Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de outubro de 2012

Naquele Tempo (10)


A existência na Península Ibérica de vários reinos independentes não impediu que os habitantes de cada um deles, sobretudo os mais cultos, se considerassem como Hispani, isto é, como habitantes de uma entidade geográfico-cultural que sucedia à antiga dioesecis Hispaniarum do tempo do Império Romano. O fenómeno da restrição do conceito de «espanhóis» aos súbditos do Estado espanhol é, como se sabe, um fenómeno moderno. Antes disso, a concepção da Península Ibérica como um todo, com a sua identidade própria, independentemente dos reinos que a compunham, foi uma ideia corrente e indiscutível durante toda a Idade Média, como demonstrou já há meio século António Maravall, entre vários outros autores. Este fenómeno, todavia, não impedia os súbditos de cada um dos reinos de terem igualmente consciência da sua identidade como Castelhanos, Leoneses, ou Portugueses.

A nobreza medieval portuguesa no contexto peninsular, página 311


28 de outubro de 2012

Livraria Nova

Em época de crise, a Virgínia do Carmo revelou coragem ao abrir a Livraria Poética, em Macedo de Cavaleiros. Não será fácil, quando anda toda a gente a contar os tostões, ainda para mais, numa região pouco povoada, como é o Nordeste Transmontano. Mas a Poética não é só livraria, é também ponto de encontro, de discussão e tertúlias, entre outras inciativas, como se pode constatar no seu blogue.

Agora, a Virgínia deu um outro passo em frente e criou a Poética online, com catálogo e promoções próprias, além de uma boa seleção de autores transmontanos.

Lembro que a Virgínia do Carmo já publicou três livros de poesia: Uma luz que nos nasce por dentro (Lua de Marfim, 2012), Sou, e sinto (Temas Originais, 2010) e Tempos Cruzados (Pé de Página Editores, 2005).


25 de outubro de 2012

O Pior Livro

Hoje estou também no nlivros, do Iceman, na rubrica "O Pior Livro".

Escolher o pior livro que se leu é tão, ou mais, difícil como escolher o melhor. Normalmente, mesmo os livros de que não gostamos, contêm aspetos interessantes. Mas, enfim, puxando pela cabeça, sempre se encontra alguma coisa ;-)


Reinventar a Vida


Este não é mais um livro de auto-ajuda, não nos promete milagres nem soluções fáceis, do tipo «basta acreditar», ou «pense positivo». Pelo contrário: se realmente quisermos mudar algo na nossa vida, temos de aprender a aceitar a nossa dor e as nossas fraquezas, em suma, aprender a aceitar-nos, com todos os nossos defeitos e virtudes. Os psicólogos americanos Jeffrey Young e Janet Klosko ensinam-nos a fazê-lo, mas não escondem que o caminho para lá chegar pode ser penoso.

Eu li a versão alemã: Sein Leben neu erfinden.


Muitos de nós torcem o nariz à possibilidade de procurar a causa para os nossos esquemas comportamentais na infância. Enquanto uns adotam atitudes do género: «Claro que sofri na infância, quem não sofre? Mas não me causou qualquer dano», outros acham que essa procura serve apenas para atirar as responsabilidades pelos nossos problemas para cima dos pais.
Na verdade, quem pertence ao primeiro grupo, apesar de tentar convencer-se a si próprio de que as vivências da infância não o afetaram, provavelmente, não consegue sair das suas armadilhas, ou seja, será sempre, ou subserviente, ou medroso, ou terá sempre a impressão de que vale menos do que os outros, ou achará que nunca receberá o amor de que precisa, de que ninguém o compreenderá, etc.
O segundo grupo parte de um pressuposto falso, pois só podemos mudar algo na nossa vida se soubermos a sua origem, assim como só se pode combater uma doença se conhecermos a sua causa. Tudo o resto não passará do remediar e do desenrascar, o que, a nível psicológico, significa ignorar, recalcar, menorizar, relativizar. Depois, vêm os esgotamentos e as depressões. Uma das grandes facetas da depressão é negarmo-nos a nós próprios, ignorar aquilo que somos e que desejamos. E, muitas vezes, aquilo que desejamos está tão recalcado e escondido, que já nem fazemos ideia de que se trata.

