Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.
Faz hoje 743 anos que D. Dinis e D. Isabel celebraram as suas bodas na vila de Trancoso, Beira Alta.
Retrato de D. Dinis e D. Isabel da Sala dos Capelos, Universidade de Coimbra
Os dois estavam casados por procuração desde 11 de Fevereiro de 1281, mas só dezasseis meses mais tarde, em Trancoso, se conheceram. D. Isabel entrou em Portugal por Bragança, onde foi recebida pelo infante D. Afonso (o irmão de D. Dinis), pelo alferes-mor conde Gonçalo Garcia de Sousa e possivelmente pelo mordomo-mor D. Nuno Martins de Chacim. O cargo de mordomo-mor era o mais alto da cúria régia, mas de facto não há certeza de ele estar presente, pois, nesta altura, tinha idade já muito avançada.
D. Nuno Martins de Chacim foi o último representante dos Bragançãos medievais e Aio de D. Dinis, ou seja, foi o escolhido por D. Afonso III para se encarregar da educação do príncipe herdeiro. A localidade de Chacim, que bem conheço, teve a sua importância na Idade Média e até ao século XVIII. Foi inclusive sede de concelho, estatuto que perdeu para Macedo de Cavaleiros, em meados do século XIX.
D. Dinis deslocou-se ao encontro da sua noiva, pelo interior Norte, juntando-se os dois em Trancoso, onde foi festejada a sua união.
Isabel tornou a encará-lo, com um esboço de sorriso. Dinis tomou-lhe uma das mãos e o franciscano D. Telo, arcebispo de Braga, envolveu as dos soberanos com as suas, num gesto de bênção e aceitação. Portugal encontrava-se sob interdito, com as cerimónias religiosas e os sacramentos proibidos, e aquele gesto legitimava oficialmente a união em solo português dos nubentes já casados por procuração.
(Do meu romance Dom Dinis, a quem chamaram O Lavrador)
D. Isabel tinha apenas doze anos e depreende-se que D. Dinis tenha esperado que ela se fizesse mulher para consumar o casamento, como era hábito na época. A primeira filha, Constança, só nasceria oito anos mais tarde, a 3 de janeiro de 1290; o segundo filho, futuro Afonso IV, a 8 de fevereiro de 1291.
As duas crianças nasceram apenas com um ano de diferença uma da outra. O casal não tornou a ter filhos, durante um casamento que durou quarenta e quatro anos. A vida conjugal de D. Dinis, que teve alguns bastardos, e de D. Isabel, a rainha que foi canonizada, suscita várias interrogações.
A 24 de junho de 1319, D. Dinis entregou à Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo os bens que tinham pertencido aos Templários. O primeiro Mestre da Ordem de Cristo foi D. Frei Gil Martins, anteriormente Mestre da Ordem de Avis.
Nota: o link da imagem copiada nove anos atrás deixou de funcionar. Fiquei assim sem referência, pelo que peço compreensão aos visados.
Neste dia 23 de junho do ano de 1287, D. Dinis doou a vila de Sintra a sua esposa D. Isabel, cinco anos depois de terem celebrado as suas bodas em Trancoso, assunto a que brevemente me referirei, já que se verifica o seu 743º aniversário daqui a três dias.
A 20 de junho de 1322, dois anos e meio antes da sua morte, D. Dinis foi acometido de doença grave. «Um ligeiro ataque vascular-cerebral ou um pequeno ataque cardíaco?», pergunta-se José Augusto Pizarro, autor da biografia de D. Dinis (Temas e Debates, 2008).
O rei Lavrador tinha, nesta altura, sessenta e um anos e não se lhe conheciam doenças. Encontrava-se, porém, numa fase muito desgastante da sua vida: a guerra civil contra o seu próprio filho e herdeiro. Esta doença verificou-se depois do cerco a Coimbra, que implicou duros combates. Através da mediação da rainha D. Isabel e do conde de Barcelos Pedro Afonso (filho ilegítimo de D. Dinis), o rei assinou as pazes com o infante, mas, no seu regresso a Lisboa, sentiu-se mal.
O estado de D. Dinis melhorou no início do ano seguinte, mas as pazes com o filho foram de pouca dura. O acordo seria quebrado em Outubro de 1323, depois das Cortes de Lisboa. A guerra entraria na sua última fase, com a Batalha de Alvalade, mas dedicar-me-ei ao assunto na altura própria. Para já, um excerto do meu romance, quando já não havia entendimento possível entre pai e filho:
De nada adiantava mandar emissários, depois da humilhação nas Cortes de Lisboa, Afonso tudo faria para se apossar do trono. A batalha era inevitável.
Dinis sabia ter ido longe demais. Mas que força o impedia de se entender com o seu próprio herdeiro? Teria inconscientemente guiado os acontecimentos de maneira a que Afonso Sanches lhe pudesse suceder? Na verdade, via-se incapaz de responder a esta pergunta.
Naquela noite, véspera da batalha, Dinis mortificava-se. Estava a ir contra a vontade de Deus, chefiando um combate contra o seu único filho legítimo? O rei não conseguia adormecer, novamente atacado por tonturas, dores de cabeça e suores. Tornaria a adoecer? Finar-se-ia ainda antes de se dar o combate?
Nada mais lhe restava senão confiar na força divina. Desejou um milagre. Sabia que Isabel rezava, recolhida no seu paço, depois de semanas de penitências rigorosas. Conseguiria ela provocar um milagre?
