Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de dezembro de 2013

Passagem de Ano


Vamos entrar no Ano Novo na ilha Föhr - pronuncia-se como o coeur francês, mas com o f em vez do c. Föhr situa-se no Mar do Norte, num arquipélago perto da fronteira da Alemanha com a Dinamarca e não longe da costa (a travessia no ferry-boat demora cerca de 45 minutos).


Lá também há internet, mas resolvemos prescindir do mundo virtual, para nos lembrarmos de que já havia vida antes da blogosfera e do Facebook. Por isso, vou estar cerca de uma semana ausente.

Depois, conto-vos como foi, com fotografias, a máquina fotgráfica é o único equipamento digital que levamos ;-)

Boas entradas em 
2014

Mesmo que os tempos estejam difíceis, acreditemos que vão melhorar. Como diz o cartão de Boas Festas da Poética Editora, que seja «um 2014 de palavras sólidas e renascidas»!







27 de dezembro de 2013

A Máquina do Tempo 3


Isa, Céu, Lena e Cris

Quatro adolescentes, no seu caminho entre o 10º e o 12º anos, (1980/83), Liceu de Gaia, que hoje se chama Escola Secundária Almeida Garrett. Nos anos imediatos ao 25 de Abril, chamava-se, aliás, Escola Secundária Nº 1 de Vila Nova de Gaia. Mas dizíamos sempre «Liceu».

Já não sei como começámos com aqueles escritos. Histórias sem pés nem cabeça, que nos faziam rir até às lágrimas, onde nos vingávamos da família e dos professores e exorcizávamos a nossas dores de cotovelo, amores assolapados e todo o género de angústias e insanidades que atingem as adolescentes entre os 15 e os 17 anos. Às vezes, ilustrávamos essas histórias com desenhos infantis e absurdos, pois nenhuma de nós era virada para as Belas-Artes.
Escritos dispersos, em cadernos e folhas soltas, dos quais fiquei apenas com meia dúzia, para amostra (devia haver centenas).

Em meados deste ano, recebi um email de uma certa Maria do Céu. Mal queria acreditar! Nem acreditei mesmo, só depois de lhe perguntar se era a Céu de antigamente. Disse que gostava de seguir o meu blogue e que já lera todos os meus livros. E isto fez-me tão bem: a Céu gosta dos meus livros!
Começámos a recordar os velhos tempos, aquelas histórias, que até tinham mais pés e cabeça do que pensávamos. Lamentámos não as ter guardado… A Isa ainda deve ter muita coisa, disse a Céu, ainda bem que eu, ao menos, guardei a cassete.
Cassete? Que cassete?


Eu já não fazia ideia! Mas quisemos imitar A Flor do Éter, um programa de Herman José, na Rádio Comercial, com a equipa do costume: Vítor de Sousa, Margarida Carpinteiro, Lídia Franco e Ana Bola. Transformámos alguns dos nossos escritos numa radionovela humorística e assim nasceu No Reino da Miscelândia – Uma História Medieval. A Céu conseguiu que lhe digitalizassem a cassete e enviou-me o CD pelo correio, neste Natal.

Com a gravação nas mãos, senti um medo terrível de enfrentar essa viagem no tempo. Quando me resolvi, tive dificuldade em identificar a minha voz. Acabei por o conseguir por exclusão de partes. Reconheci as outras, porque só as lembro assim, não sei como são hoje.

Depois da primeira audição, fiquei confusa, angustiada mesmo. Vi-me transportada para uma altura em que a minha vida parecia uma batalha constante entre aquilo que eu queria ser e aquilo que os meus pais queriam que eu fosse.
Forcei-me a ouvir uma segunda vez, uma terceira… Dei comigo novamente a rir até às lágrimas. E com a sensação de que fiquei a conhecer-me melhor, de que redescobri algo meu, algo que me diz: «também eras/és assim».

Somos três miúdas (uma delas não participou na gravação), por vezes, histéricas, por vezes, ridículas. Mas temos sempre piada. O histerismo e o ridículo são próprios dessa idade em que se extravasam energias. Os textos são incrivelmente criativos, os nomes das personagens um verdadeiro tratado. Talvez publique aqui excertos...

Obrigada, querida Céu, por me teres levado nesta viagem no tempo!


