Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

3 de julho de 2014

A Noite das Mulheres Cantoras


Lídia Jorge dedica-se, neste romance, ao tema do passado, mais propriamente, ao embelezar do passado. O ser humano tem uma enorme capacidade de apagar as partes dolorosas, realçando o agradável. Enganamo-nos a nós mesmos, passamos a vida a idealizar. Idealizamos a nossa infância, a nossa juventude e tudo o resto que já passou. Falamos dos «bons velhos tempos», esquecendo que, se fôssemos mais honestos connosco próprios, admitiríamos que não foram tão bons assim. Em muitos casos, pouco tiveram de bom.

Num espetáculo de verão, reunem-se quatro mulheres que haviam pertencido a uma banda de cinco. Cantavam e dançavam, 21 anos antes, gravando um disco e obtendo um sucesso retumbante. Gisela Batista, a líder do grupo, apelidade de maestrina, recorda, frente às câmaras, aqueles tempos gloriosos, de cinco jovens unidas no amor à música e à dança. Solange Matos, a narradora, não a desmente, para não lhe estragar a noite, mas sabe que a relidade não foi bem assim. E vai desfiando a história, contada em flashback, numa espécie de confissão.

Nada se consegue sem disciplina nem trabalho duro. E Gisela Batista, a maestrina, impõe um regime ditatorial ao resto do grupo, que inclui pesagens diárias para controlar o peso e proibição de namoros. As infrações são castigadas com chantagens emocionais e a consequente criação de profundos sentimentos de culpa. Quem mais sofre é Madalena Micaia, uma africana, com uma voz de exceção, mas mais volumosa do que a maestrina permite. Por uma qualquer razão (que se revela mais tarde), ela não consegue emagrecer. E, depois do disco gravado, já não faz parte do grupo, nem participa nas tournées. O seu desaparecimento nunca foi explicado publicamente e Gisela Batista diz, no espetáculo que as reúne 21 anos depois, que Madalena Micaia não resisitiu ao chamamento da terra-natal e abalou para África. Solange de Matos sabe que isso não corresponde à verdade. O sumiço da africana implica um segredo terrível que lhe ensombra a vida.

Lídia Jorge escreve do alto do seu talento e da sua experiência, revelados am cada cena, cada parágrafo, cada frase, cada palavra. O valor literário do romance é indiscutível. A meu ver, só terá um defeito: dificilmente interessará ao público masculino. É daqueles romances que só podia ter sido escrito por uma mulher, (quase) só para mulheres. Empolgou-me particularmente, pois houve uma altura da minha vida em que também andava envolvida em ensaios de canto e dança. Claro que os grupos a que pertenci nunca atingiram sucesso, mas revi-me em muitos momentos dos ensaios do grupo da maestrina. Para quem não teve essa experiência, mesmo sendo mulher, poderá ser difícil de "agarrar".

Uma nota desfavorável para a textura aveludada da capa, a imitar as cortinas do teatro, mas, na minha opinião, desagradável ao toque.


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