anulando, quase evitando o seu desfrutar. Há escritores assim, que se têm de ler devagar. E várias vezes. Em vez de enfado, a repetição proporciona-nos novas revelações, novos encantos.


Descobri mais um motivo de entusiasmo para minha ida a Portugal, por alturas da Feira do Livro do Porto. Já acrescentei o Gonçalo M. Tavares à minha lista :-)

7 de março de 2011

Estreia 2711

E pronto, estreei-me Em 2711. Pois é, convidaram-me para fazer parte da equipa, era esta a novidade blogosférica de que eu falava ali em baixo. Pensei que ia demorar mais tempo, mas entendi-me depressa com o sistema do conhecido sapinho português.

Lá vou, de vez em quando, escrever umas coisas (haja tempo)...

Blogue da Semana

As boas notícias surgem em catadupa. Agora, foi o Rui Rocha, do Delito de Opinião, que apontou o Andanças Medievais como blogue da semana.

Sem entrar em falsas modéstias, eu acho que terá um pouco a ver com o facto de a História não estar devidamente representada na blogosfera. Mas, ao constatar que este blogue agrada a bastante gente, sinto que atingi o meu objectivo, que é o mesmo que me leva a escrever os meus livros: criar uma alternativa de divulgação da nossa História, em relação aos meios académicos e historiográficos (contra os quais, aliás, nada tenho, são eles que me valem).


Pormenor das muralhas medievais de Tomar

Portugal trata mal a sua rica História, há falta de investimento. Eu penso que a sua exploração poderia tornar-se numa importante fonte de receitas. E daria emprego a muita gente. Encenações medievais, por exemplo, pelo menos, nos meses de Verão e nos castelos mais famosos, como os de Lisboa, Tomar e Guimarães. À semelhança de Warwick, na Inglaterra, de que já aqui falei.

Mas, no que diz respeito a boas notícias blogosféricas, há mais surpresas. Brevemente!

6 de março de 2011

Uma boa surpresa



Estas coisas acontecem assim, sem eu saber, nem ninguém me dizer nada. O que, aliás, lhes confere um encanto especial. Já foi assim com o Cloning Adolf, que o Pedro Rolo Duarte recomendou no seu programa Janela Indiscreta, no Verão passado. Na altura, eu nem sabia que ele tinha um programa de divulgação de blogues (tenho desculpa, moro no estrangeiro ;-)

Agora, espantei-me ao ver este Andanças Medievais incluído nos sites do mês da revista Os Meus Livros, de Março. E ficou muito bem!



O meu obrigada ao Director João Morales e à sua equipa!

4 de março de 2011

Tratado de Tui

José Filipe Photo


O processo que levou à independência de Portugal foi longo, Afonso Henriques levou a cabo um verdadeiro braço de ferro com o seu primo Afonso Raimundes, ou seja, D. Afonso VII, el-rei de Leão e Castela. E, apesar de o nosso primeiro monarca nunca ter cumprido o rito de vassalagem para com o primo, declarou-se seu vassalo em dois documentos muito importantes. O primeiro, foi o Tratado de Tui, assinado a 4 de Junho de 1137. Note-se que Afonso Henriques, nesta altura, já era, há quase dez anos, o líder incontestado do Condado Portucalense. Mas ainda não se tinha dado a Batalha de Ourique, em que ele seria aclamado rei pelos seus guerreiros.

Depois de ter vencido a Batalha de São Mamede, Afonso Henriques iniciou uma política agressiva em relação ao primo, ao apropriar-se de territórios galegos. Conseguiu tornar-se senhor do sul da Galiza e mandou construir um castelo em Celmes, uma ofensa perante D. Afonso VII, pois os vassalos só podiam construir castelos com autorização do seu suserano.



D. Afonso VII, Imperador de Toda a Hispânia


Mas o nosso primeiro rei não foi bem sucedido. D. Afonso VII, depois de se ter coroado imperador na Catedral de León, em 1135, intitulando-se, a partir daí, "Imperador de Toda a Hispânia", recuperou os territórios galegos, arrasou o castelo de Celmes e ameaçou invadir o Condado Portucalense, a fim de afastar o primo do poder. Afonso Henriques, viu-se entre a espada e a parede e concordou em assinar um tratado, em que se declarava vassalo de D. Afonso VII.

Com a mediação do arcebispo de Braga e dos quatro bispos, Afonso Henriques reconheceu o imperador de toda a Hispânia como seu suserano. Prometeu fidelidade e amizade a Afonso VII e comprometeu-se a respeitar as fronteiras da Galiza e de Leão. Como prova da sua vassalagem, o imperador confirmou-lhe o senhorio de Astorga, a cidade leonesa que pertencera aos pais do príncipe. Que, no entanto, teria que ser imediatamente devolvida, caso ele o exigisse. Além disso, como bom vassalo, Afonso Henriques comprometia-se a fornecer apoio militar a seu primo, sempre que este tal solicitasse. 

É interessante verificar que, tanto este importante tratado, como as circunstâncias que a ele conduziram, surgem "abafados" na História de Portugal, não são conhecidos do grande público. E, no entanto, tratou-se de uma cerimónia imponente, em que participaram altas personalidades: o arcebispo de Braga, os bispos do Porto, Segóvia, Tui e Ourense, além de nobres de alta estirpe. Ao todo, assinaram o documento mais de cem testemunhas, entre clérigos, fidalgos e outros cavaleiros. Não será difícil imaginar o impacto que tal reunião terá tido em Tui e em toda a região adjacente.


Tui, nas margens do Rio Minho (fotografada a partir de Valença)

Afonso Henriques, no entanto, já admitiria a hipótese de desrespeitar o combinado (o que veio a verificar-se mais tarde).