26 de dezembro de 2013

Cena Natalícia



Houve uma tentativa de cantar É Natal, é Natal, mas não pegou, os homens e os três rapazes não estavam para aí virados. A avó, porém, recordou que o filho havia cantado o Silent Night num coro do liceu, um momento que nunca esquecera. E, a pedido dela, não obstante a desaprovação da tia Guiomar e da filha Clara, fez-se ouvir a voz grave e poderosa, mas desafinada, do tio Januário:

                        Siiiii-ilent Night

Os primos trocaram olhares. Se Clara se mostrava incomodada, o irmão Mário parecia encontrar-se literalmente sob tortura. A vontade de rir nos outros primos, porém, fê-lo descontrair-se um pouco.
Januário, com os seus olhos esbugalhados, expelia agora um ôôôôôô, que a Sandra não entendeu. Não fazia parte da canção que ela conhecia. Até que o tio completou a frase:

                        Ôôôôôô-ôly Night

Aquela maneira de ele pronunciar o Holy, sem o mínimo vestígio de um H expirado, provocou-lhe um ataque de riso muito forte e ela teve de tapar a boca com o guardanapo. Os rapazes estavam igualmente capazes de rebentar e também Clara esboçava um sorriso, embora a tia Guiomar continuasse de nariz torcido. Narciso e Carlos revelavam-se enfadados e Nelinha e Tininha quedavam-se sem qualquer expressão especial que pudesse revelar o que lhes ia na cabeça, assim como o avô, que se diria estar a dormir, não fossem os olhos abertos. Já a avó… A Sandra olhou para ela e pasmou: lágrimas de comoção caíam-lhe pelas faces.


25 de dezembro de 2013

A Máquina do Tempo 2



Imaginem que tinham escrito, com 16/17 anos, em conjunto com três amigas, uma história medieval.
Imaginem que a haviam gravado em cassete, ao estilo de novela radiofónica.
Imaginem que tinham esquecido a sua existência.
Imaginem que, passados mais de trinta anos, a tornam a ouvir, como por milagre.

Obrigada, querida Céu, por me teres levado nesta viagem no tempo!

P.S. Seguir-se-ão mais pormenores


21 de dezembro de 2013

A Máquina do Tempo

Este vai ser um Natal muito especial. Vou viajar no tempo, enviaram-me uma máquina do tempo pelo correio.

Imagem daqui


Depois, contar-vos-ei tudo sobre esta experiência única da minha vida...

19 de dezembro de 2013

Verão Quente



Um casal é encontrado baleado, deitado numa cama e semi-nu, numa mansão da Arrábida. Desmaiada, depois de cair das escadas, e com a arma do crime na mão, está Julieta, esposa do morto e irmã da morta (passe a expressão). A polícia conclui ter sido um crime passional e Julieta, que cegou e perdeu a memória com o trauma e a queda, passa dezasseis anos na cadeia.

Mas teria sido o caso assim tão simples? Vinte e oito anos depois, em 2003, o narrador trava conhecimento com Julieta e a filha, uma bebé à altura do crime. Julieta começa a recuperar a visão e a ter flashbacks  dos acontecimentos daquela tarde. Uma suspeita incomodativa atinge o narrador. Estava-se em agosto de 1975: Portugal à beira da guerra civil, Setúbal nas mãos da esquerda radical. A família de Julieta é considerada fascista. E o segundo suspeito do crime, em pleno processo de divórcio com a jovem assassinada, é um «capitão de Abril», um herói da revolução, cuja condenação não convém.

Estes são os interessantes pontos de partida para este romance que Domingos Amaral gere bem, construindo um enredo cheio de tensão, ao mesmo tempo que mergulha, de vez em quando, no Portugal revolucionário dos anos 70.

Porém, se o meu interesse era tanto, a ponto de muitas vezes me custar a largar o livro, houve aspetos que me incomodaram. O narrador interessa-se por aquele caso porque se apaixona pela filha casada de Julieta. E há um machismo latente em toda a sua atuação, um machismo que à primeira vista não o é, aquilo a que eu chamo um «machismo encapuzado» e que encontro amiúde, nos nossos dias. Sob a capa da aceitação dos direitos femininos, muitos homens ainda veem a mulher como um objeto sexual e nunca a chegam a pôr ao seu próprio nível. A isso se juntam clichés e medos bastante medievais, como a crença da mulher cruel, que tanto é doce como tirana, tanto é sincera como mentirosa, enfim, um ser instável, em quem nunca se pode confiar. Neste romance, essa influência medieva atinge o cúmulo, quando o narrador se pergunta se deverá mesmo apaixonar-se por alguém que se presta a enganar o marido. Recorde-se que ele próprio é o objeto da paixão da senhora, ou seja, mesmo que seja ele o motivo para a traição dela, não lhe cai bem!!!

Não obstante o enredo empolgante, há ainda dois aspetos que não me pareceram verosímeis, como o facto de uma pessoa que permaneceu cega e presa durante tantos anos revelar tanta descontração e ousadia, em certos momentos; ou o facto de uma mãe e uma filha que só começaram a conviver uma com a outra depois de esta atingir a idade adulta, se conhecerem e aceitarem tão bem (tendo ainda em conta que a filha foi criada pela avó paterna, que desprezava a antiga nora, a «assassina»).

