Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

8 de março de 2017

O Deus das Moscas





Este é um livro interessantíssimo, na sua mensagem, mas cujo contexto não deve ser levado demasiado à letra.

A mensagem é mais atual do que nunca: tiranias e ditaduras baseiam-se no medo! Quando as pessoas se sentem fracas e ameaçadas, seguem sem reservas a figura que lhes promete aniquilar o monstro. Se o monstro existe, ou não, é indiferente; como é indiferente se, existindo, ele é de facto ameaçador, ou responsável pela situação difícil que se vive. Importante é que se acredite nele e na força da figura que garante poder aniquilá-lo. Indiferente é também de que meios essa figura tirânica se serve. Crimes são cometidos e legitimados em nome da segurança. Isto é uma perfeita alegoria do que se vive atualmente e serve de matéria de reflexão.

Com o contexto criado pelo autor é que me parece que devemos ter muito cuidado, não tirando conclusões precipitadas, como a que li algures num comentário, já não sei em que blogue, nem por quem proferido: O Deus das Moscas seria a prova de que os seres humanos são maus por natureza, contrariando a teoria do bom selvagem de Rousseau.

Não querendo agora entrar em discussões filosóficas, lembro que uma obra de ficção não pode provar coisa nenhuma! William Golding não apresenta os resultados de um estudo, ou de uma experiência. O enredo por si criado nem sequer é baseado em factos reais.

Seria de facto interessante ver como um grupo de crianças, ainda não corrompido pela sociedade, sobreviveria numa ilha deserta. Lamento, porém, que essa experiência seja impossível. Só recém-nascidos ou bebés muito pequenos não foram ainda demasiado influenciados pelo mundo à sua volta. E estes não estão em condições de sobreviver sozinhos, seja onde for.

Qualquer criança, ou jovem, que seja capaz de sobreviver sem ajuda, já não é puro, ou seja, já foi educado e influenciado de alguma maneira, possui certos conceitos e uma visão do mundo que lhe foi transmitida. Mais: uma criança de doze anos pode até pensar ser o contrário daquilo que verdadeiramente é, ou seja, pode atuar com crueldade, sendo bom por natureza; pode ser submissa, tendo qualidades de liderança por natureza; pode ser sossegada, sendo ativa por natureza; pode ter as ideias bloqueadas, sendo criativa por natureza, etc. Ou o seu contrário. Tudo depende da educação que levou, das suas vivências e experiências. Um rapaz que nasça pobre tem, aos doze anos, uma visão do mundo bem diferente da de um rapaz que nasça rico.

O próprio autor alude a vivências que tenham definido o comportamento das suas personagens:

«Ainda assim, a tradição norte-europeia de trabalho, diversão e alimento ao longo do dia todo possibilitou que eles se adaptassem inteiramente àquele novo ritmo» (p 68).

«Percival tinha cor de rato e nem a mãe o achara muito atraente» (p 69) - o suficiente para modelar, na negativa, o carácter de um miúdo desde o nascimento.

«Só Percival começou a choramingar, com areia num olho, e Maurice bateu em retirada. Na sua outra vida, Maurice fora, certa vez, castigado por encher de areia a vista de um miúdo mais novo. Agora, apesar de não estar presente qualquer pai para fazer tombar sobre ele a mão pesada, Maurice continua a sentir o desconforto de ter feito uma maldade» (p 69).

Recordemos ainda que estes jovens e crianças são o fruto da educação autoritária inglesa dos anos 1950. Além disso, o miúdo que se torna tirano tem um historial de liderança, antes de se ver preso naquela ilha. Ele é o chefe de um coro, um grupo que se rege por normas de modelo militar, farda inclusive. O rapaz está habituado a que lhe obedeçam cegamente, sem o questionarem, o que, por si só, pode levar a situações de abuso, seja em que contexto for.

Ou seja: um livro interessante, que dá vários motivos de reflexão, mas que não se pode usar sem reservas como modelo da realidade.


9 comentários:

Sara disse...

