Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

10 de maio de 2011

Tratado de Zamora

Zamora, nas margens do rio Douro


Há quem indique o dia 5 de Outubro de 1143 como a data da formação do reino de Portugal independente, mas tal não é correcto. É verdade que, no Tratado de Zamora, o imperador de toda a Hispânia, D. Afonso VII, reconheceu o título real a seu primo, fazendo de Portugal um reino. Porém, à semelhança do que acontecera em Tui, Afonso Henriques declarou-se, mais uma vez, vassalo do imperador! O que quer dizer que o Tratado de Zamora, no fundo, mais não foi do que a confirmação do Tratado de Tui, que Afonso Henriques desrespeitara, ao invadir, mais uma vez, a Galiza. Com isso, forçou D. Afonso VII a reconhecer-lhe o título real, mas não conseguiu a tão almejada independência. Aliás, o imperador seu primo nunca lha reconheceu oficialmente.


            Afonso VII reconheceu o título real a seu primo, mas, à semelhança do que fora estabelecido em Tuy, concedeu-lhe o senhorio da cidade leonesa de Astorga. E o suserano dava o governo de uma cidade ou de uma região dos seus domínios ao seu vassalo, precisamente como prova da dependência deste. Afonso Henriques aceitou o senhorio, mas, como sempre, não prestou a homenagem formal, nas mãos do primo, como o fizera nas do cardeal. A situação entre os dois netos de Afonso VI permanecia ambígua: subentendia-se uma relação entre suserano e vassalo, sem, no entanto, se proceder à cerimónia oficial.
Ficou ainda estabelecida uma repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos. O rei português era autorizado a expandir o seu reino para sul, mas deveria confinar-se ao oeste de al-Andalus, denominado al-Gharb, pois o imperador reclamava para si os territórios a leste do rio Guadiana. O que obrigava Afonso a prescindir de Badajoz, apesar de esta cidade ter sido, no passado, a capital de um reino taifa que incluía Lisboa.

Assinatura do Tratado de Zamora


A independência do reino português só seria atingida, depois de Afonso Henriques ser aceite como vassalo do Papa. Para isso, ainda antes de partir para Zamora, o nosso primeiro rei terá prestado homenagem ao cardeal Guido de Vico, em Coimbra.


E assim prestou D. Afonso Henriques a sua homenagem à Sé Apostólica, na pessoa de Guido de Vico. Como era costume, ajoelhou-se perante o cardeal, que tomou as suas mãos nas dele. Afonso declarou-se miles Sancti Petri (cavaleiro de São Pedro) e afirmou não reconhecer a autoridade de nenhum outro poder eclesiástico ou secular, a não ser a do Papa.
Ficou ainda combinado que confirmaria este seu juramento por escrito.



Temos aqui uma situação muito curiosa e que costuma ser ignorada na formação do nosso país: o cardeal Guido de Vico aceitou a homenagem de Afonso Henriques, libertando-o do jugo de Afonso VII e, logo em seguida, serviu de mediador num tratado em que o rei português se declarava vassalo do imperador hispânico! Trata-se, no fundo, de uma verdadeira traição à pessoa do imperador! Como é que um legado papal concordou com tal manobra?

A explicação estará em negociações secretas levadas a cabo entre D. João Peculiar, arcebispo de Braga, e o cardeal Guido de Vico, que terão incluído o casamento de D. Afonso e D. Mafalda de Sabóia. O próprio Prof. Mattoso indicia esta possibilidade, na sua biografia de Afonso Henriques, ao considerar o arcebispo de Braga uma figura chave em todo este processo. O conhecido historiador chega a afirmar que D. João Peculiar terá contribuído tanto para a independência de Portugal, como o próprio Afonso Henriques. Já vai sendo altura de darmos a este importante prelado o destaque que ele merece!

Estátua de D. João Peculiar, em Braga

Continuarei com este tema no próximo post.

13 comentários:

Daniel Santos disse...

muito bem. Estou muito interessado.

antonio ganhão disse...

Estive em Zamora, lembro-me vagamente de um mural, mas já não me recordo se a cidade preserva esta memória.

Cristina Torrão disse...

Acho que não, nem do tratado, nem do facto de Afonso Henriques ter sido lá armado cavaleiro. O nosso primeiro rei é ainda uma espinha atravessada na garganta dos espanhóis, podes crer. Acima de tudo, não perdoam o facto de o primo Afonso VII não ter sido mais enérgico com ele. Dão-lhe pouca importância (ao Afonso VII), apesar de ter sido imperador.

Juvenal Nunes disse...

È inquestionável o ano da assinatura do Tratado de Zamora.Trata-se do acto mais pragmático,até por ser oficial, da independência do reino de Portugal face aos restantes estados cristãos da Península Ibérica.
O texto que inicia este assunto entra, no final, em contradição com as afirmações produzidas anteriormente.

Cristina Torrão disse...

