Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

15 de março de 2015

Lendo os outros

Mais um formidável texto de José Rentes de Carvalho:

«Sem ser o que se chama um bicho-de-buraco, também me não posso considerar medianamente sociável, pois fora possuir uma capacidade limitada para o convívio, a minha paciência suporta mal a maioria das conversas.
Francamente, não me interessa saber o que este e aquele ressentiram ao visitar as Pirâmides, ou qual é agora o preço do capuccino nas esplanadas dos Champs-Elysées. Menos ainda que na praça de São Pedro, com vinte e cinco mil outros, tenham recebido a benção do Santo Padre. Que a sogra tenha sido operado a um quisto no pescoço ou que, devido à escandalosa subida dos preços, já não valha a pena comprar casa de férias na Dordogne.
De visitas são poucas as que gosto, mas os jantares, que sempre me foram um momento agradável do dia, nalgumas ocasiões, e com certos convivas, estão-se-me a transformar em martírio.
Fadiga da idade, impaciência inata, o caso é que as mais das vezes, depois de horas à mesa, não consigo evitar que o meu rosto revele o aborrecimento, que os olhos procurem o vazio, o cérebro se me enevoe e a língua recuse participar na conversa.
Transformo-me num macambúzio anfitrião, o que pelos jeitos não afecta esses hóspedes. Indiferentes ao meu humor, eles continuam a contar do Papa e da Dordogne, e do quisto, e da má qualidade da hortaliça, e do que viram ontem na televisão. Incansáveis, repetem as Pirâmides, o preço do cappucino, recordam a pontada que uma vez lhes deu à saída do teatro, remoem os seus pequeninos interesses. Mostram as botas que, regateando, compraram em Lisboa por dez réis de mel coado. Desfiam com minúcia as razões da queda do índice da Bolsa...
Duas, três, cinco, as horas arrastam-se, a minha cabeça oura, revira-se-me o estômago, falta-me o ar. Sinto-me exausto, derreado pelo contraditório esforço de permanecer cortês e disfarçar a misantropia».


1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Bom dia Cristina Torrão, trouxestes o modo fidedigno a crítica na certeza da arte apresentar-se humana inclusive o bom gosto.