Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

2 de dezembro de 2013

Eurico, o Presbítero


Quando andava no liceu, este livro era de leitura obrigatória, penso que no 11º ano. Apesar disso, não me lembrava de quase nada, apenas de um clérigo em reflexões enlevadas e aborrecidas, pela montanha.

Aproveitando a sua existência como ebook gratuito no Projecto Adamastor, descarreguei-o para o meu Sony. Confesso que estava curiosíssima, pois, aquilo que achamos chato, aos 16 anos, por vezes, encanta-nos, depois de termos passado os quarenta. Além disso, Alexandre Herculano foi um grande historiador, frequentemente citado pelo Prof. Mattoso (se bem que consciente de certas limitações, dada a altura em que viveu).

Agora que o li, tenho uma opinião bastante dividida. Em primeiro lugar, é muito compreensível que um/a adolescente não tenha pachorra para leituras destas, num estilo muito datado e pomposo, cheio de divagações exaustivas. Por outro lado, foi uma agradável surpresa constatar que se trata de um romance histórico do tempo em que os muçulmanos invadiram a Península Ibérica, obrigando os cristãos resistentes a refugiarem-se nas Astúrias. É um período pouco explorado entre nós, mas que considero fascinante. Alimento o desejo de pesquisar sobre o reino visigótico, mas tem-me faltado o tempo.

O problema deste livro é mesmo o estilo datado, entre a poesia e a prosa. O próprio autor nos diz, numa nota (p. 168): «Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me aflige demasiado. Sem ambicionar para ele a qualificação de poema em prosa - que não o é por certo - também vejo, como todos hão-de ver, que não é um romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e a desesperação de todos os romancistas, o imortal Scott» (referindo-se a Sir Walter Scott).

Apesar de escrito por um historiador, o romance toma claramente o lado dos cristãos, contra os mouros cruéis. Essa posição atinge o seu auge numa cena em que as freiras de determinado mosteiro preferem morrer, a cair nos haréns dos pagãos. Quando os mouros disso se apercebem, ficam desesperados pela perda das valiosas virgens e tentam rebentar os portões que os separam do local do sacrifício. Alexandre Herculano escreve: «O Evangelho e o Alcorão estão frente a frente no resultado das suas doutrinas. É sublime a vitória do livro do Nazareno!» (p. 93).

Interessantes igualmente dois anacronismos:

- o uso da palavra «oxalá» por parte dos godos, quando todos sabemos que é de origem islâmica e só se tornou usual, entre nós, vários séculos mais tarde. Enfim, talvez o estudo linguístico ainda não estivesse muito avançado, em meados do século XIX.
- as várias referências a armaduras, como na p. 63: «sufocado pela armadura, vacila e cai»; que eu saiba, as armaduras só começaram a surgir em fins do século XIII, até lá, usavam-se os lorigões (vulgo cota de malha).

O livro não deixa de ser interessante para quem goste de romances históricos e queira saber mais sobre a época. E, apesar de um início monótono, acaba por criar suspense, mau-grado o fim  exacerbado, na melhor tradição de Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta, no amor impossível entre Eurico, obrigado ao celibato, e Hermengarda, a donzela que ele salvou das garras de um emir.

Nota: a numeração das páginas usada neste post corresponde à edição digital do Projecto Adamastor.


8 comentários:

NLivros disse...

Este é um dos livros que mais gostei de ler até hoje.
De Herculano li quase tudo, inclusivamente a História da Inquisição em Portugal, mas, a par de Eurico, adorei o Bobo.
De notar que há muitos que consideram ser Herculano o pai do moderno Romance Histórico, pois Ivanhoe não é um romance histórico mas sim de aventuras e o Bobo enquadra-se mais nesse estilo.
Em todo o caso Herculano e Eurico têm de ocupar um lugar maior na nossa literatura.

Cristina Torrão disse...

Não imaginava que gostasses tanto de Herculano ;)
Nunca li "O Bobo", aliás, o "Eurico" foi o único livro que li dele, fora as citações e referências que se encontram nos livros de Mattoso. Mas essas não vêm dos romances.
Em relação aos anacronismos apontados: temos de ter em conta que, na altura em que Herculano viveu, o estudo da História estava longe de ter atingido o nível de hoje.

Vespinha disse...

Também fiquei um pouco marcada por ele na época do liceu... não sei se seria capaz de o reler hoje...

Cristina Torrão disse...

Eu tinha muita curiosidade por ser um romance histórico.

Maria João disse...

Ainda há tempos comentei algo semelhante quando me alguém me disse que estivera a ler Eurico..., com outros olhos e fiquei de o reler. Já o descarreguei, obrigada pela partilha.

Cristina Torrão disse...

Boas leituras, Maria João :)

Александра disse...

Olá!
Tenho 17 anos e ano passado li o Eurico, a propósito de uma apresentação oral para português. Li-o porque quis, porque sempre adorei e ainda adoro história medieval, romances ditos piegas e leituras vistas como complicadas... Adorei o livro! Acho que é um dos melhores livros escritos na nossa língua, cativou-me ainda mais que Os Maias ou que Amor de Perdição...
O Ministério bem que podia tornar o Eurico numa obra obrigatória nas escolas outra vez...
Todo o livro é uma beleza... Um bocado monótono nos tais primeiros capítulos, mas depois torna-se tão épico e romântico que não dá para não gostar...
Enfim, de resto a parte que mais me chocou em todo o livro foi justamente aquela em que as freiras da Virgem Dolorosa se sacrificam... Macabro, mas incrivelmente poético...
Grande abraço a todos!

Cristina Torrão disse...

Obrigada pela opinião, Mafalda. É interessante ouvir/ler tal de uma moça de 17 anos e acho notável que leia estes clássicos mesmo sem ser obrigada. Mesmo achando a obra datada, sou a primeira a afirmar que a sua leitura enriquece, pelo seu estilo poético; mesmo achando a posição de Herculano tendenciosa, é sempre interessante analisar pontos de vista e épocas.