Procurar a origem dos nossos problemas na infância não implica o ilibar das responsabilidades. Pelo contrário! Implica, precisamente, aprender a assumir as responsabilidades! Só ao aceitar o facto de os pais - fosse por ignorância, por incapacidade, ou por não ligarem - não terem orientado suficientemente a criança, ou terem exigido demais dela, se pode corrigir essas falhas. Não se trata de nos limitarmos a culpar os pais (que são apenas humanos, apanhados nas suas próprias armadilhas), mas, sim, de aprendermos a preencher, pela primeira vez, os vazios da nossa vida.

A maioria dos pais age da melhor maneira que sabe. Mas eles erram! Aceitar que os pais não eram, nem são, as pessoas destituídas de defeitos que idealizámos na infância, ajuda-nos a admitir que nem tudo correu como devia ser, ou seja, começamos a responsabilizar-nos pelas nossas falhas e carências, o ponto de partida para, realmente, reinventarmos a nossa vida.

Este livro ensina-nos que não há soluções fáceis. Só abrindo as feridas as podemos sarar.



23 de outubro de 2012

A Nucha

Para quem gosta de animais, a história da Nucha, que foi adotada depois de viver cerca de dez anos num albergue, é irresistível.


Uma história com final feliz. É bonito, principalmente, quando acontece na vida real.




21 de outubro de 2012

Nostalgia

O momento alto do Telejornal de ontem foi ter tornado a ouvir o Mário Soares a falar francês.
Só não percebi se a frase: «o govrmã é mais papista do que o papa» deve ser entendida como crítica, ou elogio...




Lá fora a lutar pela vida

Nos inícios de 1970, ainda antes da revolução, o meu primo, que não teria mais de três anos, estava de férias com os pais e os avós (que também são meus) no Algarve. Encontrando-se em Vila Real de Santo António, resolveram dar um saltinho a Espanha de ferryboat (ainda não existia a ponte sobre o Guadiana). Mas eis que os meus avós se viram impedidos de embarcar, por não terem passaporte (sim, ainda era preciso passaporte). Depois do primeiro momento de desilusão, encolheram os ombros. Paciência! Os meus tios que fossem com o miúdo, afinal, eram só umas horas e encontrar-se-iam ao fim da tarde.

O meu primo, no entanto, ficou muito triste por os vóvós não poderem ir com eles e, de lagrimita no olho, despediu-se com um: «vóvó, da p'óxima vez ti'as o passapo'te, 'tá bem?» Aquilo foi demais para um coração de avó. Depois do embarque, com o miúdo a dizer-lhe adeus do ferryboat, ela respondeu ao aceno, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Nisto, uma senhora que estava a seu lado, cheia de piedade, disse algo como: «Custa muito vê-los partir, não é?» A minha avó caiu em si e remeteu-se ao silêncio, com vergonha de dizer que eles iam só dar um passeio ao outro lado.

Lembrei-me ontem desta cena, ao ver o Telejornal. Tenho compreensão pela angústia de todos aqueles que sentem não ter condições para viver condignamente no nosso país. Não é fácil emigrar, ainda por cima, quando a decisão não parte de uma escolha pessoal e, sim, da força das circunstâncias. Mas é preciso chorar baba e ranho no aeroporto e escrever cartas de dramalhão ao Presidente da República?

Tenho o maior respeito pelo pessoal de enfermagem, aliás, por todos aqueles que trabalham no campo da Medicina. Mas, meu Deus, aquela gente, a maior parte deles jovens, ainda sem família, não vão para o fim do mundo! Vão para Inglaterra, que fica a pouco mais de duas horas de voo de Lisboa! Não estará na hora de deixar de nos lamentarmos como os «coitadinhos que vão lá para fora lutar pela vida»? Eu vivo há vinte anos na Alemanha e ainda não fui internada por depressão!

Parafraseando um dentista alemão, quando fui piegas no seu consultório: «um bocadinho de mais coragem aventureira! Não envergonhemos o Vasco da Gama!»

19 de outubro de 2012

O Encantador de Cavalos

Devido a críticas pouco favoráveis, só recentemente vi este filme, realizado e protagonizado por Robert Redford, em 1998. E tenho a dizer que as críticas estavam corretas. O enredo é previsível e contém incongruências; Robert Redford é velho demais para o papel que desempenha; Dianne Wiest também não está bem no seu papel de esposa de rancheiro, dando mesmo a impressão de o fazer com ironia, quando se pedia seriedade; há bastantes clichés sobre a vida no campo versus vida na cidade.

