Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

4 de abril de 2011

Quem é o verdadeiro escritor?

O Horas Extraordinárias, da editora Maria do Rosário Pedreira, grupo Leya, é, com razão, um dos blogues mais conhecidos e elogiados da blogosfera. Também eu gosto de o ler, todos os dias, mas intrigou-me o post publicado, precisamente, na data simbólica de 1 de Abril. Não é tanto o seu conteúdo que me incomoda, mas a maneira como é expressado.

Intitulado "Ser Escritor", inicia assim: Não se é escritor porque se quer, mas porque se pode. Considero esta frase infeliz, na sua ambiguidade. Eu diria antes: não é escritor só quem pode, mas quem quer; e muito! Todos sabemos que o talento não chega, é preciso disciplina e, acima de tudo, perseverança. Dizer que não se é escritor porque se quer não faz, para mim, qualquer sentido, porque, se não o quisermos ser, não o seremos, de certeza! Como tudo na vida, aquilo que se quer alcançar, tem de se querer muito.

A frase até pode dar azo a interpretações menos honestas. Não se é escritor porque se quer, isto é, porque se vive com essa vocação e esse desejo, mas porque se pode, ou seja, quem tem contactos, cunhas, é famoso, tem pais famosos, ou dinheiro. Eu sei que não foi isso que a Maria do Rosário Pedreira quis dizer, mas, por isso mesmo, a frase é infeliz.


Daqui


Mais à frente, lê-se: ... infelizmente, nem toda a gente que aprende a juntar as letras sabe ler. Os verdadeiros leitores, como os verdadeiros escritores, serão sempre uma minoria. Deixemos, para já, os escritores de lado e concentremo-nos nos leitores. Então, passa-se assim um atestado de burrice e incapacidade à maioria da população que compra livros?! Talvez compre livros de que a Maria do Rosário Pedreira não gosta, ou que considera de qualidade inferior. Mas, daí a dizer que essas pessoas não sabem ler?! Entre amigos, ou num meio literário em que as opiniões coincidem, dizem-se coisas destas. Mas expô-las ao público, indicia, a meu ver, prepotência.

Conceitos como verdadeiro escritor, verdadeiro leitor e literatura séria não são estanques e deviam ser usados com cuidado. Os comentadores do post discutem o facto de muito poucos escritores poderem viver daquilo que editam. Mas, se há nomes que não deixam margem para dúvidas, como Saramago, Gonçalo M. Tavares e António Lobo Antunes, que dizer de José Rodrigues dos Santos, ou, a nível internacional, Dan Brown e Stephenie Meyer? Todos eles podem viver bem daquilo que editam. Mas são eles verdadeiros escritores? Escrevem eles literatura séria?

Um comentador anónimo diz algo, a meu ver, muito pertinente: Todavia, há que dizer que a literatura que tem como único propósito a diversão e o entretenimento também merece respeito. Aliás, se calhar até é ela que paga o salário da MRP no grande grupo económico em que trabalha. E no entanto, a Maria do Rosário Pedreira diz, no seu post: a literatura séria está, com o tempo, condenada a ocupar uma pequena parcela das prateleiras das livrarias, onde hão-de proliferar muitos outros géneros de mais fácil assimilação. A verdade, que temos de aceitar e com a qual temos de viver é a de que os livros não passam de um negócio! As editoras preferem seguir as regras do mercado, em vez de apostar na qualidade. Só assim conseguem sobreviver e pagar salários.A autora do Horas Extraordinárias devia estar bem dentro deste assunto!


Daqui

Embora todos os comentários sejam interessantes (o post acaba por ter essa virtude de despoletar a discussão), não resisto a transcrever o de um outro anónimo (ou será o mesmo?):

A velha polémica entre a literatura experimental vs. "uma boa história". Já me fartei do Bolaño, mas continuo a gostar do John Grisham. Gosto dos clássicos russos, mas nunca consegui ler o "Ulisses" do Joyce. Gostei muito do "Monte dos Vendavais" da Emily Brontë, mas detestei "Retrato de Uma Senhora" do Henry James. Adorei "Kane e Abel" do Jeffrey Archer, nas não consigo terminar "Os Detectives Selvagens"... Li quase tudo de Fiódor Dostoiévski, mas não suporto a imitação "tuga" do JRS e, no entanto, gosto de Dan Brown. Que leitor serei eu?

Ou seja, muitas vezes, a "qualidade", a "verdadeira literatura" é uma questão de gosto. E eu posso gostar de Saramago, Dan Brown e Stephenie Meyer ao mesmo tempo. Insisto na minha opinião, que já aqui expressei: mais vale ler livros "maus", do que não ler, aprende-se, pelo menos, a escrever sem erros.

E, respondendo à pergunta que serviu de título a este meu post, lembro o conceito de Sol Stein: escritores não são só aqueles que já publicaram livros, mas todos aqueles que não concebem a sua vida sem escrever. Ou seja, quem ama a escrita, é escritor. E quem ama os seus livros, sejam eles quais forem, é um verdadeiro leitor.

5 comentários:

jota disse...

Realmente estranhei esse texto, mas não lhe dei grande importância. Obrigado pela reflexão. Concordo. Categorizar estilos de escrita por literatura séria e não séria é um bocado infantil, para não chamar snob.

Serei escrito? Não me atrevo a definir-me, só sei que uma parte importante do que sou passa pela escrita, mesmo que ninguém a leia.

antonio ganhão disse...

Não se é escritor porque se quer, mas porque se pode.

Que grande verdade! Com efeito só quem pode lá chega...

Daniel Santos disse...

eu eu que sou analfabeto.

Carla M. Soares disse...

Pois é, Cristina, acho que começa aí mesmo, por esta divisão da crítica entre o que é "sério" e o que não é, como se tivessemos que gostar todos de amarelo. Se calhar, de acordo com esta critica, não sou escritora... nem sequer leitora, porque leio com prazer muitos livros que nem são experimentais, nem excessivamente profundos, mas estão bem escritos e são "limpos" e escorreitos na história, personagens, etc.
Feliz fico eu, se os meus, mesmo sem nunca ganharem um prémio que seja, forem assim e, principalmente, derem prazer a quem ler. Afinal não é esse um dos objetivos principais da arte? Ou só é arte se for sofrimento?

Cristina Torrão disse...

Concordo, Carla, eu acho que o livro deve, acima de tudo, dar prazer ao leitor. Mas como Portugal é um país muito sisudo, acho que essa coisa do sofrimento é muito apreciada...