Juvenal, não está em causa a data do Tratado, mas o seu conteúdo. Afonso Henriques, no Tratado de Zamora, acordou em continuar vassalo de seu primo D. Afonso VII, apesar de este lhe reconhecer o título real. Este facto está de acordo com os preceitos do feudalismo da Idade Média, pois um imperador podia ter reis como vassalos. Os reis de Navarra e Aragão também prestaram homenagem a D. Afonso VII, que se intitulava "imperador de toda a Hispânia".
A 5 de Outubro de 1145, D. Afonso Henriques foi reconhecido rei de Portugal, mas vassalo do imperador. Por isso, é errado classificar este acto como o da "independência de Portugal face aos restantes estado cristãos da Península Ibérica".

Não duvido que o próprio Afonso Henriques se considerasse independente, pois já tinha prestado homenagem ao cardeal Guido de Vico. Mas teria ainda de esperar mais de 30 anos pela confirmação oficial deste seu estatuto (livre de outros poderes, que não o da Igreja de Roma), pelo papa Alexandre III.

Juvenal Nunes disse...

Permita-me mais algumas considerações.O Tratado de Zamora revela, claramente,um acto de cedência e fraqueza por parte de Afonso VII ao reconhecer o título de rei a D. Afonso Henriques.
Essa disposição no conteúdo do tratado colide,como sabemos,com o sistema administrativo adoptado para os domínios de Afonso VII, desde o tempos do avô, e que se inspirava no sistema administrativo criado pelo imperador Carlos Magno para os seus domínios, como forma de defesa contra inimigos comuns.

Cristina Torrão disse...

Sim, pode-se considerar um acto de fraqueza e cedência por parte de D. Afonso VII. Aliás, não foi o único, o imperador sempre teve pejo em tomar medidas duras contra seu primo e, ao saber que D. Afonso Henriques conseguira a protecção de Roma, limitou-se a enviar uma carta de protesto.

Mas a independência só foi conseguida através da vassalagem a Roma, D. Afonso VII nunca a reconheceu oficialmente. Já o seu filho e sucessor no reino de Leão, D. Fernando II, nunca pôs em dúvida a independência de Portugal.

Juvenal Nunes disse...

Se a carta a que se refere foi a de D. Afonso Henriques (Claves regni) mantém-se como válido o ano de 1143, como sendo o da independência do reino de Portugal.Este pormenor dos acontecimentos baralha um pouco toda a informação contida nos livros adoptados nas escolas portuguesas,unânimes em considerar a independência do reino de Portugal, após a assinatura do Tratado de Zamora.

Cristina Torrão disse...

Caro Juvenal, Afonso Henriques só recebeu a resposta à Claves regni em 1144 e esta não foi conclusiva. Quanto a este assunto, pode ler o que escrevi em

http://andancasmedievais.blogspot.com/2011/05/claves-regni-celorum.html

Pelos motivos lá apresentados, discordo da data de 1143 como assinalando a independência de Portugal. Esta só foi verdadeiramente conseguida em 1178.

Cristina Torrão disse...

Corrijo: 1179!

23 de Maio de 1179, data da Bula Manifestis Probatum, de Alexandre III

Juvenal Nunes disse...

D. Afonso VII reagiu vigorosamente contra os efeitos da Claves Regni também de forma epistolar.A resposta papal não surtiu os efeitos que desejava,deixando-o descoroçoado.
Estudiosos há que referem que até ao fim do reinado do auto intitulado imperador da Hispânia, Afonso VII,a independència de Portugal era um facto indesmentível e, até os próprios cronistas leoneses já tinham banido,por completo, o nome de Portugal das crónicas oficiais da corte de Leão.
Seria mais correcto dizer,parece-me,que D. Afonso Henriques é que nunca reconheceu,na prática,a vassalagem que o primo lhe solicitava.

Cristina Torrão disse...

Sim, é verdade que, tanto os cronistas medievais, como os historiadores espanhóis, mais tarde, sempre tiveram dificuldade em lidar com o caso português. Pelo menos, até há um tempo atrás, não sei se, hoje, isso se modificou.

É verdade! D. Afonso Henriques nunca reconheceu a vassalagem que o primo lhe solicitava. Apesar de se ter declarado seu vassalo em dois tratados (de Tui e de Zamora), nunca a exerceu de facto e mandou esses dois tratados às urtigas assim que teve oportunidade.

Repare-se: o facto de o reconhecimento oficial da independência de Portugal ter vindo apenas em 1179, não impediu que Afonso Henriques se comportasse como rei independente desde a Batalha de Ourique de 1139, onde foi aclamado rei pelos seus guerreiros.

Esta troca de comentários tem sido interessante, caro Juvenal, talvez ainda escreva sobre isso...

Juvenal Nunes disse...

Portugal emerge como nação independente muito em função da mentalidade senhorial comum em toda a Europa feudal e medieval.
Há momentos na história que são fulcrais para a eclosão de novas nacionalidades.Mas, acima de tudo, e,por cima de tudo,perfila-se a personagem de D.Afonso Henriques com o seu carácter rebelde e indomável,sem o que nada teria sido possível.
Tal como escreveu J. P.Oliveira Martins - »Ubíquo militarmente,era nos negócios um proteu.Os seus inimigos,leoneses,sarracenos,não achavam por onde prendê-lo.»
Tem sido um enorme prazer,cara Cristina,manter consigo esta troca de impressões,por se tratar de alguém que tão bem sabe discretear,