No entanto, tenho a dizer que gostei! E não só pelas excelentes paisagens de Montana. Este filme é honesto no seu propósito de contribuir para a harmonia entre humanos e animais. Trata os cavalos com respeito e dignidade. Tiro o meu chapéu a Robert Redford, que o conseguiu, sem cair na tentação de nos mostrar animais com capacidades fora do normal. O cavalo ali retratado é simplesmente isso: um cavalo.


Além disso, o filme também não nos mostra milagres. Mostra, sim, que qualidades como paciência, respeito e perseverança nos ajudam a atingir o nosso objetivo e nos tornam mais felizes. Mostra-nos como os animais nos podem tornar mais felizes; que a felicidade suprema pode estar no cavalgar um cavalo que amamos. Isso não é demagogia, nem cliché, é mesmo verdade! E é-nos transmitido, no fundo, sem grandes dramatismos.


Uma última palavra para certos diálogos bem conseguidos, quando se trata de sarar feridas e transpor obstáculos entre relações humanas, principalmente, a forma como a personagem de Robert Redford devolve a confiança e a auto-estima à jovem traumatizada pelo acidente (a Scarlett Johansson, bem novinha).


Tudo isto nos ajuda a passar por cima do enredo fraco, com cenas desnecessárias, algumas tornando-se patéticas. Ou seja: as melhores cenas são mesmo aquelas em que o cavalo é a personagem principal.




17 de outubro de 2012

Da atmosfera do romance histórico

Continuando o assunto iniciado no post anterior, tratemos agora da tão apreciada «atmosfera do romance histórico», com incidência na época medieval, pois é sobre ela que escrevo. Yourcenar (citada por Orhan Pamuk) chamou a atenção para o facto de a linguagem usada antes do século XX não ter sido gravada. E eu acrescento: nenhuma cena foi fotografada. Também pouco sabemos àcerca do quotidiano medieval e nunca viremos a saber.


O Prof. Mattoso chama-nos a atenção para o facto de aquilo sobre o que se escreve não ser, necessariamente, aquilo que se pratica. Para uma época como a Idade Média, há que contar com uma grande discrepância entre os registos que chegaram até aos nossos dias e a vida real das pessoas.

Para dar um exemplo: por se explicitar, nas cantigas de amor, uma certa forma de amar, não quer dizer que assim fosse. Quer, sim, dizer como deveria ser - o modelo. Não esqueçamos que D. Dinis compôs diversas dessas cantigas, onde fazia a apologia do amor platónico, mas, na prática, apreciava mais o amor físico. E, se tivermos em conta que o rapto era um costume muito disseminado entre a nobreza (ou seja, muitos nobres, não tendo a concordância da família de uma donzela para casar com ela, não hesitavam em raptá-la), constatamos a discrepância entre a teoria e a prática.

Por outro lado, havia uma outra grande discrepância: entre o comportamento da nobreza e o do povo, que constituía mais de 95% da população. O Prof. Mattoso refere no seu livro Naquele Tempo que a virgindade feminina não era importante entre o povo, nem sequer o casamento religioso, que raramente acontecia. Não esqueçamos que os clérigos eram das poucas pessoas que sabiam ler e escrever. Se escreviam textos onde faziam a apologia de certos dogmas, é preciso notar que: primeiro, o povo não estava em condições de ler esses textos e, segundo, não havia quem os contradissesse na forma escrita, a fim de deixar fontes, para a posteridade, com outro tipo de opiniões e convicções.

Além disso, há assuntos pouco abordados, nas fontes medievais, como a homossexualidade, tanto masculina, como feminina. E havia grandes diferenças regionais nos costumes e tradições, ou seja, aquilo que era aceitável numa terra, poderia ser considerado absurdo noutra. Por isso, é um grande erro usar um único modelo para o comportamento medieval, tanto a nível de espaço, como a nível de tempo. Não esqueçamos que a expressão "Idade Média" engloba cerca de mil anos da História da Humanidade.


