Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

3 de março de 2014

Animais com memória

Muitos de nós entram quase em pânico quando se diz que os humanos não serão os únicos seres com memória que transmitem aos seus descendentes. Acham que admitir certas qualidades a outros animais é fragilizar os humanos. Na verdade, nós somos frágeis, muito frágeis, todos os dias o constatamos, perante calamidades naturais que não controlamos, nem nunca controlaremos. Em certos aspetos, somos mais frágeis do que os outros animais (pelo menos, uma parte deles), que conseguem prever e/ou sobreviver a catástrofes em relação às quais somos impotentes.

Na minha opinião, os animais possuem igualmente memória, um património mental, que transmitem aos seus sucessores. Se assim não fosse, não poderiam ensinar às suas crias como se caça, como se devem comportar em determinada situação, ou quais as relações sociais que imperam num grupo. Um cão criado por humanos é incapaz de sobreviver na Natureza por não o ter aprendido (não bastam os genes e é isto que não cabe na cabeça de muitas pessoas que abandonam animais). Mas adiante: se os elefantes não tivessem uma  memória e não a transmitissem aos vindouros, como explicar os célebres "cemitérios de elefantes"?

Estas explicações, porém, não chegam para muitos de nós. Insistem nos genes, alegando que o ser humano é o único animal criativo. Um documentário transmitido pela estação televisiva fanco-alemã ARTE, no passado 21 de Fevereiro, com o título Et le singe inventa la culture, veio pôr em dúvida este pressuposto. Segundo o primatólogo Christoph Boesch, do Instituito Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, os chimpanzés são capazes de adaptar os seus conhecimentos a novos desafios e de os transmitir aos seus descendentes.


As suas teses são apoiadas por Klaus Zuberbühler, da Universidade escocesa St. Andrews, e Thibaud Gruber, da Universidade suíça de Neuchâtel, que fizeram pesquisas recentes no Uganda e constataram que grupos de chimpanzés, vivendo em regiões diferentes, utilizam técnicas diferentes para atingirem os mesmos fins. Ou seja, trata-se de um comportamento cultural, não genético. No Parque Nacional Kibale, servem-se de pauzinhos, que, por vezes, aguçam na ponta, para apanhar certas formigas nos seus buracos. Usaram o mesmo método para tirar o mel de um pequeno buraco num tronco de madeira, numa experiência preparada por Thibaud Gruber. Mas na Budongo Forest Reserve, a 180 km para nordeste, na mesma experiência, os chimpanzés usaram um método com que costumam apanhar água e que consiste numas folhas que, depois de mastigadas, funcionam como esponjas. Adaptaram esse seu conhecimento para agarrar o mel, não usando a suposta informação genética dos outros.

Também se sabe que, na Costa do Marfim, um certo grupo de chimpanzés usa pedras para quebrar nozes, enquanto outro grupo, vivendo num local diferente, usa pedaços de madeira parecidos com martelos.

No Parque Nacional Loango, no Gabão, Christoph Boesch fez observações ainda mais intrigantes. Os chimpanzés aperfeiçoaram uma técnica, passo a passo, apoiando-se nos conhecimentos que iam adquirindo. Para chegar ao mel de colmeias construídas nas árvores, utilizam não um, mas dois paus: um mais grosso, com que abrem a entrada da colmeia, fechada com cera, e um outro mais pequeno para tirar o mel. Também há chimpanzés que utilizam vários paus de formas diferentes, para chegarem a vários sítios onde esteja mel. Um desses paus até é mastigado numa ponta, ficando com o aspeto de um pincel.

Há quem conteste estas conclusões, como o americano Michael Tomasello, também do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, que, apesar das observações do colega Christoph Boesch, insiste em dizer que os chimpanzés não possuem a chamada cultura cumulativa, ou seja, a capacidade de aprender algo com a geração anterior e, a partir daí, desenvolvê-la.

No documentário do ARTE, também foi entrevistada Jane Goodall, que surgiu belíssima, nos seus 79 anos, uma beleza simples e serena. Claro que ela concorda com a existência de cultura e memória nos primatas. Diz ela que, quando começou as suas investigações com gorilas, nos anos 1960, a Humanidade estava convencida de que só so humanos eram capazes de usar e criar ferramentas. Hoje, sabe-se que não é assim. Mas quando ela o afirmou, pela primeira vez, provando-o com as suas pesquisas, logo houve quem não se rendeu às evidências e a contestasse. Na sua opinião, por mais que se descubra sobre os animais, haverá sempre quem diga: «sim, mas...», tanto é o nosso receio de encarar a nossa própria fragilidade, de sairmos do nosso pedestal de reis do planeta.

Nota: pode ver-se aqui o documentário em língua francesa, (link também em cima). E aqui em alemão, título: Das Geheimenis der Affen.


2 comentários:

Vespinha disse...

O ego humano nunca deixará de ser enorme... :(

Cristina Torrão disse...

É verdade, Vespinha. É incapaz de humildade, entende-a de maneira errada. Torna-se subserviente, a fim de tirar benefícios de determinada situação. Julga que é isso a humildade :(