Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de abril de 2013

Cristo e as Mulheres Desaparecidas (1)



No passado dia 1 de Abril, não por ser o Dia dos Enganos, mas por ser Segunda-Feira de Páscoa, feriado na Alemanha, o canal ZDF mostrou um documentário que devia ser transmitido em todas as línguas, em todas as televisões do mundo. O papel das mulheres, no Novo Testamento, foi ignorado, menorizado e votado ao esquecimento, ao longo dos séculos. Do «novo povo de Deus», anunciado por Cristo, foi criada uma «Igreja de homens» (para usar as palavras dos autores do documentário). A ação dos chamados «Pais da Igreja» (em alemão Kirchenväter) foi ainda mais longe, ao transformarem uma apóstola num apóstolo!

Apóstola, sim, não é erro (embora o Word o assinale como tal). Os teólogos e as teólogas citados no programa são perentórios a afirmar que, no tempo de Cristo, e nos primeiros anos do Cristianismo, existiam apóstolas e diáconas (mais um erro, diz-me o Word). A primeira apóstola teria sido Maria Madalena (Maria de Magdala), anunciadora do milagre da Páscoa, mas, mais tarde, rebaixada a meretriz e pecadora. Na verdade, a religião cristã não se iniciou com a morte de Cristo, mas com a sua ressurreição. É o acontecimento mais importante do Cristianismo, embora, hoje em dia, tenda a ser o Natal. A ressurreição teria, assim, de ser testemunhada por personagens importantes, credíveis. E, nos Evangelhos, essas personagens são mulheres (em Mateus, Marcos e Lucas são várias mulheres; no Evangelho de São João, Maria Madalena depara sozinha com o túmulo vazio).

O documentário centrou-se em quatro mulheres fundamentais para o estabelecimento do Cristianismo: a já referida Maria de Magdala; Febe de Cêncreas (diácona e teóloga, cujo significado tem vindo a ser menorizado pela Igreja Católica); Júnia (denominada apóstola por São Paulo e transformada num homem por estudiosos da Bíblia medievais!) e Lídia de Filipos, a primeira pessoa, na Europa, a converter-se ao Cristianismo e a ser batizada por São Paulo, que a elevou a líder religiosa e, no entanto, hoje, ela é apenas conhecida por ser a Padroeira dos Tintureiros!

Inicio, aqui, uma série semanal dedicada a este tema. Nos próximos posts, continuarei a falar do papel das mulheres, no nosso tempo e no tempo de Cristo, e passarei, depois, a analisar pormenorizadamente o das quatro citadas, sempre baseada no documentário da ZDF.

P.S. (1) O título original do documentário é Jesus e as Mulheres Desaparecidas (Jesus und die verschwundenen Frauen). Na minha tradução, optei por Cristo, pois, hoje em dia, em Portugal, quando se enuncia o nome de Jesus, há a tendência para o confundir com o do treinador de futebol.

P.S. (2) Quem souber alemão e se interessar pelo tema, pode ver o vídeo do documentário.

P.S. (3) Podem pensar que exagero na linguagem feminista, mas foi precisamente este o tom usado no programa da ZDF. Notava-se uma grande vontade de mudança na Igreja Católica, em todos os teólogos e teólogas consultados e que serão nomeados e citados nos próximos posts.


29 de abril de 2013

Presos e seus carcereiros


Os capitães de Abril têm, justamente, o seu lugar na História e devemos estar-lhes infinitamente gratos. Mas a jornalista do Expresso Joana Pereira Bastos lembra-nos que houve muita gente anónima que lutou para derrubar a ditadura. No seu livro Os Últimos Presos do Estado Novo (Oficina do Livro) apresentado, a 23 de Abril, na livraria Buchholz, por Manuel Alegre, ela descreve a passagem de vários oposicionistas às ditaduras salazarista e marcelista pelas prisões de Caxias e Peniche e os traumas provocados pela tortura que "perduram até aos dias de hoje".


Acho uma excelente ideia. A revolução dos cravos, e tudo o que a ela esteja ligado, deve ser explorado sob os mais variados quadrantes possíveis. Não falta informação e (grande preciosidade) há, claro, ainda muita gente viva que viveu os acontecimentos de perto. Trata-se, por assim dizer, de condições de sonho, bem diferentes daquelas com que nos deparamos, quando pretendemos pesquisar sobre a Idade Média, por exemplo. Apetece-me dizer: a História aqui tão perto...

Aproveito esta ocasião para abordar um assunto ainda não tratado. Como em muitas ocasiões históricas, tendemos a resumir os acontecimentos a uma luta entre os bons e os maus. Longe de mim pretender branquear a ação dos funcionários da PIDE, mas não nos esqueçamos de que eram seres humanos, com tudo o que essa condição implica. Uma família, por exemplo! Ainda nada foi dito sobre o efeito do 25 de Abril nas crianças, filhas desses funcionários e inspetores, por mais cruéis que estes tenham sido. De privilegiadas, essas famílias passaram a malditas. Com que dificuldades e discriminações foram confrontadas? E que consequências teve isso nas suas vidas?

