Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de novembro de 2014

Os Segredos de Jacinta - Excertos (2)



À medida que a noite caía, o arraial tornava-se mais agreste e jocoso. Os homens e muitas das mulheres já haviam bebido a sua conta, jograis e segréis começavam com as cantigas de escárnio e maldizer, a que se juntavam as pantominices de bufões e histriões. Um dos segréis gabava-se, ao som das cítaras, de obter os favores da mulher de um nobre, sem este dar pela conta. O povo delirava com a linguagem rude, gargalhando até à exaustão.
Seguiu-se outra cantiga, em que se contava como uma dama da nobreza tentava seduzir um jogral, sem ser correspondida. Apreciava-se este tipo de sátira, maior vergonha não podia suceder a uma fidalga: dar-se aos amores de um homem de condição inferior, neste caso, com a agravante de o jogral a desdenhar. Para aumentar a animação, uma das soldadeiras encarnava o papel da dama, tentando, através de gestos e movimentos sensuais, atrair um dos histriões. Perante a indiferença deste, não hesitava em agarrar-se a ele, apalpando-lhe as partes pudendas.
Era o delírio total.
Passou-se a uma cantiga sobre um frade que se fazia passar por impotente (escaralhado), mas que ia emprenhando todas as donas que dele se acercavam, tendo três delas dado à luz no mesmo dia.




27 de novembro de 2014

O Bardo do Farrusco






Rebanhos cobriam os montes nordestinos, um modo de vida, a que a solidão e a pobreza puseram fim, empurrando os pastores para a emigração. Para trás, ficaram os cães de gado transmontanos, desorientados, escorraçados, escanzelados.



O Farrusco subiu uma última vez ao monte. No planalto vazio, viu o bardo que outrora guardava junto com o pastor, revivendo os melhores momentos da sua vida. Josefina, a menina que o seguiu, foi a única testemunha do clarão nos seus olhos, à lembrança de um tempo em que o mundo ainda fazia sentido.



Qual será o nosso bardo, aquele que nos iluminará, pela última vez, os olhos desiludidos e cansados? 


(Em breve, a minha opinão sobre "Farrusco - um cão de gado transmontano", de Isabel Mateus; ilustrações de Cristina Borges Rocha)


26 de novembro de 2014

Os Segredos de Jacinta - Excertos (1)

- É o que eu digo: Deus comunica com esta criança inocente, de olhos mais cristalinos do que as águas dos ribeiros no estio.
A mãe Adosinda benzia-se, expirando ais, como se tanta devoção lhe pesasse sobre o peito. Por sua vez, o pai e os dois irmãos, quando o mais velho ainda era vivo, olhavam com desconfiança para a moça, como os homens olham para as mulheres que dizem coisas que eles não entendem.
A partir dos dez anos, Joana começou a dar conselhos ao povo que se juntava nas romarias e nas feiras. Não fosse a proteção do pároco Sindila, muitos haveriam de dizer que só poderia ser bruxedo, obra do chifrudo! Com treze anos, foi-lhe atribuído um milagre, ao pressentir um acidente com uma criança, impedindo-a de morrer afogada no rio Arda.
O pároco Sindila não havia mister de mais provas. Empenhou-se de alma e coração na realização do sonho da moça: tornar-se noiva de Cristo.
A profissão de Joana elevou ainda mais o prestígio da família, garantindo a salvação de todos os seus membros, como Adosinda, por entre ais e benzeduras, não se cansava de repetir.

25 de novembro de 2014

Carinho Animal




«Mas o destino daquela noite ainda não estava completamente determinado. As horas seriam intermináveis até à alba, porque o outro borreguinho estava atravessado no corpo da mãe e precisava de mãos humanas e experientes que o puxassem para a vida. Enquanto a Mocha tentava expurgar um corpo que já não deveria pertencer ao seu útero morno, o Farrusco aproximava-se da outra cria e tentava aquecê-la. A determinada altura sentiu inclusive que o cordeirinho tateava o seu ventre à procura da teta materna».

In “Farrusco – um cão de gado transmontano”, de Isabel Mateus
Ilustrações de Cristina Borges Rocha


23 de novembro de 2014

A Esmeralda do Rei





Foi bom reencontrar personagens históricas com as quais já “convivi”, como D. Afonso Henriques, D. Sancho I e a infanta D. Teresa. É sempre refrescante deparar com uma visão dos acontecimentos diferente da nossa e, no entanto, encontrar pontos de contacto, certas coincidências, no carácter imaginado de pessoas que viveram há quase mil anos, mas cujas existências ficaram registadas. Gostei igualmente da abordagem ao início do reinado de D. Afonso II, sobre o qual sei pouco.

Este livro conta a história de Esmeralda, filha de uma moura e de um cruzado que se estabeleceu em Arruda, depois da conquista de Lisboa. Trava conhecimento com D. Sancho ainda infante e aprende a amá-lo, mas a vida de Esmeralda será marcada por múltiplas aventuras, que tanto a aproximam, como a afastam do seu rei. Não pude deixar de recordar livros meus, nomeadamente, A Cruz de Esmeraldas e Os Segredos de Jacinta, o que não deixa de ser curioso, pois todos estes romances foram escritos numa altura em que o Paulo Pimentel e eu não tínhamos conhecimento da existência um do outro, nem lido nenhum dos livros de cada um.

Acompanhando o percurso de Esmeralda, entramos na vida e nos acontecimentos que marcaram o reino português nas últimas décadas do século XII e nas primeiras do seguinte. Notável é a capacidade do autor em vestir a pele de uma personagem feminina, cheia de sensibilidade. A escrita de Paulo Pimentel é bastante poética, muito marcada pela comunhão entre o ser humano e a natureza. Somos parte de um cosmos e sentimo-lo, se algum dia descobrirmos as nossas asas.

«Muhammad, o profeta do Islão, designava que a grande jihad é aquela batalha que travamos com a nossa alma. Pois bem, esse é o esforço que tenho andado a fazer há anos. Sei que o meu fim também está próximo. Já pressinto a hora de abrir as minhas asas, e regressar à luz. Não tenho medo. Hei de transformar-me em mais um ponto de brilho, na infinita abóbada celeste». (Pág. 372)

Não obstante alguns alongamentos no enredo, este livro faz as delícias de qualquer apaixonado pela vida medieval. Por isso, estou já curiosa quanto ao próximo romance de Paulo Pimentel, que será publicado em 2015 e que terá como tema, mais uma vez, a nossa Idade Média.