Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

28 de dezembro de 2016

Uma Parte Errada de Mim





«Sempre dissemos várias coisas, mas raramente com empatia, ou com espontaneidade, ou somente com simplicidade. Tivemos sempre uma relação amargurada com o que não conseguíamos ser. Tivemos sempre uma relação forçada, exigente, artificial. E, naquela cama de hospital, prestes a enfrentar um dos desafios mais duros da minha vida, decidi prescindir desse desgaste adicional. Precisaria de concentrar a totalidade das minhas forças no tratamento do cancro. E foi por isso que, por minha decisão exclusiva, contrariando todos os pedidos e intenções da parte dele, nunca me encontrei com o meu pai durante os tratamentos. Nem me encontrei depois. E, neste meu radicalismo, talvez tenha, finalmente, aprendido a viver sem a presença física de um pai e de uma mãe (p. 202)».

Esta passagem é emblemática deste livro de Paulo M. Morais, ou seja, mais do que o relato de uma doença, trata-se de uma reflexão sobre a vida. Há momentos em que, para sobreviver, temos de nos libertar de cargas supérfluas, mesmo que isso signifique quebrar com aquilo que a nossa sociedade considera sagrado. No nosso medo de magoar os outros, muitas vezes, deixamos que nos magoem para lá do suportável, o que implica uma subvalorização de nós próprios. Ninguém vai longe, nessa maneira de viver, normalmente cai numa depressão profunda. Há alturas em que temos de impor um limite, alturas em que temos de arranjar coragem para o impor.

Não se pense, porém, que Paulo M. Morais aproveita a doença para se livrar de quem o incomoda. Noutros casos, acontece o contrário: ele aproxima-se ainda mais de quem ama, porque amar é um bálsamo, em qualquer situação da vida… Desde que se seja correspondido. O verdadeiro amor traz alegria, motivação, vontade de viver, mesmo no enfrentar de dificuldades. Quando as pessoas que pensamos que nos amam nos põem tristes e amargurados, é claro que a relação nos prejudica mais do que ajuda. Não pode ser amor!

Gostei muito de ler este livro, embora tenha encontrado passagens (poucas) menos interessantes. É um livro útil. Para quem ainda não teve contacto com um cancro, ele põe-nos a par dessa faceta da vida. Por outro lado, poderá ajudar quem se debata com a doença ou acompanhe alguém que o faça. E, em qualquer dos casos, leva-nos a refletir sobre nós próprios, sobre a própria vida.

Nesta altura emblemática, em que se está prestes a iniciar um novo ano, desejo ao autor a continuação do sucesso e que continue a escrever livros que nos façam pensar!


22 de dezembro de 2016

Sugestões de Prenda de Natal (5)



«Várias vezes se perguntara se não seria melhor render-se a tão insistente e poderosa força, ficando ao lado de Helena. A sua vida, porém, parecia seguir um outro guião. Leonel sentia-se como um ator entre dois guiões, incapaz de se decidir por um e cumprindo o seu papel, ora num, ora noutro. Assustava-o aquela impotência, perguntava-se quem eram os autores que o obrigavam a tal espargata. E porque não conseguia ele escrever o seu próprio guião?»

18 de dezembro de 2016

15 de dezembro de 2016

Sugestões de Prenda de Natal (4)

E se alguém libertado de Caxias na madrugada de 27 de Abril de 1974 não tivesse ninguém à sua espera?

Foto de Fernando Tavares



«Eu não tinha ninguém à minha espera.
Seria a única? Nunca o averiguei.
À medida que as pessoas se encontravam e iam ficando juntas, crescia o meu isolamento. Dei-me conta da minha solidão. Estivera presa, fora torturada, era agora libertada e ninguém em particular me aguardava em júbilo, recebendo-me e amparando-me no seu calor, no seu amor.
Nem pai, nem mãe.
Ninguém».