No dia seguinte, o acordo foi lido em voz alta, na presença de todos os nobres, prelados e cavaleiros. O imperador assinou-o em primeiro lugar, seguido por Afonso, o arcebispo de Braga, os quatro bispos e o resto das testemunhas. Enquanto decorriam estes procedimentos, Afonso conversava com o primo, que se ria das anedotas que ele próprio contava. O príncipe sorria por cortesia, as piadas soavam-lhe ocas.
Aos poucos, os senhores iam deixando a sala e formavam grupos no recinto do castelo. Egas Moniz conversava com o bispo do Porto e, assim que Afonso teve oportunidade, juntou-se a eles. Logo o prelado comentou:
- Missão cumprida, não é verdade?
- Mal posso esperar - retorquiu Afonso baixo, - para tornar a dedicar-me a algo útil.
Também D. João Peculiar baixou a voz:
- Considerastes esta reunião perda de tempo?
- Digamos que há coisas mais importantes. Os mouros, por exemplo, merecem uma boa lição, por terem arrasado o castelo de Leiria, que ainda nem estava pronto.
D. João Peculiar observava o príncipe atentamente, ao perguntar:
- Quer isso dizer que iremos, definitivamente, viver em paz aqui no norte?
Afonso manteve-se calado.

1 de março de 2011

"Pecados de mí padre"

Cinco colombianos encontram-se em Outubro de 2008, num hotel de Bogotá. Um deles é filho do homem que mandou assassinar os pais (só os pais, sem as mães) dos outros quatro, quando eram todos ainda crianças. Sebastián Marroquín pede desculpa pelo sofrimento que seu pai causou às famílias. É difícil para o telespectador estar naquela sala, fazer parte daquela reunião. Sente-se o constrangimento. Mas também a sede de perdão, por parte do filho do assassino, admira-se a sua coragem e a sua humildade. Os outros, conhecidos políticos colombianos, aceitam as desculpas, concordam em que é preciso travar a violência e contribuir para a paz.

Não se trata de um filme, a cena não tem nada de fictício, é real, a câmara foi tolerada naquele encontro por alguns momentos, a fim de ser feito o documentário. E o arquitecto Sebastián Marroquín, que vive na Argentina, foi baptizado com outro nome, na sua Colômbia natal. Mudou-o, quando se viu obrigado a fugir do país. O seu verdadeiro nome é Juan Pablo Escobar, filho de Pablo Escobar, o barão da droga colombiano, morto em 1993, tinha ele 16 anos. Os outros quatro homens são filhos de políticos assassinados a mando de Escobar, nos anos 80, quando declararam guerra ao barão da droga.


Pablo Escobar com o filho Juan Pablo, em 1980


Sebastián Marroquín tem dificuldades em viver com a "herança" que o pai, que chegou a ser o criminoso mais procurado do planeta, lhe deixou. Vê-se aflito para conciliar a imagem do pai carinhoso, que lhe satisfazia todos os desejos (a família nadava em dinheiro), com o criminoso, que não hesitava em mandar assassinar quem o incomodasse. A sua primeira reacção, ao saber da morte dele, foi declarar, a uma jornalista, num telefonema gravado, que iria tomar o seu lugar, continuar a sua "obra", vingando-se daqueles que o mataram.


Pablo Escobar com o filho Juan Pablo, turistas em Washington


Mas esta foi uma reacção a quente, diz ele hoje, quando tinha apenas 16 anos e vivia escondido num hotel de Bogotá, com a mãe e a irmã, protegidos pela polícia, enquanto a Colômbia inteira procurava pelo paradeiro de Escobar. Passados esses momentos de fúria, Sebastián Marroquín decidiu-se pela paz. O sentimento de culpa, porém, persiste. Levou-o a contactar os filhos dos dois conhecidos políticos colombianos, a fim de lhes pedir desculpa.

Nem todos responderam de imediato, afinal, alguns deles tinham apenas 7 anos, quando os pais foram assassinados a sangue frio. Num dos assassinatos, em pleno comício eleitoral para a Presidência da Colômbia, havia câmaras, as imagens existem. A 18 de Agosto de 1989, o candidato Luis Carlos Galán cai, talvez já morto, em cima do palanque, atingido por tiros de metralhadora. Gera-se o pânico. Com esforço, o seu corpo inanimado é metido num carro, a fim de ser transportado a um hospital, na tentativa desesperada de salvar o que já não pode ser salvo.


Sebastián Marroquín (Juan Pablo Escobar), hoje, arquitecto na Argentina


Ignorar o passado é ignorar uma parte de nós, é não assumir as responsabilidades, é varrer para debaixo do tapete. Sebastián Marroquín, além de consentir no documentário, arriscou viajar à Colômbia, onde a sua vida corre perigo. Porque há ainda muita gente que deseja vingar-se do pai, através dele. Outros têm medo das revelações que ele possa fazer. Mas Sebastián Marroquín tem a coragem de mostrar ao mundo que é diferente de Pablo Escobar, pois, nas suas próprias palavras: o caminho mais rápido e seguro para a paz passa pelo perdão e pela reconciliação. É preciso mais coragem para estabelecer a paz do que para fazer a guerra. Destruir, é fácil (tradução minha, do alemão).

É suposto os pais ensinarem-nos a viver. Muitas vezes, temos que aprender a viver, apesar deles.

Nota: O documentário foi apresentado no Canal Arte, no passado dia 23 de Fevereiro. Será repetido a 8 de Março, às 2:30 horas (serão 1:30 horas, em Portugal). Título, em francês: Les péchés de mon père.