Claro que há certos aspetos que nos ajudam a criar uma atmosfera medieval: as pessoas aqueciam-se à lareira e usavam a luz das velas para iluminar as casas; as comunicações à distância, quando existiam, eram difíceis, nunca se sabia se uma carta chegava ao seu destino (não esquecendo que só o clero e a nobreza comunicavam por carta); a riqueza media-se pela quantidade de terras, cavalos e restante gado; dominava, nas povoações, o cheiro a dejetos, pois não havia instalações sanitárias, nem serviço de recolha de lixos, etc. Mas, na verdade, tirando estes aspetos do conhecimento geral, pouco mais podemos dizer sobre o comportamento e a atmosfera medievais. Resta-nos usar a imaginação.

Relembro a frase com que o Prof. José Mattoso inicia a biografia de D. Afonso Henriques: Não é preciso ser historiador profissional para perceber que não se pode traçar a biografia de uma personagem medieval sem uma grande dose de imaginação.

15 de outubro de 2012

Da linguagem no romance histórico

Quando se fala sobre a linguagem do romance histórico, muita gente apelida de "anacronismo" o facto de pôr pessoas da Idade Média a falarem como nos nossos dias.
Eu discordo!
Porquê? Porque o romance histórico é sempre uma "tradução"!

A fim de melhor expor o meu ponto de vista, começo por citar o escritor nobelizado Orhan Pamuk, num excerto do livro sobre o qual dei minha opinião:

O facto de, como diz Yourcenar, a linguagem de todos os dias não ter sido gravada antes do aparecimento do romance, leva-nos a pensar no absurdo, ou mesmo na impossibilidade do que é designado por «romance histórico». Quando se refere ao «inevitável simplismo» dos romances históricos e à ingenuidade dos seus leitores, Henry James não estava a falar só de palavras, mas também da dificuldade em penetrar no espírito de uma época muito diferente da nossa. Quando eu estava a escrever o meu romance histórico O Meu Nome É Vermelho, tinha consciência de que, ao ler meticulosamente os documentos relativos à corte otomana, registos de negócios e documentos públicos, a fim de encontrar elementos precisos sobre a vida quotidiana da época, isso não bastaria para ultrapassar o abismo que me separava dela e compreender profundamente essa época. Decidi então revelar  e até exagerar os aspetos concretos e evitar a especulação interpretativa sobre a linguagem corrente, o diálogo praticado quotidianamente no século dezasseis, em Istambul, elemento que, de facto, desconhecemos.

Desconhecemos o diálogo praticado quotidianamente no século XVI, em Istambul. Como desconhecemos o diálogo praticado quotidianamente nos séculos XII e XIII, em Portugal. Desconhecemos e é impossível virmos, algum dia, a conhecer. Como disse Yourcenar, citada por Orhan Pamuk, essa linguagem não foi gravada. Somos forçados a "traduzir" aquilo que julgamos que as pessoas sentiram e disseram. E, ao fazer uma tradução, o melhor é usar uma linguagem que toda a gente entenda!

Claro que devemos, tanto quanto for possível, tentar transmitir um pouco da atmosfera da época (ou, pelo menos, aquilo que julgamos que o tivesse sido). Mas passar para os diálogos expressões que se leem em textos e crónicas antigas é um método muito discutível. Além de dificilmente dar um retrato fiel, dificulta muito a compreensão do texto.

Como diz o Prof. José Mattoso, aquilo que sabemos da Idade Média é-nos dado através de documentos oficiais, redigidos por uma elite. Mas não era assim que as pessoas falavam, nem sequer os nobres, nem sequer o rei. Hoje em dia, também não falamos uns com os outros como se estivéssemos a redigir uma certidão, ou a fazer um requerimento. Se não houvesse gravações, daqui a 500 anos ainda nos punham a despedirmo-nos (oralmente) de um amigo deste modo: "confiando na resolução pronta deste meu problema, despeço-me, com os meus melhores cumprimentos".

Usar expressões das cantigas de amigo e de amor, para declarações de amor, ou situações românticas, também não será boa ideia, pois os poemas não costumam imitar a linguagem do dia-a-dia. A não ser que a personagem cite alguma cantiga que conheça, mas, nesse caso, é aconselhável que o refira.