12 de dezembro de 2016

Batalha de Alvalade

Afonso IV Biografia.jpg




Depois das Cortes de Lisboa, em Outubro de 1323, em que as pretensões do príncipe herdeiro foram desleixadas, este retirou para Santarém, reunindo os seus apoiantes e decidido a apoderar-se do trono à força, conquistando Lisboa.




Auxiliado pelos filhos bastardos Afonso Sanches e João Afonso, Dom Dinis tomou posição no campo de Alvalade (ou, segundo José Mattoso, no lugar chamado Albogas, perto de Loures).

Estava tudo a postos para a batalha final da guerra civil, quando esta foi impedida por intervenção de Dona Isabel.

Isabel - Batalha Alvalade.jpg
Imagem daqui



Relato de Dom Gonçalo Pereira, bispo de Lisboa:

«Vieram acordar-me a meio da noite, disseram-me que a rainha se encontrava ali no meu paço e me queria falar. Disse-me:
- Dom Gonçalo, temos de impedir a batalha prestes a acontecer no campo de Alvalade, pois saldar-se-á num horrível banho de sangue! Estava eu a meio das minhas rezas, quando Deus me fez ver a desgraça: os corpos mutilados, os gritos desesperados dos feridos… E uma voz suplicou-me que me interpusesse entre os dois exércitos, acompanhada do mais alto representante de Deus que pudesse encontrar. Aqui em Lisboa sois vós, eminência!
- Mas que podemos nós os dois fazer contra dois exércitos, minha santa senhora? Sem armas, sem soldados que nos acompanhem… Seremos chacinados!
Ela replicou, cheia de serenidade:
- A voz garantiu-me que nada nos sucederá, se levarmos esta cruz!
Mostrou-me o objeto que os seus criados transportavam e, quando me admirei do tamanho, ela replicou que era para ser vista ao longe.
Ainda me recordo de pensar que Dona Isabel teria endoudecido, quando senti uma força misteriosa apoderar-se de mim! Parecia vir do brilho dos olhos da rainha, uma força que me impedia de a contradizer. Fizemo-nos ao caminho, no escuro da noite fria, acompanhados apenas pelos serviçais que transportavam a cruz e as lanternas. Ao acercarmo-nos do campo de batalha, já ao nascer do sol, Dona Isabel disse que só eu e ela estaríamos protegidos das setas pelas forças divinas, os criados teriam de procurar abrigo. Eu retorqui que, na minha idade, jamais conseguiria carregar com uma cruz daquelas, mas ela disse:
- Pegai nela, Dom Gonçalo, e vede como Deus a faz leve!
E tinha razão! Logrei pegar na cruz e erguê-la! Se não o houvesse experimentado, nunca acreditaria. Mas ainda perguntei à rainha:
- E quem guiará o meu cavalo? Fico sem mãos livres para as rédeas…
- Deus - respondeu ela. - Tende Fé, eminência!
A minha montada seguia a de Dona Isabel como se realmente alguma força a guiasse, nem sequer se assustava com a zoada das setas, que voavam em arco por cima de nós. O mesmo não se podia dizer de mim. Confesso que nunca senti tanto medo na minha vida e bradei para a rainha:
- Morreremos, é o nosso fim!
- Fechai os olhos, Dom Gonçalo, e rezai!
- Fechar os olhos? Mas como saberei para onde ir?
- Rezai, Dom Gonçalo, e confiai em Deus!
Obedeci, nada mais me restava. E dei por mim com a cabeça encostada à cruz, a confessar os meus pecados, suplicando absolvição, tão convencido estava que chegara a minha hora. Não faço ideia quanto tempo assim estive, só sei que dei conta do silêncio que se havia apoderado de todo o campo. O meu cavalo parou, sem que lhe houvesse dado qualquer ordem. Abri os olhos e vi os vossos cavaleiros e os do príncipe virem ao nosso encontro. Chegaram no momento certo, pois comecei a tremer violentamente e a cruz pôs-se-me de repente tão pesada que, não fossem eles, tê-la-ia deixado cair ao chão. E só deixei de tremer aqui na vossa tenda».

