Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

7 de junho de 2012

O Desastre de Badajoz - II

 
O escudeiro do rei preparava-se para lhe enfiar o elmo por cima do almofre, mas Afonso empurrou-o para o lado, bradando ao amigo:
- Não vedes que Badajoz se nos transforma numa armadilha gigantesca? Ficaremos entalados entre os leoneses e os mouros. Através da porta que liga a alcáçova ao exterior, os infiéis poderão munir-se de mantimentos.
Depois de uma hesitação, Soeiro Viegas replicou:
- Foram cometidos vários erros. Mas o maior de todos foi subestimar el-rei de Leão!
Afonso encarou-o furioso. Veio-lhe à ideia a última conversa com a filha Teresa. Agora, Soeiro Viegas dava razão à infanta! Como se atreviam eles a acusá-lo? Estaria a ficar velho, incapaz?
Num misto de fúria, desespero e arrependimento, agarrou as vestes do fidalgo e bradou-lhe:
- Dizei-o, de uma vez, com mil diabos! Nunca deveria ter acedido ao pedido de ajuda de Geraldo Sem Pavor! Não vos quis dar ouvidos e cai na ratoeira! Vamos, tendes coragem de o dizer?
Afastou-o de si, com um safanão. Soeiro Viegas permaneceu impassível. E Afonso acabou por murmurar:
- Entrarmos em conflito uns com os outros seria o próximo erro. É tempo de acabar com eles.

Muralhas de Badajoz

Os portugueses viram-se tão aflitos em Badajoz, sitiados por leoneses e mouros, que se acabou por se decidir a fuga de D. Afonso Henriques por uma porta pequena e menos vigiada. Confesso que tenho problemas com esta decisão: D. Afonso Henriques a escapulir-se, deixando os seus guerreiros à mercê do inimigo? Não combina com o seu caráter. Mas haveria uma razão de peso: seria a única hipótese de manter a independência de Portugal, já que o nosso primeiro rei estava nas mãos do rei de Leão.
É impossível saber o que se passou entre D. Afonso Henriques e os seus barões, nessa noite de todas as decisões. Eu tentei imaginar:

 
Nesse serão, Afonso reuniu-se com os seus barões e logo avisou:
- Não admito mais discussões sobre o que deveria ter sido feito, ou evitado. Em vez disso, concentremos as nossas forças, à procura de uma solução, que nos tire deste buraco em que nos enfiamos.
Depois de um momento de silêncio, seu filho Pedro Afonso sugeriu:
- Rendamo-nos!
O irmão dirigiu-se-lhe furioso:
- Não deves estar bom da cabeça! El-rei de Portugal não se pode render ao de Leão. Seria o fim do nosso reino.
O mais novo insistiu, dirigido ao pai:
- Ele é vosso genro. Porque não tentais negociar com ele?
- Estou numa posição deveras desvantajosa para negociar com D. Fernando - replicou o rei. - Ele bem poderia aproveitar esta oportunidade para se apossar do nosso reino. E eu prefiro morrer, a cair-lhe nas mãos!
(...)
Afonso começou a conformar-se com a ideia (da fuga). O reino era a obra da sua vida, uma obra que ele construía há mais de quarenta anos, desde aquele dia de São João Baptista, em que montara o seu cavalo, a fim de o guiar para a sua primeira batalha, no campo de São Mamede. E esta obra, que tanto trabalho, sacrifício e persistência lhe custara, corria o perigo de se esfumar. Porque Afonso estava convencido de que el-rei de Leão se apossaria de Portugal, caso ele se lhe rendesse. E ele não queria continuar a viver, se isso significasse assistir ao desmoronar da sua obra.
Afonso pôs-se pálido, o que lhe realçava os olhos raiados de sangue. O cabelo, usado agora mais curto, estava quase todo branco e começava a rarear-lhe no alto da cabeça. Ao vê-lo assim, afundado na sua cadeira, os outros olhavam-no como se, pela primeira vez, se apercebessem de que o seu soberano, o grande Afonso Henriques, aquela lenda viva, a quem tantos atribuíam forças sobrenaturais, estava a ficar velho.

Daqui

6 comentários:

Jocamartinho disse...

Encontrei-a nas "Horas Extraordinárias" da Rosário e fiz a ligação ao seu blogue.
Dei uma leitura ligeira (por agora) e gostei do que vi e do que li. Parabéns.
Aprecio muito o romance histórico. Já publiquei um; estou a juntar elementos para outro, ainda não definido, mas que se prende com o casamento de D. Dinis com Isabel de Aragão.
Estive em Saragoça, no castelo de Aljaferia, de onde partiu, muito nova, a que veio a ser Isabel de Portugal, dita rainha santa.
Perdoe continuar a usar o mesmo pseudónimo já utilizado no blogue da Rosário.
Serei visitante habitual do seu, que considero muito interessante.

Cristina Torrão disse...

Obrigada pela sua visita e os seus parabéns.

O casamento de D. Dinis com D. Isabel é um tema inesgotável. Dei uma versao, no meu romance, mas pode haver muitas outras, gostaria de ler muitas outras. É pena que, em Portugal, nao se peguem mais vezes nessas coisas. Ainda há tanto por descobrir, discutir, romancear... O problema é que talvez nao haja mercado para isso...

Jocamartinho disse...

Sobre o casamento, fiz um pequeno trabalho que foi passado a banda desenhada e traduzido em inglês e castelhano (espanhol).
Como sabe, a rainha Isabel, que o avô chamava "a rosa da Casa de Aragão", viveu os primeiros anos com seu pai,D. Pedro III e teve muitos pretendentes, pois Eduardo I de Inglaterra desejava-a para seu filho, assim como Roberto de Anjou.
O casamento deu-se por procuração, em Barcelona, através dos conselheiros João Velho, Vasco Pires e João Martins. Isabel viu D. Dinis, pela primeira vez, em Trancoso, com bodas a 24 de Junho de 1282 (supõe-se ser esta a data), numa igreja dita de S. Bartolomeu o Velho, de que não restam vestígios - em Trancoso há uma pequena capela que é do séc. XVIII (1778), erigida em comemoração do acontecimento.
Encontrei no castelo de Aljaferia uma publicação de duas autoras aragonesas, que ficcionaram as bodas. Emprestei esse livro e não obtive retorno dele; acontece, também, que a minha memória não registou o nome do requisitante e arrisco-me a perdê-lo ou a adquirir outro.
Ando a colectar documentos e bibliografia para poder fazer uma obra de ficção, sem descurar o que é factualidade histórica, pois quero ser rigoroso e gosto de consultar as fontes e, se possível, os lugares.
Tenho muito apreço pelos autores que ficcionam sobre factos e personagens históricos, porque para além da imaginação livre, necessitam de um acervo considerável de documentação e investigação.

Cristina Torrão disse...

Dá realmente muito trabalho, a investigacao costuma demorar mais do que a escrita propriamente dita.
Desejo-lhe boa sorte, caro Jocamartinho!

Rita disse...

Olá, também concordo com o que escreveu acerca deste episódio. D. Afonso Henriques apesar de ser um óptimo militar, também era um político muito consciente da realidade da independência portuguesa. A fuga deve de ter sido a única solução...

Bom fim-de-semana!

Cristina Torrão disse...

Obrigada, igualmente, Rita!