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9 de novembro de 2012
Jerusalém
Gostei mais deste livro de Gonçalo M. Tavares do que de Aprender a Rezar na Era da Técnica. A qualidade da escrita é a mesma, mas Jerusalém lê-se quase de um fôlego, o que não me aconteceu com o outro, como aqui expliquei. Jerusalém tem um bom enredo, que evidencia a nossa sociedade formatada, uma sociedade sem lugar para a diferença, implacável para os denominados de "loucos".
Mas há, a meu ver, um grande senão: o autor dá-nos uma visão dos psiquiatras e dos psicólogos que não corresponde à verdade. Não nego que, em tempos passados, se exerceu muita crueldade em hospícios e que, entre esses médicos, que, em princípio, nos deveriam ajudar a ultrapassar fases menos boas das nossas vidas, esteja gente sem escrúpulos.
Em condições normais, porém, conceitos como "louco" e "moral" não entram no vocabulário dos especialistas da mente humana (pelo menos, hoje em dia). Ora, os dois psiquiatras de Jerusalém, Theodor Busbeck e Gomperz, têm uma verdadeira obsessão por estes conceitos, como se prova nestes excertos:
Para onde deve o homem dirigir o seu pensamento, para não ser considerado louco?, eis o problema colocado pelo doutor Gomperz e sobre o qual agora Theodor Busbeck tenta reflectir.
(...)
Um homem moral em que assuntos deve pensar? E em que assuntos não deve pensar?
(...)
Não bastava responder moralmente à pergunta: que actos devo fazer? Faltava responder com a mesma consistência à questão: que pensamentos devo ter?
O doutor Gomperz possuía, assim, da loucura - embora não se atrevesse a expressá-lo - uma imagem associada à imoralidade: louco é o que age imoralmente e louco ainda é o que agindo moralmente pensa de modo imoral. A loucura seria, assim, uma pura falta de ética, momentânea, porventura, e portanto curável, ou definitiva, eterna, e portanto: incurável. No criminoso e no idiota mental que nada percebe via Gomperz os dois tipos de loucura e, por consequência, de imoralidade: a loucura instalada nos actos do criminoso e a loucura instalada no pensamento do homem que não percebe minimamente o mundo onde deverá agir. O agir deste louco que não percebe era, então, também, um agir criminoso, mesmo que não fizesse mal a ninguém, pois era um agir efeito de um não entendimento, de uma ignorância; e sendo neutro ou tendo mesmo efeitos positivos, seria sempre um acto imoral porque não consciente. A incosciência é imoral - dizia Gomperz -, é criminosa.
Ora bem, eu não ponho em causa este raciocínio interessante, onde subsiste uma imensa crueldade. Só não o imagino na cabeça (ou saído da boca) de um psicólogo. "Loucura", "moralidade" e "criminoso" são conceitos dos quais esses profissionais se abstraiem por completo, caso contrário, não estariam em condições de tratar certas doenças e/ou distúrbios mentais. Um psicólogo encara com a mesma naturalidade e a mesma abertura de espírito uma inofensiva senhora que sofra de depressão e um pedófilo sadista.
Gomperz por vezes atrevia-se mesmo a colocar a um paciente a seguinte questão: sabes em que é que deves pensar? - isto é manipulação, é terror puro e duro! Apesar de se enquandrar no enredo de Jerusalém, confesso que este género de inverosimilhança me tirou um pouco do prazer da leitura.
Nunca li nada dele, agora fiquei com vontade de ler.
ResponderEliminarA escrita é de grande qualidade, não há dúvida. É daqueles escritores em que uma pessoa se pergunta: como é possível escrever assim?
ResponderEliminarMas é :)
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