Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

8 de julho de 2011

Conquista de Santarém III - o Ataque

Conquista de Santarém


O que a imagem não explicita é que o ataque a Santarém se deu pela calada da noite.

 
Escolhendo um momento propício, em que o vigia se encontrava mais longe, o moçárabe esgueirou-se com três companheiros até à muralha, enquanto o resto dos homens se mantinha escondido. Os quatro iam munidos de uma escada de pau, tosca e leve. Ao atingirem o sopé do muro, de cerca de quarenta pés de altura, quedaram-se silenciosos, pois já ouviam os passos do vigia fazer o caminho de volta. Esperaram até que ele estivesse mesmo por cima deles, o local onde o mouro, depois de um curto compasso de espera, tornava a dar meia-volta.
Assim que o sentiram distanciar-se, encostaram, com muito cuidado, a escada às muralhas. Com a sua adaga segura entre os dentes, Mem Ramires começou a trepar, silencioso e ágil, sem deixar de prestar atenção ao som dos passos do mouro. Quando ia a meio da escada, sentiu a sentinela parar. Logo se imobilizou. Bem sabia que o outro ainda não tinha dado os seus trinta passos, devia ter sentido alguma coisa. Assim ficou o moçárabe paralisado, de coração aos saltos, à semelhança do companheiro que subia atrás dele, alguns degraus mais abaixo. Os dois nem se atreviam a respirar, durante aquilo que se lhes assomava como uma eternidade. Finalmente, o vigia encetou a sua caminhada, sem mudar de direcção, pois os passos continuaram a distanciar-se.
A uns dez palmos de distância da ameia, Mem Ramires tornou a parar. O mouro já vinha de regresso, o que, aliás, fazia parte dos seus cálculos. Mas este era um momento decisivo. Os atacantes quedaram-se, mais uma vez, imobilizados e de respiração presa, rezando para que o vigia não desse por eles.
O mouro chegou ao local de partida, onde fazia o seu compasso de espera. Mem Ramires tinha a impressão de que ele, desta vez, se demorava mais tempo. Estavam bem perto um do outro: o mouro sobre o adarve, na ameia, a mesma que se encontrava à distância de dez palmos da cabeça do moçárabe, que o ouvia respirar, enquanto ele próprio não se atrevia a fazer uso dos seus pulmões. Além disso, sentia a escada de pau leve e elástico a bambolear, com o peso de dois homens sobre ela. Era o máximo que a construção aguentava. Mem Ramires sabia, por isso, que os restantes dois companheiros ainda se encontravam no chão. Se a escada quebrasse, ou o mouro desse por eles, estava a empresa perdida e D. Afonso não conquistaria tão cedo a cidade de Santarém. Mais do que a própria morte, Mem Ramires receava desiludir el-rei de Portugal.
O mouro reatou finalmente a sua marcha e o moçárabe, apesar de aliviado, não se esqueceu de expirar o ar devagar, antes de espreitar pela ameia. À sua direita, na direcção da porta de Atamarma, viu as costas do vigia, que se afastava. À sua esquerda, não descortinou vivalma. Enfiou-se pela ameia, aproximou-se silencioso da sentinela, agarrou-lhe no queixo por detrás e, num gesto preciso e rápido, cortou-lhe a goela com a adaga. O grito do mouro abafou-se num gorgolejar e Mem Ramires sentiu o sangue quente esguichar-se-lhe para as mãos.

Todos os quatro homens conseguem saltar para o adarve, neutralizar as sentinelas e abrir a Porta de Atamarma a el-rei e aos seus cavaleiros, antes de a cidade acordar por completo.


O chão começou a tremer debaixo de centenas de cavaleiros a galope. Aos ouvidos de Mem Ramires, este estrondo assomava-se mais doce do que as cantigas dos jograis. A patrulha mandada pelo alcaide, que já estava prestes a alcançá-los, tentou recuar, mas acabou esmagada debaixo das ferraduras dos cavaleiros vilãos.
Afonso e os seus homens foram-se infiltrando pelas ruelas da cidade, chacinando as sentinelas que se atreviam a fazer-lhes frente e avançando sem grande resistência até à alcáçova, onde o alcaide, vendo-se sem outra hipótese, se tinha barricado, juntamente com o grosso da sua guarnição. Os portugueses puseram cerco à muralha interior, que os mouros por sobre o adarve defendiam, disparando as suas bestas, cujos virotes trespassavam as cotas de malha. Mas também os cavaleiros vilãos usavam os seus arcos, permitindo que companheiros seus se aproximassem das portas, a fim de as desfazerem com os machados.
Finalmente, uma porta cedeu. O primeiro português penetrou na fortaleza montado sobre o seu cavalo, manejando o machado como um possesso para ambos os lados, atacando os mouros que encontrava pela frente e abrindo caminho aos seus companheiros. Alguns muçulmanos lograram espetar os seus sabres na barriga dos animais, obrigando os seus ocupantes a desmontar e a lutar corpo a corpo.
Os cavalos atacados esvaíam-se em sangue, dando gritos lancinantes. Também guerreiros feridos davam expressão à sua agonia. Mas os portugueses conseguiam levar a melhor naquela chacina. Aos poucos, iam penetrando na alcáçova, até abrir caminho ao próprio rei, ao Espadeiro e ao Cativo. Alguns avançaram até ao portão que dava acesso ao exterior, que abriram, permitindo a entrada do Sousão e dos seus homens.
Os mouros não resistiram por muito mais tempo. Os guerreiros de Afonso tomaram conta de todos os edifícios e compartimentos da fortaleza, matando os homens e violando as mulheres por sobre o sangue que manchava os tapetes e as almofadas das luxuosas alcovas.
Quando o Domingo, dia 15 de Março de 1147, amanheceu, já os gritos de sofrimento e agonia tinham cessado. E era o estandarte do rei português, com os seus escudetes azuis em forma de cruz, que a brisa sacudia no cimo da torre de menagem da alcáçova de Santarém.



Estava aberto o caminho para a conquista de Lisboa.

5 comentários:

Bartolomeu disse...

É de grande realismo a tua descrição, Cristina. Empolgante, coloca-nos a escalar a muralha juntamente a Mem Ramires. Afinal, os desejos de conquista, e defesa da nacionalidade que nos identifica ainda nos circula no sangue. Muitas vezes nos sentimos ainda, os Lusitanos indomáveis, a gesta de um povo que não se limitou ao seu canto e a quem a sede de desvendar o mundo, o tornou único no mundo.
Será que alguma vez os Germanos entenderão esta génese, Cristina?
Nie!
Eles só conseguem perceber de batalhas com tanques de guerra, aviões, metralhadoras, etc. É preciso explicar-lhes que as principais armas lusitanas, encontram-se na alma, na coragem, na valentia... no destemor!
;))

Cristina Torrão disse...

Obrigada, Bartolomeu, pelos teus elogios e a tua interessante opinião sobre este tema :)

Jacaré do CV disse...

Muito bom, obrigado pelo texto. Eu lia fácil um livro escrito pela senhora com histórias iguais a essa e mais desenvolvidas e detalhadas.

Jacaré do CV disse...

Muito bom, obrigado pelo texto. Eu lia fácil um livro escrito pela senhora com essas histórias de um jeito mais desenvolvido.

Cristina Torrão disse...

Obrigada, Jacaré do CV.
Mas não entendi bem o conteúdo total do seu comentário.