13 de outubro de 2012

O romancista ingénuo e o sentimental


O conteúdo deste livro, com tradução de Álvaro Manuel Machado, consiste em seis conferências dadas pelo escritor nobelizado Orhan Pamuk, na Universidade de Harvard, partindo do ensaio de Schiller: Sobre a Poesia Ingénua e a Sentimental. Orhan Pamuk transporta a teoria para o romance, usando a sua experiência, tanto como autor, como leitor. Pelo meio, ficamos a saber um pouco sobre a sua vida e o meio literário turco.

Como escritora, não pude deixar de apreciar passagens como:

Um traço característico do romance é o de que o escritor está presente no texto sobretudo nos momentos em que nos esquecemos mais dele.

Nos romances bem construídos, tudo está relacionado com tudo, e esta enorme teia de inter-relações forma a atmosfera do livro e leva ao seu centro secreto.

Uma das razões que me leva a amar a arte de escrever romances é que ela obriga-me a ultrapassar o meu próprio ponto de vista sobre o mundo e a tornar-me outra pessoa.

O poder de sugestão e os limites universais do romance são determinados pela sua capacidade de partilhar com os leitores sensações e experiências da vida quotidiana.

Porém, e não obstante momentos agradáveis como estes, confesso que a leitura se me tornou bastante exaustiva, ao ponto de eu, em certas alturas, estar prestes a largar o livro, sentido-me como a senhora da pintura que ilustra a capa. Espero que, nos seus romances, Orhan Pamuk consiga cativar melhor os leitores.




11 de outubro de 2012

É sempre uma surpresa

O livro de Mo Yan, um romance com o título Peito Grande, Ancas Largas, estava à venda, não há muito tempo, na Fnac, ao desbarato.


Pois...


O Tratado que não houve (ou que houve, mas não com o conteúdo que lhe costumamos atribuir)

Assinalei, a 5 de Outubro, mais um aniversário sobre o Tratado de Zamora. Nesse dia, porém, João José Cardoso, através de uma nota na barra lateral do Aventar, chamava a atenção para um texto seu, que defendia que o Tratado de Zamora muito simplesmente não existe e nem é provável que tenha existido.

Bem, eu estava consciente de que não será correto atribuir a esse tratado a fundação da nação portuguesa independente, como, aliás, aqui e aqui referi. Mas a hipótese de ele nem sequer ter existido fez-me pegar, novamente, na biografia de D. Afonso Henriques, da autoria de José Mattoso (Temas e Debates 2007). E, já agora, chamo a atenção para duas coisas:

Primeiro, eu não escrevo livros históricos e, sim, ficção baseada na História, pelo que, nos meus livros, há muita imaginação e subjetividade. Quem lê um romance, porém, deve ter em conta que se trata disso mesmo.

Segundo: li a citada biografia há quatro anos, tirei as minhas notas e nunca mais lhe havia pegado, pelo que não estava já bem certa do que o Prof. Mattoso dizia acerca deste assunto.

Resolvi, assim, citar as passagens que me parecem mais relevantes, lembrando que o Prof. Mattoso não é dono da verdade (algo que ele, aliás, admite; atentemos à primeira frase deste livro: Não é preciso ser historiador profissional para perceber que não se pode traçar a biografia de uma personagem medieval sem uma grande dose de imaginação). Mas ele é, sem dúvida, um dos melhores historiadores portugueses de todos os tempos. Acima de tudo, é honesto e empenhado em esclarecer as mentiras e efabulações criadas durante o Estado Novo, que, infelizmente, ainda pairam no nosso imaginário coletivo.


Extratos tirados das páginas 207 a 214: 