Não foi, porém, estabelecido nenhum acordo de paz. A pedido da mãe, o príncipe terá concordado em desistir dos seus intentos, mas declarando que não mais desejaria falar com o pai, nem encontrar-se com ele, pelo que retirava para Santarém.

Dom Dinis, no entanto, dirigiu-se àquela cidade, em Fevereiro de 1324, sofrendo grande humilhação, quando as portas se lhe mantiveram fechadas. Houve duros combates, mas conseguiu-se um acordo entre o rei e o príncipe a 26 de Fevereiro. Dom Dinis comprometeu-se a aumentar as rendas do filho e a retirar o cargo de mordomo-mor ao bastardo Afonso Sanches.

Dom Dinis morreria a 7 de Janeiro de 1325, dia em que seu filho Afonso foi aclamado rei de Portugal, o quarto desse nome.

Dom Dinis Papel (1).JPG

O meu romance sobre Dom Dinis está à venda sob a forma de ebook, por exemplo, na LeYa Online, na Wook, na Kobo e na Amazon (pagamento em euros); Amazon (pagamento em dólares).

No Brasil, está disponível na Livraria Saraiva e na Livraria Cultura.

Para adquirir a versão em papel, contacte-me através do email andancas@t-online.de

10 de dezembro de 2016

Os Filhos de Salazar





Este romance começa com a Revolução de 28 de Maio de 1926 (que pôs termo à Primeira República Portuguesa, implantando-se uma Ditadura Militar, depois autodenominada Ditadura Nacional e por fim transformada, após a aprovação da Constituição de 1933, em Estado Novo) e termina com a Revolução dos Cravos. O leitor toma contacto com Salazar, um catedrático da Universidade de Coimbra, que se torna Ministro das Finanças da Ditadura Militar e, como todos sabemos, acaba como chefe do governo do Estado Novo. Salazar e outros amigos e colaboradores, incluindo o cardeal Cerejeira, são-nos apresentados nos serões de outro catedrático, Leandro de Albuquerque, entrando assim o leitor numa certa intimidade dessas personagens.

Na casa do Professor Leandro de Albuquerque crescem duas crianças: Mariano, filho biológico do catedrático, e Mariana, filha adotiva, que ficou órfã de pai ainda antes de nascer, depois de mãe, e cuja família era vizinha dos Albuquerque. Não se pense, porém, que houve apenas altruísmo no ato de adoção. Leandro de Albuquerque desconfia ser o pai da rapariga, pois tivera um caso com a mãe dela.

Mariano e Mariana desenvolvem carácteres muito diferentes. Ele é o filho obediente que se torna padre e defensor do regime. Nesta atitude, contudo, encontramos mais ingenuidade do que ideologia fascista. Mariano acredita nas boas intenções de Salazar em proteger o povo português. Ele próprio tenciona ajudar essa gente pobre, que trabalha de sol a sol, participando nas atividades de lavoura da sua paróquia, uma pequena localidade do interior, o que aliás causa estranhamento aos seus habitantes. Com o passar dos anos, porém, Mariano apercebe-se dos verdadeiros contornos da ditadura, o que o revolta.

Achei esta personagem muito interessante, porque, na verdade, ao tempo do Estado Novo, os portugueses não se dividiam exclusivamente entre os que eram contra e a favor da ditadura. Havia uma grande parte da população conivente com o regime devido à ignorância ou à ingenuidade, facto que me parece pouco explorado na literatura nacional.

Mariana é rebelde desde o início, leva uma vida libertina, contesta a ditadura e acaba por ser expulsa da casa dos Albuquerque. Instala-se numa pequena quinta que herdou da mãe, mas a sua cooperação em atividades consideradas subversivas leva-a a Caxias.

António Breda dá-nos assim um retrato do Estado Novo. Na minha opinião, contudo, depois de uma primeira metade excelente, o romance envereda, na segunda metade, por um enredo menos empolgante, pois, na fase de destruição das ilusões dos protagonistas, confesso que esperava outro tipo de atitude por parte deles. Enfim, talvez assim esteja mais em conforme com a vida real…