Para mim os seres humanos são maus com algumas tendências boas - não o contrário. Se viveres numa sociedade mais ou menos equilibrada as tendências boas vão sobressair mais. Não precisas de lutar para sobreviver, o básico está assegurado e as instituições garantem a ordem. Se isso acabar (por desastres naturais, guerras...) as pessoas vão virar monstros em menos de nada. Os humanos são essencialmente primitivos (sobreviver, procriar, comer...É independente da cor ou do país onde nasces), mas estes instintos felizmente não precisam de se manifestar muito no quotidiano (e para isso existem as prisões), mas estão lá de qualquer modo. Como os humanos também têm uma tendência para a dominância não é possível acabar com as guerras. Não acho que este livro seja para ser levado literalmente - é um texto de ficção profundamente simbólico sobre como os bons valores (a concha e isso tudo) são facilmente substituídos pela barbárie, especialmente quando há uma figura no comando.

Cristina Torrão disse...

Sara, não concordo inteiramente com a tua opinião, apenas com certos aspetos, mas aceito-a. Mais: admito que possas ter razão.
Eu, porém, tenho uma opinião diferente. Muitas vezes, é precisamente em situações extremas (desastres naturais, guerras, etc.) que as pessoas são capazes dos atos mais humanos. Não tenho a certeza se as pessoas se tornam mesmo monstros em menos de nada. Mas é claro que não o posso provar. Penso que depende muito das circunstâncias, dos genes e da educação que se teve. As pessoas tanto podem transformar-se em monstros como em anjos.
É verdade que vivemos numa sociedade em que não precisamos de lutar para sobreviver. Por outro lado, quem construiu essa sociedade? Quem guiou as coisas para que assim fosse?
É verdade que o momento que estamos a viver põe qualquer um a duvidar quanto ao verdadeiro carácter dos humanos. Esta crise dos refugiados despertou reações incríveis. Mas nos dois sentidos! Infelizmente, dá-se mais destaque às reações negativas, mas talvez seja melhor assim. São essas reações que importa combater.
No fim, o que conta mais: o egoísmo, ou a solidariedade? Impossível de saber, mas quero acreditar que a maioria das pessoas é solidária e boa. Podes dizer que a minha opinião se baseia nesse meu desejo, que quero acreditar que as pessoas, no fundo, sejam boas. Pode ser. Mas, como dizia o John Lennon, "I'm not the only one". E, quantos mais quiserem acreditar...

Outra coisa que não foquei no post, porque já ia muito comprido, mas que aproveito para focar agora: na ilha, apenas havia rapazes. As coisas teriam corrido de outra maneira se também houvesse raparigas? Não estou a dizer que, em circunstâncias extremas, elas fossem melhores do que eles. Mas aconteceria tudo da mesma maneira?

Sara disse...

A questão dos refugiados é um bom exemplo: pessoas comuns que ao verem a sua noção de pátria ou o seu conforto aparentemente ameaçado por outros seres que eles têm dificuldade em compreender dizem (e fazem mesmo na prática) as coisas mais cruéis.São aparentemente pessoas bem integradas no meio social e com que velocidade viram bestas...Algumas experiências também provam isso. Claro que também há heroísmo. É importante reconhecer que isso existe, mas o resto também - é pior enquanto continuarmos a achar que o mal é uma coisa exterior que pode ser colocada em caixinhas longe de vista.

Talvez quando passámos a viver só num sítio - a vida tornou-se mais fácil e isso proporcionou que fossem criadas regras para uma mais salutar convivência. E depois apareceu a religião organizada. Os instintos foram ficando sob controlo: a maior parte das pessoas concordará que não devo comer tudo que está no frigorífico de uma vez e que não devemos tentar procriar com o primeiro humano que cruze o nosso caminho. Mas certas situações podem reduzir um ser humano aos seus instintos mais primários.

O livro é uma alegoria - claro que o cenário em si é improvável. As fêmeas iriam logo distribuir tarefas, procurar comida e construir um abrigo. Quando se zangassem iriam dividir-se em grupos que iriam cada um para a sua parte da ilha...Os machos têm tendência para ser dominantes e não gostam de ser contrariados logo teriam mais dificuldade em atribuir as tarefas e o caos ia gerar-se mais rapidamente. Mas também há fêmeas alfa por isso nada é certo. A maldade não é uma questão de género...Se um fosse um grupo misto os machos iriam lutar pela liderança e submeter as fêmeas e elas ficariam com ciumes uma das outras xD

Cristina Torrão disse...

