Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de abril de 2014

Ser ou não ser clássico



A editora Maria do Rosário Pedreira deu conta da sua entrevista ao Projecto Adamastor sobre a importância dos clássicos. À pergunta sobre o que torna uma obra literária um clássico, a conhecida editora aponta a sua resistência ao tempo. Outro entrevistado, o escritor José Rentes de Carvalho, fala da resistência aos valores das diferentes gerações, a escritora Ana Cristina Silva diz que são obras que necessariamente abordam questões intemporais.

Tendo tal em mente, atrevi-me a opinar, nos comentários ao post referido (e de acordo com a opinião que publiquei aqui no Andanças) que o romance Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, terá envelhecido um pouco, sobretudo, na maneira tendenciosa de interpretar a História.

Caiu o Carmo e a Trindade! Isto de tocar em monstros sagrados é uma chatice! António Luiz Pacheco, com quem já tenho tido acaloradas discussões, por termos formas bem diferentes de encarar a vida e o mundo, alegou que «há que ler atendendo ao espírito da época». Ora, eu pensava que, precisamente ao ler um clássico, não seria necessário estar com esse cuidado!

Vítor Ferreira, outro comentador, criticou a minha visão «politicamente correcta» de encarar a História, alegando que, daqui a uns anos, teremos, com certeza, uma outra visão. Em primeiro lugar, acho interessante que as críticas a opiniões minhas oscilem entre a acusação de ser feminista  e/ou inflexível, e, no outro extremo, de ser «politicamente correcta». Em segundo lugar, sim, claro que daqui a uns anos teremos outros conceitos e formas de interpretar o mundo. Mas repito: um clássico deve estar imune a oscilações desse tipo!

Penso que, nesta discussão, se misturou uma questão do foro literário e outra do foro histórico. Uma coisa é discutir o que distingue um clássico de uma obra datada. Outra coisa é enquadrar as atitudes das personalidades históricas no seu tempo. Na verdade, a análise a esta obra faz-nos movimentar em três dimensões. A primeira: analisar este livro como romance, esquecendo o Herculano historiador; a segunda: ter em conta a época em que foi escrita (século XIX); a terceira: ter em conta a época retratada (século VIII). Peço desculpa, mas penso que os meus colegas de discussão nem sempre conseguiram separar estas três dimensões.

Não discuto a importância da obra de Herculano, nem que ele tenha sido um grande historiador. Mas persisto em que esta sua ficção envelheceu. Quer isso dizer que deixou de ter importância? De maneira nenhuma! Pode enquadrar-se num outro tipo de obras, referidas pelo escritor Mário de Carvalho, na entrevista ao Projecto Adamastor. Mário de Carvalho foi o único entrevistado a referir que o conceito de clássico pode ter dois sentidos. O etimológico que remete para um conceito de excelência, elevação e exemplaridade. E aqui, encontramo-nos próximos da ideia de cânone. E um, mais corrente, que designa qualquer obra literária do passado, independentemente da sua qualidade. Estas merecem também ser preservadas e divulgadas. Há sempre um olhar a que podem fazer falta.

«Há sempre um olhar a que podem fazer falta» - na minha opinião, esta frase assenta que nem uma luva a Eurico, o Presbítero.


29 de abril de 2014

Inspirações Revolucionárias (8)



- Para onde vais?
Lena encarou-o e respondeu, na sua candura de criança:
- Não sei.
Duas pequenas palavras, que se repetem várias vezes ao dia, pelos motivos mais prosaicos, e que, naquele momento, fizeram-no engolir em seco. Leonel não conseguia imaginar algo mais triste do que não ter para onde ir.


27 de abril de 2014

O Paraíso da infância

«A imagem que temos da infância é muito idealizada, porque não recordamos mesmo tudo, idealizamos. É por isso que existe tanto saudosismo em relação à infância: só lembramos a parte boa».

(palavras de Gabriela Ruivo Trindade, vencedora do Prémio LeYa 2013, nesta entrevista)

Ou seja: "bagatelizamos" a parte menos boa, ou má. Esta técnica tem, porém, a desvantagem de deixar uma parte de nós eternamente na penumbra. Nós somos o nosso passado, todo o passado. É por isso que, em vez de vivermos, fingimos que vivemos.