Também o final me desiludiu profundamente por não corresponder às expectativas criadas durante o romance e por se servir de um outro cliché (um dos maiores do nosso tempo). Mas quanto a este assunto fico-me por aqui, pois correria o risco de revelar demais. Afinal, o interesse de um romance envolvendo um crime está precisamente na sua solução.

P.S. Um elogio para a excelente capa, da autoria de Maria Manuel Lacerda, da Oficina do Livro.



18 de dezembro de 2013

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (5)


É verdade que as práticas associadas ao casamento estavam profundamente marcadas por tradições pagãs, de origem romana ou germânica, se não mesmo anteriores, e que encaravam o casamento como a efectiva união de um homem e de uma mulher, sem que fosse necessária a intervenção de qualquer autoridade pública, civil ou religiosa. Tratava-se, pois, de um acto privado, envolvendo apenas os dois cônjuges. E apesar dos preceitos doutrinários e da disciplina que a Igreja foi impondo a este respeito, a verdade é que aquela matriz permaneceu muito arreigada ao longo de toda a Idade Média, sobretudo nos estratos populares, tanto do campo como da cidade. Tais situações eram socialmente reconhecidas, não deixando o homem e a mulher respectivos de ser considerados juridicamente como um casal cujos cônjuges se situavam no mesmo plano. É esta imagem, aliás, que ressalta dos contratos de cedência de prédios rústicos ou urbanos, em que marido e mulher recebem conjuntamente um bem para explorarem ou habitarem, mediante o pagamento de uma renda (prazo ou foro).
Mais vigilante e interveniente seria a actuação da Igreja face aos casamentos de membros da nobreza. Aqui, a acção eclesiástica esforçou-se por aplicar as regras definidas para o matrimónio, sobretudo a partir do século XII, com a reforma gregoriana.

A família - estruturas de parentesco e casamento, Bernardo Vasconcelos e Sousa e José Augusto de Sotto Mayor Pizarro - págs. 127/128


16 de dezembro de 2013

Empatia

«Os olhos e os ouvidos abertos, ver, ouvir e partilhar, oferecer algo de si. Empatia é a capacidade de perceber os sentimentos das pessoas que nos rodeiam.

Para o psicólogo familiar dinamarquês Jesper Juul, a empatia é a qualidade principal de que precisam pais, professores e educadores, quando lidam com as crianças. A partir daí, é possível alargá-la a toda a sociedade.

Levar as crianças a sério, estabelecer contacto com elas de igual para igual.»

(Palavras retiradas do jornal Kirchenzeitung, artigo de Marilis Kurz-Lunkenbein; tradução minha)

Porque é tão difícil ensinar a amar?
Talvez porque ensinar a amar não é dizer que devemos ser bons com os outros. Ensinar a amar é AMAR! E parece haver pouca gente que saiba amar...

Nota: tinha feito esta pergunta num comentário do blogue da Alice Alfazema. E ela deu duas respostas bonitas: na forma de um poema de Fernanda de Castro e de um texto de sua autoria.



13 de dezembro de 2013

A infanta D. Teresa (2)

A infanta D. Teresa partiu para a Flandres em 1184 e o rei seu pai morreria no ano seguinte. Já se previa que o seu fim estava próximo. Afonso Henriques andava à volta dos 75 anos e havia 15 que se encontrava impossibilitado de se descolcar pelos próprios meios (ver Desastre de Badajoz), o que muito o deveria ter debilitado. Aquela filha, de trinta e três anos, que nunca se havia separado dele, não o confortaria, nos seus últimos momentos, nem assistiria à sua morte. A separação deve ter sido muito difícil, para os dois.


            Quando os cavaleiros chegaram a Coimbra, a fim de escoltar a noiva com o seu dote, restavam a Teresa quatro dias para tratar dos últimos preparativos. Na véspera da partida, a infanta veio atirar-se em pranto aos pés do pai:
           - Não posso deixar-vos... Não sou capaz!
           - Não digas isso! Desejaste tanto este casamento!
           - Mas, então, porque me custa tanto partir? Talvez pudéssemos aguardar só mais um ano...
           - Acaba com isso, Teresa! O conde da Flandres enviou uma frota para te vir buscar. Quão incorteses seríamos, se a mandássemos de volta, sem ti!
           - Não quero saber de diplomacias e razões de estado! Só sei que não sou capaz de vos deixar.
           Afonso replicou, de voz muito calma e segura:
           - Deus confiou-nos missões e tarefas importantes, filha. Eu posso ser um velho fraco e enfermo, mas sou ainda el-rei de Portugal. Tu és a infanta, noiva do conde da Flandres. E cumprirás o teu dever, quando ele de ti é exigido!
           Teresa levantou-se e limpou as lágrimas. Mais do que nunca, admirou o pai, aquele velhinho mirrado, preso àquela cadeira, de cuja cabeleira imponente de outros tempos restava apenas uma coroa de cabelos brancos. Mas era ele que, naquela hora tão difícil, ainda possuía força suficiente para a chamar à razão. Ouviu-o dizer:
           - Já te roubei tempo demais, minha filha. Mereces ter, finalmente, a tua própria vida.