No Verão de 1143, chegou ao reino de Leão o cardeal legado da Sé Apostólica Guido de Vico (…) O legado vinha, pois, à Hispânia procurar o apoio político e económico de que o papa necessitava. (…) Guido parece ter-se dirigido primeiro a Portugal. Há informações acerca da sua estadia no Porto e em Coimbra.
(…)
De Coimbra, o legado dirigiu-se a Valhadolid, onde, em 19 e 20 de Setembro, celebrou um concílio.
(…)
Depois de ter encerrado o concílio, o legado papal dirigiu-se a Zamora, onde estava a 4 e 5 de Outubro, e onde se reuniu com os reis de Portugal e de Leão. A este encontro chamam os historiadores modernos a «conferência de Zamora». Tem sido considerada como a reunião que selou o acordo entre Afonso Henriques e Afonso VII, que marcou o reconhecimento pelo segundo da dignidade régia do primeiro, e que permitiu a celebração de um tratado, que talvez incluísse uma repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos, mas do qual, infelizmente, não existe nenhum texto.
(…)
A 13 de Dezembro de 1143, Afonso Henriques dirigiu uma carta ao papa [Claves regni celorum] declarando que tinha feito homenagem à Sé Apostólica, nas mãos do cardeal Guido, como cavaleiro de São Pedro (miles Sancti Petri) (…) Também se torna quase certo que esta decisão obtivera o acordo do cardeal, uma vez que a carta declara que o rei tinha prestado homenagem nas suas mãos. (…) Estes factos significam, por sua vez, a realização de conversações anteriores, talvez por ocasião da passagem de Guido por Coimbra [ou seja, antes da conferência de Zamora].
(…)
Se Afonso VII teve então conhecimento da homenagem que Afonso Henriques diz ter prestado nas mãos do legado (…) causa alguma surpresa verificar a pouca resistência que Afonso VII parece ter oferecido a este acto que punha em causa a sua autoridade de suserano de toda a Hispânia (…) e que contrariava o pacto de Tui de 1137.

Conclusões:
1 - Será mais correto falar da «Conferência de Zamora» do que do «Tratado de Zamora».
2 - A ter havido um tratado, debruçou-se, essencialmente, sobre a repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos.
3 – Não se nega, porém, que o encontro terá marcado o reconhecimento pelo segundo [Afonso VII] da dignidade régia do primeiro [Afonso Henriques], embora o imperador não tenha prescindido da condição de vassalo do primo, como havia feito, seis anos antes, em Tui.
4 – Como aqui disse, não é um erro considerar Portugal uma nação independente desde 1143 (embora não propriamente a partir de 5 de Outubro), já que Afonso Henriques, antes do encontro de Zamora, terá prestado homenagem nas mãos do cardeal, como se depreende da carta claves regni.

Trata-se, em suma, de um processo complexo e demorado (como o eram, muitas vezes, os assuntos medievais), cheio de ambiguidades entre os dois primos, netos do imperador Afonso VI. O reconhecimento oficial da independência de Portugal só se deu a 23 de Maio de 1179, data da Bula Manifestis Probatum, de Alexandre III. E aqui está ela, copiada da página da Direcção-Geral de Arquivos (para a visualizar com mais pormenor, aceda ao site):
 


9 de outubro de 2012

Cães perigosos



Graças à internet, consegui ver o programa Linha da Frente, sobre cães perigosos, que a RTP transmitiu a 4 de Outubro.

Duas meninas, salvo erro, de sete e oito anos, foram mordidas. Uma ficou sem grande parte da orelha, à outra, tiveram de coser a cabeça quase toda. As duas crianças, profundamente traumatizadas, não recebem qualquer tipo de apoio psicológico.

Uma outra família encontra-se completamente transtornada pela morte de uma bebé de vinte meses. Não passam de farrapos humanos. A irmã, de oito anos, assistiu ao massacre. Também estas pessoas não recebem qualquer tipo de apoio psicológico.

O carteiro, que foi atacado por três cães boxer, teve mais sorte. Ainda jovem e bem constituído, apesar do terror que o atingiu (tão bem confessado por ele), livrou-se dos cães, ao conseguir, com a força do desespero, afastar-se da casa que os animais guardavam.

Excetuando a bebé de vinte meses, as outras vítimas foram atacadas na rua. E, agora, deixem que vos diga que uma das coisas que mais me incomoda, quando estou em Portugal, é passar numa zona de vivendas, onde o risco de sair um cão furioso, de um portão entreaberto, é enorme. Não há ninguém que obrigue os donos/habitantes dessas casas a responsabilizarem-se pelos seus animais?! Usam os cães como armas ou objetos, para lhes guardarem as casas, e, como não têm paciência nem pachorra para tratar deles convenientemente (dar o passeio e integrá-los na família, por exemplo), abrem-lhes o portão para eles darem as suas voltas. Na minha opinião, é de uma arrogância incrível! Mostra a sua pobreza de espírito!

