Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

19 de dezembro de 2013

Verão Quente



Um casal é encontrado baleado, deitado numa cama e semi-nu, numa mansão da Arrábida. Desmaiada, depois de cair das escadas, e com a arma do crime na mão, está Julieta, esposa do morto e irmã da morta (passe a expressão). A polícia conclui ter sido um crime passional e Julieta, que cegou e perdeu a memória com o trauma e a queda, passa dezasseis anos na cadeia.

Mas teria sido o caso assim tão simples? Vinte e oito anos depois, em 2003, o narrador trava conhecimento com Julieta e a filha, uma bebé à altura do crime. Julieta começa a recuperar a visão e a ter flashbacks  dos acontecimentos daquela tarde. Uma suspeita incomodativa atinge o narrador. Estava-se em agosto de 1975: Portugal à beira da guerra civil, Setúbal nas mãos da esquerda radical. A família de Julieta é considerada fascista. E o segundo suspeito do crime, em pleno processo de divórcio com a jovem assassinada, é um «capitão de Abril», um herói da revolução, cuja condenação não convém.

Estes são os interessantes pontos de partida para este romance que Domingos Amaral gere bem, construindo um enredo cheio de tensão, ao mesmo tempo que mergulha, de vez em quando, no Portugal revolucionário dos anos 70.

Porém, se o meu interesse era tanto, a ponto de muitas vezes me custar a largar o livro, houve aspetos que me incomodaram. O narrador interessa-se por aquele caso porque se apaixona pela filha casada de Julieta. E há um machismo latente em toda a sua atuação, um machismo que à primeira vista não o é, aquilo a que eu chamo um «machismo encapuzado» e que encontro amiúde, nos nossos dias. Sob a capa da aceitação dos direitos femininos, muitos homens ainda veem a mulher como um objeto sexual e nunca a chegam a pôr ao seu próprio nível. A isso se juntam clichés e medos bastante medievais, como a crença da mulher cruel, que tanto é doce como tirana, tanto é sincera como mentirosa, enfim, um ser instável, em quem nunca se pode confiar. Neste romance, essa influência medieva atinge o cúmulo, quando o narrador se pergunta se deverá mesmo apaixonar-se por alguém que se presta a enganar o marido. Recorde-se que ele próprio é o objeto da paixão da senhora, ou seja, mesmo que seja ele o motivo para a traição dela, não lhe cai bem!!!

Não obstante o enredo empolgante, há ainda dois aspetos que não me pareceram verosímeis, como o facto de uma pessoa que permaneceu cega e presa durante tantos anos revelar tanta descontração e ousadia, em certos momentos; ou o facto de uma mãe e uma filha que só começaram a conviver uma com a outra depois de esta atingir a idade adulta, se conhecerem e aceitarem tão bem (tendo ainda em conta que a filha foi criada pela avó paterna, que desprezava a antiga nora, a «assassina»).

Também o final me desiludiu profundamente por não corresponder às expectativas criadas durante o romance e por se servir de um outro cliché (um dos maiores do nosso tempo). Mas quanto a este assunto fico-me por aqui, pois correria o risco de revelar demais. Afinal, o interesse de um romance envolvendo um crime está precisamente na sua solução.

P.S. Um elogio para a excelente capa, da autoria de Maria Manuel Lacerda, da Oficina do Livro.



8 comentários:

NLivros disse...

Este é um livro que já me despertou a atenção, no entanto, tal como dezenas de outros, acaba por ficar sempre para segundas nupcias. É daqueles que vou querer adquirir ao desbarato numa feira do livro.
Beijinho!

Sara disse...

Desde autor só li o Enquanto Salazar Dormia...que me foi emprestado por uma amiga. Passa-se em Lisboa na segunda guerra e creio que não é tão machista quanto esse, embora tenha mais sexo que informação...Por acaso não sabia que esse era assim, nesse caso não vou coloca-lo na wishlist

cumps!

Cristina Torrão disse...

Uma boa ideia, Iceman :)
Beijinho!

Sara, o enredo é empolgante e esse lado a dar para o machista é só uma pequena parte. De qualquer maneira, irritou-me, sim.
Sexo, também há...
Beijinho :)

Anónimo disse...

Ó Cristina

Acabei de adquirir, com mais outros livros, o seu "A Cruz de Esmeraldas" por um preço fantástico, na Bertrand. Não vou dizer quanto, porque está à venda ao lado e dar-se-á o caso de ter sido beneficiado com alguma campanha.
Vou lê-lo com atenção, porque me interessa o medievalismo e a ficção a esta época ligada. Depois, tal como a Cristina, sou considerado um dos Extraordinários em outro blogue e aprecio a lucidez dos seus comentários.
Feliz Natal (ou Frohe Weihnachten, segundo o google).

Fernando

Sara disse...

Já vi que o autor escreve sempre nos mesmos moldes...Definitivamente há coisas mais interessantes, mas pode ser que apareça uma promoção qualquer...

cumps :)

Cristina Torrão disse...

Olá Fernando,

não ponha a fasquia muito alta! Eu explico: esse livro foi publicado pela primeira vez em 2007, escrito em 2005/2006. Quando o releio (ou partes), encontro-lhe sempre muita ingenuidade. Hoje, escrevê-lo-ia seguramente de outra maneira. Mas só modificaria o estilo, manteria a estrutura do enredo.
De qualquer maneira, muito obrigada pelo seu interesse e, já agora, pela informação sobre essa campanha, de que não fazia ideia. As minhas relações com a editora não são as melhores. Por isso, mudei-me para outras paragens e poderei, em 2014, publicar novo livro, depois de três anos e meio de travessia no deserto :)

Feliz Natal (ou Frohe Weihnachten) também para si!

santos costa disse...

Cristina

Pelo que já li, estou a gostar. Apesar de eu escrever sobre História (o século XII encanta-me), estou sempre a aprender coisas novas e, oportunidade como esta, não posso deixar escapar, tanto mais que - compreendendo a sua imodéstia - o livro parece-me muito bem escrito, documentado e com uma acção trepidante de mistério e paixão.
Oportunamente, darei a minha opinião sincera, logo que conclua a leitura; e, sendo esta do meu agrado, não deixarei de espreitar uma oportunidade para lho dizer num comentário das horas extraordinárias, pois os nossos parceiros "tertulianos", que falam tanto em autoras e autores, não são desculpados quando não partilham as leituras das obras de quem ali comenta.

Cristina Torrão disse...

Meu caro, agradeço as suas palavras. E aquilo que define como "imodéstia", que talvez o seja também, mas é igualmente insegurança. Quando digo que hoje escreveria o livro de outra maneira, estou a ser sincera, pois revi todo o texto neste ano que está a chegar ao fim e fiz inúmeras alterações.
Comecei a escrever bastante tarde e sinto que ainda não atingi aquele estádio em que o estilo está sedimentado e já não permite grande evolução (porque evolução haverá sempre). Mas confesso que ainda ando à procura de um estilo mais pessoal.

É uma grande alegria saber que está a gostar e agradeço imenso que exprima a sua opinião naquele canto extraordinário. Mesmo que fosse uma opinião mais desfavorável, eu agradecia. Só se fosse mesmo muito má é que lhe pediria que ma comunicasse por email ;) O importante é uma opinião sincera :)

Agora que comentou com o seu perfil do blogger, constatei que é autor de blogs interessantes. Fiquei curiosa e irei lá, assim que tiver mais tempo. Neste fim-de-semana e nos dias que se lhe seguirão andarei bastante ocupada, com pouco tempo para atividades "online".