Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de junho de 2015

Chamem a Polícia!



Ameaças não são um bom método educativo. Na verdade, são um sinal de desespero dos pais, que resolvem delegar responsabilidades. Foi a discussão que se gerou à volta de um apelo que a Polícia da cidade alemã de Hagen fez a todos os pais no Facebook. Reza assim (tradução minha):

«Parem, por favor, de dizer aos vossos filhos que os vamos buscar, se eles não se portarem bem! Os vossos filhos devem vir ter connosco, caso algo lhes meta medo… em vez de ter medo de nós!»

Uma enfermeira aproveitou a discussão gerada na mais famosa rede social para se meter ao barulho, anunciando que, no hospital em que trabalha, ouve muitas vezes os pais ameaçarem: «Se não te portares bem, vem aí a senhora enfermeira e dá-te uma pica!» A enfermeira lamenta que se criem medos desnecessários nas crianças que ela, transformada na má da fita, apenas pretende ajudar.


27 de junho de 2015

O Futuro é Passado no Presente


Depois de Obsessão e Moolb - o reverso, o autor continua a sua "saga" de dissecação do nosso tempo, em que as desigualdades, a desumanidade e a solidão atingem níveis absurdos, resultado da globalização e do capitalismo desenfreado. Há cenas que atingem nível de caricatura e é impossível não reconhecermos certas facetas da nossa sociedade, em momentos como:

«Quando M. entrou no hospital havia um estranhíssimo cheiro a morto (...) Na recepção, uma mulher, de má cara e poucas falas, atirou-lhe com um questionário para preencher. Olhou-a irritado... «Doía-lhe horrivelmente o braço, possivelmente estava fracturado e aquela desagradável mulher a querer obrigá-lo a preencher papelada sem fim.
- ??? - foi tudo o que recebeu na volta de um papel esbranquiçado, sem uma pupila de olho, só com aquele rosnado gutural, seguro por uma mão que o convidava ameaçadoramente a preencher» (p. 94).

Não resisto a citar outro momento, que considero o melhor deste livro. Trata-se de uma redação de uma criança, instada, na escola, a exprimir o seu maior desejo:


«Senhor, esta noite peço-te algo de especial: transforma-me num televisor! Quero ocupar o lugar dele. Viver como vive a televisão da minha casa. Ter um lugar especial para mim, e reunir a minha família à volta... Ser levado a sério quando falo... Quero ser o centro das atenções e ser escutado sem interrupções nem perguntas. Quero receber o mesmo cuidado especial que a televisão recebe quando não funciona. E ter a companhia do meu pai quando ele chega a casa, mesmo quando está cansado. E que a minha mãe me procure quando estiver sozinha e aborrecida, em vez de me ignorar ou desfazer-se em gostos para estranhos. E ainda, que os meus irmãos lutem e se batam para estar comigo... sem me magoar, claro está! Quero sentir que a minha família deixa tudo de lado, de vez em quando, para passar alguns momentos comigo. E, por fim, faz com que eu possa diverti-los a todos. Senhor, não te peço muito... Só quero viver o que vive qualquer televisor».

 Penso que as palavras de Pedro Sande falam por si.


25 de junho de 2015

Que emoções sentimos quando caminhamos de mãos dadas?

Esta pergunta da Alice Alfazema fez-me ir ao baú onde guardo coisas que escrevo, a fim de ir buscar este pequeno texto:



A menina segue pela mão frouxa da mãe. A menina gostava que ela a agarrasse melhor, para o caso de vir uma lufada de vento, que a levasse da mãe. E ela não quer ser levada da mãe. Mas a mãe caminha sem lhe prestar atenção, como se lhe fosse indiferente que a filha ali esteja. Por isso, não se dá ao trabalho de lhe segurar melhor a mão.
A menina não sente que a mãe a quer muito e que não a largaria por nada deste mundo. De vez em quando, põe a outra sua mão sobre a mão da mãe e aperta, mostrando-lhe que se quer sentir mais agarrada. A mãe reage impulsivamente e aperta mais os dedos sobre a mão da menina. Mas é sol de pouca dura. Depressa os seus dedos readquirem a frouxidão habitual.
A menina repete aquele gesto várias vezes, pelo caminho, até que a mãe pergunta porque faz ela isso. A menina diz que quer que ela a agarre melhor. A mãe olha-a como se a achasse estranha, pateta. E não se apercebe de que o insólito consiste em ela ter necessidade de fazer aquela pergunta.