O programa da RTP, da responsabilidade da jornalista Patrícia Lucas, pecou por não mostrar lares, onde os cães estão integrados na família, sendo uma companhia insubstituível para as crianças. O que, como todos sabemos, representa a esmagadora maioria dos casos. Conheço inúmeras famílias que assim vivem, com os cães perfeitamente integrados, cuja única ambição é servir os seus e receber mimos. É claro que os humanos têm de fazer a sua parte. Melhor do que ninguém, os animais mostram-nos que só recebe quem dá, ensinam-nos que o intercâmbio é o único garante para uma relação saudável. O programa da RTP mostrou donos e um criador de cães rottweiler conscienciosos, assim como treinadores da GNR, que têm os seus animais sob controlo. Mas foi pouco. Foi muito pouco. Principalmente, no Dia do Animal, que devia ser aproveitado para melhorar o entendimento entre humanos e caninos e, não, para aumentar preconceitos, que podem levar a novos abandonos e tragédias.


Um cão é um ser vivo com cérebro e vontade próprios e, se ninguém o socializar, pode atacar de forma imprevisível (ou não tão imprevisível como isso, pois a maior parte deles defende o seu território, o que entendem como sua obrigação). Porque é que isto não entra na cabeça desses mentecaptos que os adquirem apenas para os ter presos a uma corrente e os soltarem sem vigilância? Apenas para intimidarem os outros, numa tentativa de colmatarem carências próprias? Para que é que o proprietário de uma vivenda quer três boxer, se os deixa vegetar no jardim? Para que ataquem crianças a caminho da escola? Ou carteiros, ou qualquer outra pessoa, que tenha o azar de passar por lá, quando os cães andam soltos, cães que não aprenderam a distinguir o que é perigo do que não é?

Dói pensar nessas famílias e, principalmente, nas crianças, a quem ninguém lhes mostra como minorar os efeitos de tais traumas. Não há maneira, através dos seus médicos de família, de as encaminhar para profissionais competentes?

Mas não dói menos pensar nos animais que, no fundo, mais não são do que instrumentos nas mãos de irresponsáveis. Animais frustrados e/ou traumatizados, que acabam nos corredores da morte dos canis.


A ignorância é muito triste. E perigosa!


7 de outubro de 2012

A Melhor Capa da LER


No ano em que comemora o seu 25º aniversário, a revista LER lançou uma iniciativa para eleger a sua melhor capa de sempre. Mesmo não conhecendo a maior parte das capas da revista, pode-se votar entre as nove que se destacaram numa primeira fase de votação, até 17 de Outubro. As capas "finalistas" podem ser visualizadas aqui.


6 de outubro de 2012

Dia Mundial do Animal

O Dia Mundial do Animal (dia de São Francisco de Assis), foi a 4 de Outubro, mas há uma série de iniciativas por todo o país, durante este fim de semana, nomeadamente, ações de adoção, como esta:


Recomendo, ainda, a leitura destes posts:

Ontem a RTP portou-se muito mal
Portugal é um País Pequeno
Olé!
Dia do Animal

5 de outubro de 2012

869º Aniversário do Tratado de Zamora

Assinatura do Tratado de Zamora
Hoje, que passa mais um ano sobre este Tratado, resolvi voltar ao assunto, controverso, como o prova a troca de comentários com o Juvenal, em Fevereiro passado.

Costuma assinalar-se a data de 5 de Outubro de 1143 como o da independência de Portugal, inclusive, nos livros escolares. É um facto que, no Tratado de Zamora, Afonso VII, o imperador da Hispânia, reconheceu o título de rei a seu primo e Portugal como reino (esta é de facto a data em que deixa de existir o Condado Portucalense). Contudo, Afonso VII não prescindiu da vassalagem de Afonso Henriques. É verdade que entre o nosso primeiro rei e o imperador da Hispânia nunca houve uma cerimónia de vassalagem, ou seja, Afonso Henriques nunca lha prestou oficialmente. Mas assinou dois tratados (Tui e Zamora), onde estava escrito que ele lhe devia vassalagem

Repare-se: isto nunca impediu Afonso Henriques de se considerar um rei independente. Agiu como tal desde a Batalha de Ourique, em 1139, onde foi aclamado rei pelos seus guerreiros. Mas o verdadeiro reconhecimento do seu título real só ficou estabelecido na Bula Manifestis Probatum, de 23 de Maio de 1179, assinada pelo papa Alexandre III.