           Família real, nobres e criadagem (desde a mais fina aia, íntima das princesas, ao mais grosseiro moço de estrebaria): a corte juntou-se em peso, no recinto da alcáçova, a fim de se despedir da infanta, num processo mais triste do que um enterro, tantas lágrimas se vertiam, tanto fungar se ouvia.

          Quando Teresa desapareceu no interior da sua carruagem e o corso se foi lentamente pondo em movimento, as netas de Afonso afagaram-lhe as mãos trementes. Ninguém duvidava de que o velho rei vivia um dos momentos mais difíceis da sua vida.





10 de dezembro de 2013

A infanta D. Teresa (1)

No meu post evocativo da morte de D. Afonso Henriques, fazia referência a uma filha do nosso primeiro rei:

Afonso pensava muito em Teresa. Sabia-a feliz e segura na Flandres. Mas, de todas as mulheres que amara, era sem dúvida daquela filha que ele sentia mais saudades e seria ela quem mais gostaria de ter a seu lado.

De facto, Afonso Henriques parece ter tido uma relação muito especial com uma de suas filhas, que, por ironia do destino, ostentava o nome da avó: Teresa. Esta infanta permaneceu ao lado do pai até aos trinta e três anos, o que não era comum na época. As princesas costumavam casar muito cedo, algumas, ainda crianças.

Embora o Professor Mattoso, na sua biografia de D. Afonso Henriques (Temas e Debates 2007), não refira o assunto, o Professor Freitas do Amaral, o primeiro a escrever um livro deste género (Bertrand 2000), pergunta-se que razões teria havido para que a infanta fosse mantida durante tanto tempo na corte paterna.

No romance, esforcei-me por dar uma versão verosímil. Mas há uma outra história curiosa à volta de Teresa: acabou por casar com Filipe da Alsácia, conde da Flandres, que conhecera na cidade do Porto. Acontece que neste seu primeiro encontro, Filipe da Alsácia era ainda casado. Mas, assim que ficou viúvo, sete anos depois da sua passagem pelo Porto, pediu a infanta em casamento, pelo que enviou uma frota a Portugal apenas para a ir buscar.

Também se podem especular sobre as razões que levaram a este casamento, pois não existem fontes que o expliquem. Alguns historiadores admitem que o conde da Flandres tenha ficado bem impressionado com a figura e o porte da infanta, que se sabia ser culta, já que o próprio Afonso Henriques a apontou como sua sucessora, caso o infante D. Sancho falecesse sem filhos.

Eu gosto de acreditar na ideia de um amor à primeira vista, uma paixão a que Teresa teve de renunciar, sem imaginar que Filipe da Alsácia enviuvaria sete anos depois.

Certo de que completara a sua missão neste mundo, Afonso redigiu o seu testamento naquele mesmo ano, deixando grandes quantidades de dinheiro a obras pias. Estava convencido de que não aguentaria mais um Inverno. Sem se poder mover, os músculos iam-se-lhe mirrando e ele ia perdendo o apetite.
Mas não sobreviveu apenas àquele Inverno e a estação fria tornou-se uma tortura para o velho monarca, que ficava, então, mais sujeito a febres e, muitas vezes, não se conseguia aquecer, embora lhe pusessem na cama tijolos quentes embrulhados em mantas. Nesses tempos difíceis, Teresa era o seu maior consolo. Sentia-se tão dependente do carinho e dos cuidados da filha, que se lhe assomava impossível viver sem ela.
Ao mesmo tempo, a infanta fazia-lhe pena. O seu olhar perdera a energia de outros tempos e fixava-se muitas vezes numa distância imaginária, alheio ao que se passava à sua volta. Afonso sabia então que ela recordava a semana do Porto, esforçando-se por manter vivos os instantes que partilhara com Filipe da Alsácia, desde o primeiro ao último dia. Por mais que o velho rei desejasse ter aquela filha a seu lado, chegava a achar conveniente arranjar-lhe um esposo, que a fizesse olvidar de vez o conde da Flandres. Mas, quando lhe propunha tal, a infanta já nem se dava ao trabalho de recusar. Suspirava, simplesmente, e afagava as mãos do pai.