Obrigada pelas tuas palavras. Esta é de facto uma discussão fascinante.
Eu penso sempre que estamos já bastante longe dos outros animais e que a educação que recebemos em casa conta mais do que tudo. Por outro lado, de facto, estando a sobrevivência em causa, os instintos regressariam. A questão seria: quanto do que já aprendemos influenciaria os instintos?

No entanto, o caso dos refugiados mostra como muita gente receia o que é diferente, o desconhecido. Talvez a educação e a cultura não tenha mesmo servido de muito...

Sara disse...

As pessoas que dizem (ou fazem) essas coisas desagradáveis a propósito dos refugiados não são todas do mesmo quadrante social - o ódio parece ser indiferente a educação ou sítio de nascimento. De relembrar que os tipos que fotografaram as mulheres em burkini para irem fazer queixa eram insuspeitos cidadãos franceses. Já está provado que os humanos tendem a conformar as suas opiniões com a maioria e que uma boa percentagem é capaz de fazer mal a outro humano se uma figura de autoridade lhe ordenar. Não é nada que já não tenhamos visto várias vezes. Não acho que o Deus das Moscas seja prova de alguma coisa, acho que é uma boa reflexão sobre a natureza humana e a natureza do mal. Em relação aos instintos, a educação tem influência no dia-a-dia, mas estávamos a falar de situações extremas.

Cristina Torrão disse...

São questões muito complexas, Sara. "Educação" não é igual a "educação", ou seja, pessoas do mesmo estrato social podem ser educadas de maneira muito diferente. A propensão para o ódio e para o conflito pode ser transmitida em lares díspares. Claro, há padrões comuns a famílias do mesmo estrato social, mas também há "nuances" entre elas. E também há a questão dos genes, que podem prevalecer, ou não, sobre a educação que se recebeu. O que eu quero dizer é que quando achamos uma pessoa simpática e generosa e outra mal-encarada e conflituosa tem sobretudo a ver com o ambiente em que foi criada.
Mas infelizmente é verdade que "os humanos tendem a conformar as suas opiniões com a maioria e que uma boa percentagem é capaz de fazer mal a outro humano se uma figura de autoridade lhe ordenar". O caso do nazismo é um bom (mau) exemplo, um exemplo levado ao cúmulo :(

Sara disse...

Não é forçoso que crescer num lar considerado "díspar" faça as pessoas mais propensas ao ódio: isso implicava que todas as que vão a manifestações fascistas sejam pessoas com problemas sociais ou de baixo escalão. Às vezes bem podes dar a mesma educação a dois filhos e eles acabam por seguir caminhos muito diferentes...As pessoas tornam-se adultas e tomam as suas próprias decisões. Um dia um pesquisador achou boa ideia dividir uma turma universitária em presos e guardas e mandá-los para um simulacro de uma prisão - o resultado foi péssimo e no entanto os alunos eram privilegiados e não se esperava que fossem capazes de torturar um pobre diabo. É verdade que tudo isto tem muitas nuances...Acho que é importante perceber que sim, há pessoas generosas e isso, mas também que o mal não é exterior e que muitas vezes os monstros não estão debaixo da cama - e podem ser os mais exemplares dos cidadãos. Há quem prefira dizer que essas pessoas que lá nos anos 30 foram ao estádio estender os bracinhos eram todas psicopatas, mas dizem isso porque é difícil aceitar o facto que elas eram iguais a nós.

Cristina Torrão disse...

Precisamente, Sara! Com "lares díspares" não quis dizer lares problemáticos, mas sim diferentes, ou seja, ricos ou pobres; cultos ou ignorantes. Talvez não tenha usado a melhor expressão, mas quis dizer precisamente isso: que nem só pessoas com problemas sociais ou de baixo escalão são violentas ou racistas. Há vários anos, um rapaz alemão de 17 anos entrou armado no liceu que tinha frequentado e matou 25 pessoas, entre alunos e professores. Era oriundo de uma família de formação académica, sem problemas monetários.