José Filipe Photo
No entanto, ao refletir sobre a troca de comentários com o Juvenal, considerei que, realmente, não é errado considerar Portugal um reino independente desde 1143, já que, por alturas do Tratado de Zamora, Afonso Henriques terá prestado homenagem ao cardeal Guido de Vico, legado papal, que lhe prometeu a proteção da Santa Sé, ou seja, a independência em relação a qualquer poder temporal, o que incluía o do imperador da Hispânia.

Este ato, no entanto, não ficou registado por escrito. Seguindo as instruções do cardeal Guido de Vico, Afonso Henriques enviou a Roma a carta claves regni, mas, na sua resposta, em 1144, o papa Lúcio II não foi conclusivo, intitulando o nosso primeiro rei de dux (duque) em vez de rex (rei).

Mas, enfim: Portugal pode ser considerado um reino independente desde 1143, já que o cardeal Guido de Vico aceitou a homenagem de Afonso Henriques, libertando-o do jugo de Afonso VII. Não será é muito correto apontar o Tratado de Zamora como prova documental deste facto, já que, nesse documento, tanto Afonso Henriques, como o cardeal (!) dão o dito por não dito. E isto, nas costas do imperador!

Resumindo:

25 de Julho de 1139, Batalha de Ourique - Afonso Henriques é aclamado rei de Portugal pelas suas tropas e não mais deixa de utilizar este título;

5 de Outubro de 1143, Tratado de Zamora - O imperador Afonso VII reconhece oficialmente o título real a Afonso Henriques, não prescindindo, porém, da sua vassalagem. Por outro lado, antes da assinatura do Tratado, numa cerimónia discreta (poder-se-á dizer "secreta"; de qualquer maneira, às escondidas do imperador), o cardeal Guido de Vico aceitara a homenagem de Afonso Henriques, libertando-o do jugo de Afonso VII.

1 de Maio de 1144, Bula Devotionem tuam de Lúcio II - O Papa aceita a vassalagem de Afonso Henriques (o que o liberta da suserania do imperador hispânico), mas intitula-o dux portucalensis;

23 de Maio de 1179, Bula Manifestis Probatum de Alexandre III - Afonso Henriques é reconhecido como rei e Portugal como reino independente.

Zamora, nas margens do rio Douro (Duero)

3 de outubro de 2012

Naquele Tempo (9)




A citação de hoje foi-me inspirada pelo surgir de um suposto evangelho, onde se poderá concluir que Jesus Cristo foi casado. Não vou pôr a sua credibilidade em causa, deixo isso para os peritos, mas aproveito para lembrar que o celibato eclesiástico não existia nos primeiros séculos do Cristianismo. A situação da Península Ibérica, no início da Idade Média, é referida pelo Prof. Mattoso, nas páginas 58 e 59, inseridas no Capítulo: “Barregão – barregã: notas de semântica”:

Por outro lado, parece também certo que a prática da igreja visigótica admitia a vida conjugal dos clérigos. É o que se deduz dos cânones 42 e 44 do concílio IV de Toledo, do ano 633 (…)
O casamento dos clérigos é, portanto, legítimo se a mulher não for viúva, repudiada ou prostituta, e se for celebrado com o acordo do bispo (…)
É possível, no entanto, que o casamento ou concubinato do clero fosse uma matéria altamente controversa, como parecem dar a entender outras prescrições conciliares e as situações que elas tentam reprimir, aparentemente sem grandes resultados. Não é provável que a situação de desorganização e conflito que se seguiu à invasão árabe e se manteve até ao século XI fosse muito propícia à generalização do celibato eclesiástico. De facto, ainda no concílio de Compostela de 1056 aparece uma prescrição acerca dos presbyteris et diaconibus coniugatis.

Mesmo depois da Reforma Gregoriana, no século XI, que instituiu, definitamente, o celibato eclesiástico, os hábitos custaram a mudar. Ainda no tempo de D. Dinis, séculos XIII/XIV, se tentava pôr na ordem os padres que, na impossibilidade de casarem, continuavam a manter barregãs, como um direito que lhes assisitisse. E, ao contrário do que se pensa, o povo medieval era muito condescendente nesses casos.