Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de março de 2014

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (12)




Uma terceira e muito importante fonte para a produção de apodos foi o próprio indivíduo seu futuro portador, escalpelizado em todas as suas facetas, quer no seu aspecto físico, quer nas características morais ou intelectuais, na maneira de ser, nos costumes adquiridos, em eventuais peculariedades de qualquer tipo. Ele podia ser observado de todas as maneiras, olhado sob todos os ângulos, com olhares imbuídos de diversíssimas intenções, mas quase sempre mordazes, mesmo hostis. O produto dessas observações era a alcunha. Alcunha que podia apresentar-se de forma aparentemente inócua - Alto, Louro, Claro, Barba - ou até de conotações laudatórias - Amigo, Forte, Verdadeiro, Belo, Bem-falante - mas que assumia muitas vezes um tom mordaz, satírico - Ranhoso, Madraço, Mata Piolhos, Tinhoso, Unhas de Gato - ou até mesmo insultuoso - Pestelença, Maldito, Ravasco, Roussado, Galeado. À distância de alguns séculos é impossível saber que conteúdos teriam os milhares de alcunhas que a documentação trouxe até nós. Mas, conhecida como é a mordacidade quase sem limites do humor medieval e sabido como em todos os tempos as alcunhas se comprazem de forma especial nos vícios, nos defeitos, nos ridículos, é muito possível que quase todas elas, independentemente do conteúdo semântico da palavra ou expressão que deu voz à característica que se quis salientar, se fizessem acompanhar pelos risos trocistas dos seus criadores, talvez de modo tanto mais acerbo quanto mais laudatória fosse a forma utilizada.

Muito comum era ainda a transposição da característica a sublinhar no indivíduo visado, para o animal que supostamente a possuiria em alto grau. E ela podia ser feita pela simples referência ao animal em questão - Lobo, Perdiz, Anho, Cordeiro, ou ainda Coelhinho, Cervinho, Baratão - ou utilizando formas mais elaboradas: Boi Negro, Barbas de Porco, Quadril de Pega, Mãos de Águia, Bicho Feio. Menos comum era a transposição feita para plantas - Cebola, Nabo, Botelho - uma vez que as árvores, bastante frequentes na nossa antroponímia, na medida em que o são igualmente ou ainda mais na sua expressão como nomes geográficos, foi por essa via que a maior parte delas - e dificilmente poderá conhecer-se o seu volume - entrou na onomástica pessoal.

O Nome, Iria Gonçalves (p. 214)


2 comentários:

Bartolomeu disse...

Esta temática das alcunhas, que perdura nos nossos dias, é fascinante. Independentemente do caráter que reveste as alcunhas, vejo-as sempre como uma demonstração de inferioridade da parte de quem a lança, e também da parte de quem a ela adere. Isto, logicamente, numa observação de moralidade social. É obvio que se um fulano coxeia, não existe qualquer necessidade de passar a chamar-lhe coxo, porque é evidente.

Cristina Torrão disse...

É verdade. Hoje em dia, não nos passa pela cabeça. As alcunhas são aceites apenas, quando muito, entre os miúdos da escola. Entre adultos, só se não forem ofensivas.
Mas a mentalidade medieval era diferente, principalmente, no que respeita à moral. Penso que isso também se baseava no facto de poucas pessoas terem apelidos, só aos nobres se dava um apelido, baseado no nome do pai (Henriques filho de Henrique; Soares filho de Soeiro; Peres filho de Pero, etc.). Mas mesmo esses não escapavam às alcunhas: D. Soeiro Mendes "Grosso", D. Mem Pais "Bofinho", D. Paio Peres "Romeu", D. Soeiro Pais "Mouro", D. Fernão Peres "Cativo", etc.
;)