Penso que seria igualmente um tema interessante, embora, calculo, tabu, até ao momento. Será cedo demais?

Nota: um agradecimento à Ana Lemos, que me chamou a atenção para este livro aqui (na caixa de comentários).


27 de abril de 2013

Perfeição

Esta tarde apetece-me o caminho fácil, dizia a Carla Soares, a propósito das opções que somos obrigados a tomar, no dia-a-dia.

Tentamos ser o mais perfeitos possível, o que implica escolher o caminho mais difícil. É de louvar. E aplaca-nos a consciência. Caso contrário, sentimos necessidade de nos justificarmos, ou amarzenamos sentimento de culpa.

Por vezes, no entanto, somos mais severos connosco próprios do que com os outros. Passamos a vida a desculpar os outros - «não faz mal»; «o que tem?»; «não te preocupes» - e não nos admitimos uma falha que seja.

Será justo? Porque não havemos de, de vez em quando, optar pelo caminho mais fácil, sem nos censurarmos? Porque não aprendemos a desculparmo-nos, em vez de estarmos sempre a pedir desculpa aos outros? Nesta nossa busca incansável pela perfeição, de nos superarmos a nós próprios, esquecemo-nos de que há uma vida para viver. Uma vida que consiste de pequenos nadas, coisas, à primeira vista, insignificantes, mas apenas porque não nos damos ao trabalho de reparar nelas.

Não temos de tentar sempre agarrar as estrelas. Muitas vezes, o que está aos nossos pés, e que nos esforçamos por ignorar, faz-nos muito mais felizes.

25 de abril de 2013

Divagações Abrilinas (4)


- Qual é a primeira sensação, ou o primeiro sentimento, que te atinge, quando pensas no dia 25 de Abril de 1974?
A Vera fecha os olhos.
- Medo.
Depois de um curto silêncio, digo:
- Compreendo. Será assustador, para uma criança, ver militares armados e carros de combate pelas ruas…
A Vera abre os olhos:
- Não. A culpa não foi dos militares que nos trouxeram a liberdade. A culpa foi da estúpida da minha professora primária.



            A aula não tinha começado há muito tempo, quando a mestra foi chamada à Diretora. Ao regressar, lançou, muito aflita, a caminho da sua secretária e sem olhar para as alunas:
- Ide-vos embora, para casa, hoje não há escola!
Além de ansiosa, parecia muito irritada. Nas meninas, a perplexidade. Perguntavam-se se tinham aterrado no filme errado. Aquele dia havia começado igual aos outros e, de repente, dava-se uma viragem que não estava prevista no guião.
- Não me ouvistes? Guardai as vossas coisas e ide para casa!
A Vera não sabia se a professora fingia aquela aflição, ou se estava realmente borrada de medo. O certo é que as alunas, já muito inquietas, desejavam uma explicação daquela em quem confiavam. Mas ela, atrás da secretária, arrumava os seus pertences.
– Isto até pode dar em guerra… Não sei. Não sei o que se vai passar. Uma chatice, uma grande confusão. Ide para casa!
Desandou dali, abandonando-as à sua sorte.



24 de abril de 2013

Naquela Noite...


Era uma quarta-feira, tal e qual como hoje. O apito inicial soou à hora a que publico este post. O meu pai alimentava esperanças de que, passados dez anos, o seu clube repetisse a proeza: ganhar a Taça das Taças. Mas a primeira mão das meias-finais, em Alvalade, não correra bem: empate 1-1 com o Magdeburgo, da República Democrática Alemã, um dos regimes de proa da Europa de Leste.

O Sporting partiu desfalcado para o encontro, não contava com dois dos seus melhores jogadores, Dinis e Yazalde, ambos lesionados. Mal sabia a equipa que partia do Portugal da ditadura para regressar ao Portugal dos cravos. E não deixa de ser interessante que fosse derrotada, nessa noite de todas as noites, por um clube de um país comunista, uma ideologia que tanto agitaria o Portugal saído da revolução. Também o imperialismo soviético esteve perto de derrotar a nossa jovem e ainda frágil democracia.




Os minutos finais do encontro deram cabo dos nervos. Ao fim de 75 minutos, perdíamos por 2-0. Já nos conformávamos com a derrota, quando Marinho, a 12 minutos do fim, reduziu a desvantagem para 2-1. Renasciam as esperanças. Marcando mais um golo, o Sporting passaria à final!
Sofríamos em frente da televisão, quando Tomé, entrado perto do fim do encontro, falhou um golo que parecia certo. Ao apito final, instalou-se o desespero.



Eu tinha oito anos. E não sabia o que mais me oprimia: se a minha própria desilusão, se a do meu pai. Fomo-nos deitar com um imenso nó na garganta, sem sonhar que acordaríamos num outro país.
À equipa do Sporting, acompanhada pelo saudoso João Rocha, estava reservada uma autêntica odisseia. Deixaram a malfadada Magdeburgo de autocarro, logo aguentando os incómodos ligados à passagem da fronteira entre as duas Alemanhas. Controlos obsoletos, de quem insistia na cortina de ferro, esse muro invisível, concretizado fisicamente em Berlim. Mal sabia o plantel do clube que, no seu país, se tentavam destruir outro tipo de muros.