Aceitar que a infância não foi tão feliz como idealizamos é doloroso. Mas só juntando e admitindo as duas partes aprendemos a conhecermo-nos e a aceitarmo-nos.


25 de abril de 2014

Inspirações revolucionárias (7)



Leonel viu-a perdida, desorientada, de lágrimas nos olhos, no meio da multidão em delírio.
«O povo unido jamais será vencido».
A aura de solidão que a envolvia arrepiou-o. Uma redoma sombria parecia pairar sobre ela, naquela hora em que se exultava a liberdade alcançada. Lena continuava presa por amarras invisíveis, haviam-lhe tecido uma teia diabólica à volta que nem a revolução parecia conseguir rasgar. Leonel recordar-se-ia daquela imagem pela vida fora, a imagem de uma jovem que fora presa e torturada e cuja família nem sequer lhe vinha dar um abraço!


24 de abril de 2014

Nada como ler os clássicos...

IL.mo E EX.mo SR. ANTÓNIO RODRIGUES SAMPAIO

Meu amigo.

Volto a oferecer-lhe uma das minhas bagatelas. Chamo assim, para me fingir modesto, bagatelas a umas coisas que eu reputo no máximo valor.

(início de carta de Camilo Castelo Branco ao seu editor, in A Queda dum Anjo)


23 de abril de 2014

Nem sempre o que é rejeitado é mau

Vítor Gonçalves, o responsável pela nova chancela digital Coolbooks, grupo Porto Editora, confirma que os editores pensam duas, cinco, ou dez vezes, antes de apostarem numa edição em papel. Entre outras possibilidades, a Coolbooks poderá aproveitar algo das «dezenas de originais que a Porto Editora recebe semanalmente», alguns deles, «com bastante qualidade», mas cuja edição em papel seria arriscada.

Aqui se confirma que nem sempre o que é bom é publicado, simplesmente porque o risco num nome desconhecido é enorme. Contudo, quem recebe uma recusa, fica convencido de que o seu original não valia o papel em que foi imprimido. E, mais uma vez, se constata que o importante é não desistir, quando acreditamos em nós e nas nossas capacidades.

Mas que é difícil erguermo-nos à quinta, décima, ou vigésima pancada, lá isso é...

Já agora, e como não podia deixar de ser, a Coolbooks está recetiva a originais.


22 de abril de 2014

Inspirações Revolucionárias (6)



Aquela ideia da Lena se ter metido com um comunista dava-lhe voltas na cabeça. Entre tudo o que o marido lhe dissera, era aquilo que mais a atormentava. As freiras do lar até desconfiavam que ela tivesse fugido à noite, pela janela, para ir ter com o namorado. Manuela dizia a si própria que tal coisa a enojava, qualquer relação entre homem e mulher, fora do casamento, a enojava. Costumava referir-se ao assunto como «porcarias».
No seu íntimo, invejava a filha! A possibilidade de ela ter sido feliz com um homem mortificava-a. Lena não sabia ser feminina, nunca se soubera vestir, recusava vestidos vaporosos e sapatos de salto alto. Era uma desajeitada, nem sequer se sabia pintar e pentear. Era uma injustiça que a rapariga tivesse provado daquilo a que ela própria, tão graciosa e sensível, nunca tivera direito. 


21 de abril de 2014

19 de abril de 2014

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (13)


Na cidade os processos eram diferentes. Os «cidadãos honrados» que detinham o poder económico e o governo local podiam - vários deles ao menos - ser grandes proprietários de terras, pelo que o abastecimento familiar estava garantido. Outros de entre eles - mercadores, por exemplo, sobretudo estrangeiros - embora não tendo bens fundiários próprios ou não os suficientes, possuíam a liquidez necessária para se abastecerem de uma só vez para todo o ano, comprando o cereal posto à venda na cidade ou, melhor ainda, procurando-o nos lugares adequados. Estes faziam as suas aquisições nos meses subsequentes à colheita, quando o grão se encontrava mais largamente disponível e a preços mais baixos. Estas famílias, porque as mais ricas, abasteciam-se de forma mais económica. Mas à medida que a situação financeira se ia degradando, os custos do abastecimento doméstico iam aumentando. Quer ele pudesse fazer-se semestral ou trimestralmente, quer os rendimentos familiares não permitissem aquisições mais volumosas do que as necessárias para cada semana ou menos ainda, de acordo com a periodicidade com que os respectivos proventos fossem recebidos, o custo do cereal para estas famílias ia-se sempre agravando, porque os preços iam sempre subindo, à medida que o ano se ia distanciando da época das ceifas. Mormente em períodos de escassez cerealífera - e tantos foram os que a Idade Média padeceu - esses preços podiam subir de forma dramática. E era sobre os citadinos de mais débeis recursos económicos que as oscilações sazonais e conjunturais recaíam com maior violência. Naturalmente, em vez do cereal podia adquirir-se o pão já confeccionado pelas padeiras, de que todos os dias eram postas à venda novas fornadas. Mas assim o produto final saía ainda mais encarecido.