23 de junho de 2015

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (17)


O desempenho de funções paternais e maternais por parte de outros parentes também se encontra recordado na cronística dos finais da Idade Média.
(...)
O sentimento do privado transborda, assim, da casa para a parentela, mais vulgarmente tios ou primos, na companhia dos quais decorria, muitas vezes, uma parte significativa da infância.
Entre a fidalguia rural minhota dos séculos XII e XIII, era costume confiar o aleitamento e a criação dos seus filhos às mulheres das famílias locais de camponeses livres, as quais, ao amamentá-los em conjunto com os seus próprios bebés, no quadro de uma irmandade de leite, passavam, por via desse serviço, a isentar o seu lar de pagamento de tributos régios.
(...)
Durante os séculos XII e XIII, a aprendizagem dos jovens fidalgos implicava, frequentemente, o abandono da casa paterna, por vezes logo após o desmame. Separados da mãe e das irmãs, os pequenos nobres passavam, então, a participar no mundo viril das cavalgadas, caçadas, armas e jogos de destreza guerreira, ao mesmo tempo que se incorporavam nos quotidianos próprios das famílias nobres onde passavam a viver, contribuindo deste modo para o reforço dos laços de dependência feudal que os uniam às suas linhagens de origem. Esta integração numa nova família podia, inclusivamente, sobrepor-se à própria consaguinidade, reforçando-a ou mesmo substituindo-a como laço vinculador, originando uma ligação social e afectiva muito forte.
(...)
No âmbito das elites aristocráticas, sobretudo fidalgas, as crianças ainda poderiam integrar uma nova família por outros motivos. Quando raparigas, era frequente o abandono da casa paterna, quando atingiam a idade requerida para o permitir, ou seja, a partir dos sete anos, para os prometimentos «que o direito chama esposórios», para serem criadas na própria casa dos futuros sogros, onde passavam a integrar uma nova família que as tratava como filhas, aí aguardando a idade convencionada para a concretização dos matrimónios previamente negociados, aos doze anos. Na cronística de Avis mencionam-se várias meninas infantas que, muito novas, e para cumprir o seu destino matrimonial, se viram obrigadas a abandonar a corte paterna.

A Criança, Ana Rodrigues Oliveira, pp. 277, 278 e 279.


20 de junho de 2015

O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel




Em dois contos, situados em dois grã-ducados imaginários, algures na passagem do século XIX para o XX, Mário de Carvalho apresenta-nos características e dramas humanos como a ambição, a hipocrisia, o medo do desconhecido, o deslumbramento por coisas banais, a indiferença por coisas menos banais ou mesmo perigosas, o acreditar em coisas fáceis porque é mais fácil, a esperança, a desilusão, a desumanidade.

Tudo nos é apresentado numa escrita fresca, de tão criativa, com pormenores geniais, temperada com uma fina ironia, a presença constante nestas duas narrativas (quase podemos dizer que a ironia é a verdadeira personagem principal), embora, quase sempre, os acontecimentos narrados sejam trágicos. O difícil balanço entre tragédia e comédia é, porém, perfeitamente conseguido.

Gostei mais do conto O Varandim, em que há um avô constantemente transportado na sua cama escada acima, escada abaixo, por motivos que só no final se vislumbram. Aproveito uma dessas cenas (p. 54) para dar uma amostra da escrita extraordinária de Mário de Carvalho:

Mas, em casa, estava instalado o pandemónio. Abrir a porta foi como destapar uma daquelas caixas míticas de onde irrompem, explodindo, males e prodígios. À entrada, Kosm ladrou, rebolou-se, correu, voltou, agachou-se, saltou, as orelhas num virote, a cauda num torvelinho. Pela escada ribombavam ecos de pancadas incertas na madeira dos painéis, no corrimão, nos degraus. A meio da escada, meio descomposto, em colete, as mangas da camisa enfunadas, Cleonardo em feroz gesticulação dirigia uma manobra, dando ares de um jovem pirata comandando uma abordagem cruel.

Ondulando e derivando, de degrau em degrau, mal amparada por Bekushka e Bucheon e orientada por uma Arnolda excitada, descia a cama do avô, atravessado e convulso entre amontoados de roupa, emitindo, na sua obliquidade, uns gemidos prolongados, sonoros a cada arranque, lentos no esvair das expirações.

- Papá, papá. É preciso desocupar o sótão!

E Zoltan viu nos olhos acesos do filho, nos gestos largos e bruscos, na aura de vibrações que lhe electrizava os cabelos e a própria roupa, um assomo de energia de que nunca pensou que ele fosse capaz. Sentou-se no canapé, lasso, sem forças.

- Água, água para o papá, imediatamente.

E, quando Bekushka largou a cama, os ferros tiveram mais um baque e o velho soltou mais um gemido.

Neste excerto, apercebemo-nos dos nomes curiosos que Mário de Carvalho dá às personagens desses locais imaginários. Para quem sabe alemão, alguns tornam-se particularmente hilariantes e não resisto a dar alguns exemplos:

- um homem chamado Zauerkraut (com Z em vez de S, que, como todos sabem, é a chucrute)
- a marquesa de Zufriedenheit (ou seja, do contentamento)
- a família Unmöglich (impossível)
- o barão Kindlich (jogando com a palavra "kindig", que significa infantil ou acriançado)
- a ilha de Katzenjammer (a ilha do lamento do gato)
- o conde de Überalles (sobretudo, pois claro)
- a senhora Dummschen (mais um jogo, com a palavra "dümmchen", que significa tolita ou parvita)
- os jesuítas Schlachten (batalha, carnificina) e Scröpfen (enfim, "Kropf" é bócio).


(Sem ousar comparar-me a tão talentoso escritor, apenas para publicidade, até me apetece recordar os nomes do meu Cloning Adolf: Kornflock, Matrix Relot, Obskur, Chanel Luninski, Tortinova e Cia.).