Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

1 de outubro de 2015

A propósito de eleições...


Daqui

           
            Para a Verónica, o primeiro acontecimento relacionado com a revolução digno de nota foram as eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras totalmente livres em Portugal, onde puderam votar todos os cidadãos maiores de idade, homens e mulheres. Oportunamente marcadas para 25 de abril de 1975, foram intensamente vividas, a abstenção não chegou a atingir os 10%.
A Verónica acompanhou a mãe à assembleia de voto. A primeira coisa que viu foi uma enorme fila, pela rua fora. Pessoas que já haviam exercido o seu direito de voto, mas que ainda por ali se quedavam, conversavam animadamente.
A mãe da Verónica colocou-se no fim da fila, a filha a seu lado. À medida que se iam aproximando do edifício, ouviam conversas ainda mais excitadas. Começaram a ter a sensação de que, lá dentro, ralhavam uns com os outros. Quando entraram, constataram que ninguém se entendia!
Os cadernos eleitorais eram folheados de trás para a frente e da frente para trás, em grande azáfama. Pelos vistos, revelava-se difícil encontrar os nomes dos eleitores que se apresentavam. Por vezes, desesperados pela procura infrutífera, os voluntários de serviço sentiam-se tentados a entregar o boletim de voto ao eleitor, sem terem dado baixa do nome. Eram travados pelo presidente da mesa, que gesticulava e berrava: «isto não pode ser assim». Eleitores que já tinham votado surgiam com o boletim ainda aberto, querendo metê-lo na urna, pelo que o homem alertava: «tem de o dobrar! Então? O voto é secreto». Outros, vendo as cabines de voto ocupadas, tencionavam fazer a sua cruz logo ali, em cima da mesa, e o homem via-se aflito para os pôr na ordem. Ainda outros, indignados com os seus berros, berravam-lhe de volta. E havia ainda quem lhe solicitasse: «Ó senhor, diga-me lá onde ponho a cruz para votar na mãozinha dos socialistas!»


 O homem suava as estopinhas. E era um velho conhecido da Verónica: o pai da morenita, o senhor magrinho, que tinha estado preso naquele sítio onde lhe batiam e não lhe davam os óculos e que a Verónica sabia agora ter-se tratado de um calabouço da PIDE.
Os ânimos estavam tão exaltados, que ela ficou com receio de que aquilo desse para o torto, enquanto a mãe se via aflita para que lhe prestassem atenção. Quando finalmente lhe passaram o boletim para as mãos, o pai da morenita não deixou a filha ir para a cabine de voto com ela. A Verónica ficou à espera que ela exercesse o seu direito cívico, impressionada com a aflição do senhor, que não sabia para onde se virar. Estivera preso por pertencer ao Partido Comunista, mas a democracia e a liberdade, naquele momento, também se lhe revelavam complicadas. Pelo menos, ninguém lhe roubava os óculos, apesar de a Verónica ter a impressão de que havia gente com vontade de lhe bater.
Eram as eleições à portuguesa. Premiaram o «socialismo à portuguesa».




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