A Alimentação, Iria Gonçalves (p. 233)

18 de abril de 2014

Gabriel García Márquez e a Revolução dos Cravos

Sou hoje surpreendida, ao ligar-me à internet, com a notícia da morte de Gabriel García Márquez, Nobel da Literatura em 1982. Sabia-se que a sua saúde estava muito debilitada, mas a morte surpreende-nos sempre.

Muita gente escreve em homenagem, pelos blogues, recorda as suas obras literárias. Mas eu não posso deixar de referir algo muito significativo, agora que se aproxima o 40º aniversário da Revolução: Gabriel García Márquez andou por Portugal em 1975 e escreveu três crónicas sobre esses tempos, no calor dos acontecimentos. A revista Visão republicou-as em 2004. Recorde-se que Gabo era um entusiasta da revolução cubana (pelo menos, naquela altura). A transcrição dos seguintes excertos (segundo os textos publicados pela Visão) não pretendem ser uma crítica, ou uma apologia, mas tão-só testemunhar uma época.


Em Portugal, muitos acreditam que o primeiro grande erro que a revolução cometeu foram as eleições de 25 de Abril [de 1975]. Foram realizadas contra a vontade do partido comunista (PCP), que só obteve 12% dos votos (…) As análises mais sérias concordam, sem dúvida, que estes resultados não correspondem à realidade, porque numa situação como a actual em Portugal não é possível aferir a realidade política pela quantidade de votos. «O PS obteve mais votos, mas o PCP tem uma maior força política devido à sua real implantação nas bases», disse-me um professor universitário. «Além disso, a direita destronada, mais hábil e inteligente, orientou os seus votos para o socialismo, ou seja, escondeu-se dentro da legalidade eleitoral para pôr um travão na revolução». 


«Caímos numa armadilha tola», disse-me um membro do Conselho da Revolução. «As eleições foram prometidas na euforia do primeiro momento, sem um conhecimento real das condições do país, e não as realizar poderia ter comprometido a credibilidade do MFA». Respondi-lhe que a revolução cubana, apesar das pressões vindas de todos os lados, não se deixou cair nessa armadilha.


Os camponeses terão as armas quando souberem contra quem têm de as usar. É uma promessa formal do MFA, e com essa finalidade foi criada a instituição mais original, interessante e eficaz da revolução portuguesa: as campanhas de dinamização cultural. São simplesmente brigadas de politização do MFA, que se misturam de igual para igual com os camponeses para os ajudar a superar os velhos preconceitos e explicar-lhes o sentido da revolução e a necessidade do socialismo (…) O homem que concebeu a ideia, a sistematizou e está a levá-la por diante com base numa experiência semelhante em Cuba é o comandante da Marinha Ramiro Correia, um médico de 32 anos, inteligente e culto, membro do Conselho da Revolução e um dos cérebros políticos do MFA.

[Vasco Gonçalves] «É o único puritano em quem se pode confiar», disse-me um velho amigo seu, quando lhe manifestei a minha inquietação pelo facto de o primeiro-ministro só beber água mineral, mesmo nas festas mais íntimas.

No aeroporto, senti uma espécie de exaltação irreprimível que não experimentava desde os primeiros anos da revolução cubana. Aos amigos que foram despedir-se de mim, disse estar convencido de que – na minha opinião – a revolução portuguesa não precisará tanto de heroísmo como de prudência e imaginação. «Então estamos salvos», disse-me a escritora Maria Velho da Costa. «Porque o povo português, tal como o diabo, sabe mais por ser velho do que por ser povo».