Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

20 de dezembro de 2015

Conto de Natal (2)



A família da Sandra não se anunciara para o almoço e foi comer um prego no prato a um snack-bar. Regressaram na altura em que o avô iniciava as suas caminhadas no corredor, para trás e para a frente, a fim de fazer a digestão. A casa não tinha uma grande fachada para a rua, mas era comprida, com dois longos corredores, no rés-do-chão e no primeiro andar, e um quintal nas traseiras. Se não caminhasse a sua horita, o avô não digeria o almoço e, em dias chuvosos e frios, substituía as ruas da vila pelos corredores, o que lhe proporcionava o exercício extra de subir e descer as escadas.
A avó mostrou à filha e à neta as treze postas de bacalhau a demolhar em duas bacias de água e o cabrito e o galo capão, para o almoço de Natal, em vinha-de-alhos. Géninha, a mãe de Sandra, aproveitou para combinar os pormenores da consoada. Havia que dividir as tarefas, a fim de não se atrapalharem umas às outras. Foi nessa altura que chegou Tininha, com o marido Carlos e o filho Toninho.
Ainda antes de cumprimentar a irmã, Géninha lamentou vê-la tão magra. «Então tu não comes?», perguntou-lhe, com a expressão trágica com que via as crianças vítimas de fome na televisão. Tininha alegou que comia, mas que não conseguia engordar. Na verdade, ficava enfartada só de ver comida, pelo que os bolharacos empilhados nas travessas, as bacias de bacalhau e o cabrito e o capão no seu banho de vinho logo lhe fizeram subir a bílis à garganta. Sabia, de antemão, que teria dificuldades digestivas, depois da consoada e das sobremesas.
Já os primos Filipe e Toninho não se incomodavam com a fartura de vitualhas e fizeram-se aos bolharacos, o que lhes valeu um ralhete da avó, que ainda era cedo, que as travessas chegariam vazias à consoada… Sandra interessou-se mais pelo saco cheio de prendas que a tia Tininha trazia. Também ela e a mãe foram buscar os presentes que haviam comprado para a família e as três distribuíram-nos pelo bordo do fogão de sala, tendo o cuidado de deixar lugar para os que estavam ainda para vir. Em cada prenda se escrevia o nome de quem a deveria receber. E a tia trouxera, como de costume, um mimo extra: uma tablete de chocolate suíço para cada primo, sem esquecer a do avô, o único adulto a ter direito a tal benesse.
A tia Tininha e o tio Carlos tinham conhecimentos na Suíça, uma amizade estabelecida com um casal num parque de campismo do Algarve. Visitavam-se regularmente. Os tios contavam maravilhas do país dos Alpes: como tudo era limpo e ordenado, como havia civismo, como se faziam boas compras e como eram bonitas as montanhas. Sandra ouvia os relatos fascinada, mas o pai Narciso contrapunha um prodígio português por cada maravilha suíça: então e as montanhas de Trás-os-Montes também não eram bonitas? E não se fazia ski na Serra da Estrela? E não havia igualmente shoppings em Portugal?


2 comentários:

Olinda Melo disse...


Um ambiente familiar típico de tantas casas portuguesas por alturas do Natal. Cada um com o seu problema, com as suas vivências do ano inteiro, dos encontros e desencontros. É assim a vida...

Um conto que promete, pois continua, não é?

Bj
Olinda

Cristina Torrão disse...

Continua, sim, Olinda, todos os dias até ao dia 26.

Bj