Chegados a Frankfurt, atingiu-os a perplexidade: o aeroporto de Lisboa estava cercado e fechado ao tráfego! Acabaram por arranjar um voo para Madrid, de onde partiram, de autocarro, em direção à fronteira do Caia. Mas esta revelou ser mais uma barreira intransponível, o MFA fechara todas as fronteiras. Tiveram de pernoitar em Badajoz, alguns, no autocarro, por não terem encontrado lugares nos hotéis.

Só a 26 de Abril a situação se desbloquearia.
E nós?
Em nós, renascera a esperança, no deslumbre da liberdade.




Nota: O bilhete representado está ou esteve à venda neste site. Embora não o consiga visualizar, foi para lá que o link da imagem me enviou.

23 de abril de 2013

Naquele Tempo (18)


Entretanto, durante o período de anarquia anterior a 1250, também se registam revoltas urbanas pontuais. O caso mais conhecido situa-se de novo no Porto, onde, em 1237 ou 1238, o bispo desencadeou uma violenta repressão antipopular. Sabemo-lo por meio de uma carta do concelho da cidade a todos os bispos do reino (J. Mattoso, 1982b, p. 341), na qual lhes pedia que interviessem junto do seu prelado para reprimir a sua violência. Dizia-se nela que o bispo tinha conseguido atrair cavaleiros para os incitar contra os cidadãos, provocando destruições na cidade e enforcando muitos habitantes, havia vendido publicamente os seus filhos e mulheres como se fossem sarracenos, e tinha praticado outros abusos. Pela mesma altura, os franciscanos queixavam-se também de que o bispo tinha mandado queimar e saquear o seu convento. Estes dois documentos mostram que as violências do bispo se deviam a resistências da gente da cidade contra as suas exigências, o que, por sua vez, desencadeou novas reacções de parte a parte.

Capítulo Revoltas e revoluções na Idade Média portuguesa, p. 414

20 de abril de 2013

Heróis de quatro patas

Encaro com muito ceticismo certos livros e filmes sobre animais, demasiado fantasiosos, dando uma ideia errada da realidade. Por mais bonitos e comoventes que essas histórias sejam, é preciso que estejamos conscientes de que não existem cães como, por exemplo, a Lassie ou o Rex, que se limitam a interpretar papéis (tal e qual como os seus colegas atores humanos).

Por outro lado, há, na vida real, a tendência para realçar os aspetos negativos nas nossas relações com os animais. Dos cães que salvam vidas, farejam doenças e ajudam os humanos em catástrofes, pouco se fala. Mas, se um cão morder, ou, mesmo, matar um humano (e sem querer menorizar a gravidade do ato), há a tendência para tomar a parte pelo todo, ou seja, esquecem-se os bons aspetos e julgam-se todos os cães como bestas incontroláveis, que devem estar presos em jaulas. Sejamos justos! Também não julgamos os nossos semelhantes a partir de assassinos, como aqueles que causam massacres em escolas. Damos-lhes destaque, sim, mas sabemos tratar-se de exceções, casos raríssimos. Seria bom que aplicássemos este julgamento também aos animais.

Por isso, o livro Heróis de Quatro Patas (John McShane) me chamou a atenção, apesar de não gostar muito da capa. Mas, a julgar pela opinião da Carla Ribeiro, é um livro sólido, que conta casos reais. E nos lembra que os cães também têm sentimentos.


Nem todos os heróis são humanos. Por vezes, a intervenção de um animal de estimação na hora certa e no lugar certo pode ser a diferença entre a vida e a morte.

E, de todas estas histórias, sobressai não só o heroísmo como a incondicionalidade do amor. É isso que comove em tantos destes episódios e isto basta para fazer deste livro uma boa leitura.

Os protagonistas destas histórias são cães de todas as raças e tamanhos, e isto inclui as raças consideradas como potencialmente perigosas.

Uma leitura simples, mas muito marcante, e que realça o facto de nem só aos homens pertencer o afecto e a lealdade.


18 de abril de 2013

Divagações Abrilinas (3)





Aos sábados, as alunas cantavam o hino nacional, de pé, viradas para os retratos do Presidente da República, Almirante Américo Thomaz, e do Presidente do Conselho de Ministros, Professor Marcello Caetano, pendurados na parede, sobre o quadro de ardósia. O sábado era um dia especial, de preparação para o fim-de-semana, e não se faziam contas nem ditados. As meninas começavam por se dedicar à malha, ao croché e aos bordados. Quando a professora julgava oportuno, pousavam os lavores e cantavam o atirei o pau ao gato, ou o coelhinho que comeu uma grande cenoura, ou o balão do João.
Gostavam daquilo. Num tempo em que a televisão a preto e branco era o cúmulo da tecnologia e as crianças apanhavam um tabefe por cada grito mais estridente, ou uma reguada por cada erro ortográfico (sem contar as vezes em que não sabiam porque é que apanhavam), poder cantar, na sala de aula, era uma autêntica extravagância.