Quanto à educação dos irmãos: eu penso que é impossível dar a mesma educação a dois filhos! Por duas razões: em primeiro lugar, todas as crianças são diferentes e podem reagir de maneira muito diferente aos mesmos estímulos, aos mesmos conselhos e ao mesmo trato; em segundo lugar, penso que os pais nunca conseguem tratar dois irmãos da mesma maneira, por mais que se esforcem. E a verdade é que a maioria não se esforça mesmo nada. O filho mais velho é sempre o mais velho, ou seja, é aquele que deve tomar conta do irmão, ajudar os pais, aceitando o que eles dizem e obedecendo; o filho mais novo é sempre o mais novo, ou seja, é aquele que se desculpa mais, que se mima mais, a quem se perdoam as birras, porque se diz sempre ao mais velho: tem lá paciência e não irrites o teu irmão; anda lá, ajuda-o. Quando se diz isto ao mais novo? Raro, cara Sara, raríssimo. Uma criança de cinco anos a quem lhe nasça um irmão é logo tratada de maneira diferente. Já é homenzinho/mulherzinha, tem de ter paciência, os pais estão ocupados com o bebé, é mais pequenino, precisa de mais cuidados. É verdade. Mas é difícil para uma criança de 5 anos perceber isso. Por outro lado, imaginemos agora que o mais novo atingiu os cinco anos, o mais velho tem dez. Alguém diz ao mais novo que tem de ter paciência e portar-se como um/a homenzinho/mulherzinha, se os pais não têm uma criança mais nova para cuidar? Claro que não, pelo contrário: ele, apesar de já ter a idade do irmão, à altura do seu nascimento, continua a ser o pequenino de quem se tem de cuidar, enquanto o irmão, com 10 anos, tem de continuar a ter paciência, a desculpá-lo e a cuidar dele. Isto forma carácteres muito diferentes! Não quer dizer necessariamente maus ou bons, se os pais têm atenção e tentam tratá-los de maneira igual o mais possível. Mas quem se dá a esse trabalho? Nas observações que faço, quase não vejo disso.

Os pais podem ser a causa de ciúmes terríveis entre irmãos, que podem levar a atitudes trágicas, se constantemente os comparam: porque não és como o teu irmão, sossegado e bom aluno? Porque não és simpático como o teu irmão? Já viste que bem que ele fala, porque não és assim? Comparações é a pior coisa, devem evitar-se ao máximo! No caso do rapaz alemão, li, numa reportagem, que a irmã mais nova era uma aluna exemplar, enquanto ele tinha muitas dificuldades de aprendizagem. Isso fez-me pensar: quanta pressão teriam os pais feito sobre ele? Teriam sido sarcásticos com ele, constantemente a humilhá-lo, enquanto elogiavam a irmã? E pode isso ser a causa de um ódio descomunal? Eu acho que sim! Claro que aqui os genes também contam.

Sim, claro, pessoas normalíssimas são capazes de apoiar os ditadores mais sanguinolentos. Há uma dinâmica que se cria. Como eu já disse aqui num post: «No tempo da nossa ditadura, por exemplo, não consta que Salazar tivesse dificuldade em arranjar gente disposta a perseguir e a torturar (por vezes, até à morte) os seus próprios compatriotas».
Aqui: http://andancasmedievais.blogspot.de/2015/11/a-origem-da-violencia.html

Sara disse...

Bom, eu não tenho filhos...Mas em principio transmitiria os mesmos valores a todos. Não teria sentido de outro modo. O modo como são transmitidos é que pode depender...Os pais cometem muitos erros xD Matar sim, mas também há outro factor aqui - aqueles que não matam, mas ficam a ver. Há uns tempos encontrei uma foto que mostra a reacção de um grupo de cidadãos alemães quando são forçados a olhar para buchenwald. Estão todos com ar um chocado...Mas eles viviam a poucas milhas dali. Sempre se diz que tanto é ladrão o que vai à horta como o que fica na porta...