A 19 de junho de 1263, o papa Urbano IV, atendendo às solicitações do clero português, levantou o interdito que imperava sobre o nosso reino desde 1255 e legitimou o consórcio de D. Afonso III.
À data do seu casamento com Beatriz de Castela, o pai de D. Dinis era ainda casado com Matilde de Boulogne. Foi acusado de bigamia pelo papa Alexandre IV, que, dois anos mais tarde, lançaria o interdito sobre Portugal. Um reino sob interdito estava proibido de celebrar missas e sacramentos (incluindo casamentos e batizados).
A complicada situação resolveu-se com a morte inesperada de Matilde.
Apenas quatro anos mais tarde, porém, devido aos conflitos entre o mesmo D. Afonso III e o clero, o papa lançaria novo interdito sobre Portugal (assunto a tratar numa outra ocasião).
Nota: ler aqui sobre os casamentos de D. Afonso III.
Terá sido no mês de junho de 1278 que D. Afonso III armou cavaleiro o infante D. Dinis, seu filho e herdeiro, de dezasseis anos. De seguida, atribuiu-lhe "casa autónoma". D. Afonso III estava já bastante doente e não viveu muito mais tempo.
Dom Afonso III tratara da entrega do testemunho durante todo aquele ano de 1278. Dinis fazia parte de uma comissão que regia o reino e onde figuravam o mordomo-mor João Peres de Aboim e o chanceler Estêvão Anes, sob a supervisão da rainha Dona Beatriz. O velho rei armara o filho cavaleiro, oferecendo-lhe uma belíssima espada, enfeitada no punho com duas esmeraldas e dois cristais e contendo na bainha dezasseis rubis e catorze safiras. Atribuíra-lhe igualmente casa autónoma, ou seja, cavaleiros vassalos próprios, assim como vários escudeiros, copeiro-mor, escanção-mor e reposteiro-mor, este último, responsável pelo património do príncipe.
(…)
Dinis recebeu ainda joias, pedras preciosas, tecidos finos e objetos de prata, como escudelas, trinchantes, pichéis, vasos e copos.
Do meu romance Dom Dinis, a quem chamaram O Lavrador
Nos meus primeiros tempos na Alemanha, tive receio de "desaprender" o meu inglês e passei a ler quase só livros nessa língua. Um dia, o meu marido chegou a casa com um romance histórico de Sharon Penman. Nenhum de nós conhecia a autora, mas ele tinha deparado com o livro em promoção e resolveu oferecer-mo.
Posso dizer que este livro mudou a minha vida. Apaixonei-me logo pela escrita desta autora. E, até hoje, ainda não encontrei melhor, em matéria de romances históricos. Além disso, foi ela que me levou a igualmente escrever este tipo de ficção.
Sharon (Kay) Penman não se limita a narrar os acontecimentos, ela puxa-nos para o meio da ação. É facílimo identificarmo-nos com as suas personagens. Não há vilões, nem santos, nos seus livros. Há pessoas, com todos os seus lados, bons e maus. Sharon Penman revela uma lucidez invrível sobre a natureza humana.
Depois de ler seis livros dela (alguns, duas vezes) estive cerca de vinte anos afastada das suas obras. Em fins do ano passado, descobri, na minha estante, um romance ainda por ler: Time and Chance, o segundo volume de uma saga de cinco, sobre a família de Henrique II de Inglaterra e Leonor da Aquitânia. Peguei nele. E "a febre" voltou. Soube que Sharon Penman tinha entretanto falecido, mas não descansei enquanto não arranjei os três volumes que me faltavam. A sua aquisição provocou-me um entusiasmo raramente sentido, em matéria de livros.
Leonor da Aquitânia e Henrique II provocaram alterações profundas, na Europa medieval. Naquela altura, o rei de Inglaterra era igualmente duque da Normandia. Henrique II, o primeiro rei Plantageneta, herdou ainda de seu pai os condados de Anjou e da Bretanha e, por casamento com Leonor, tornou-se conde de Poitou e duque da Aquitânia. Era, porém, vassalo do rei de França, por esses territórios, criando uma situação bizarra. Por um lado, muita da França atual pertencia-lhe, possuía mais terras do que o próprio monarca francês. Por outro, custava-lhe, como rei de Inglaterra, ser vassalo do de França. Para complicar mais ainda, Luís VII tinha sido o primeiro marido de Leonor da Aquitânia. O casal conseguiu o divórcio e Leonor foi, até hoje, a única mulher a ser rainha de França e de Inglaterra. Mas a rivalidade entre os dois "maridos" foi uma constante, enquanto viveram.
Leonor e Henrique fundaram uma das dinastias europeias mais poderosas: os Plantagenetas, que regeram sobre a Inglaterra durante cerca de 300 anos. Além disso, foram pais de dois dos mais famosos monarcas europeus: Ricardo Coração de Leão e João Sem-Terra.
Conhecemos estas personagens, sobretudo, através dos filmes e séries sobre Robin dos Bosques. Essas narrativas nada têm a ver com a verdade histórica. Não há a mínima referência a essa figura, nas vidas de Ricardo e João. Aliás, Robin dos Bosques é uma personagem mítica, nem se sabe se existiu. E, no caso de ter existido, quando viveu.
Henrique e Leonor tiveram oito filhos. Três eram raparigas, uma delas casou com Afonso VIII de Castela. Dos cinco rapazes, um morreu em criança, mais dois ainda jovens. Por isso, à altura da morte do pai, apenas Ricardo e João eram vivos. Dez anos os separavam.
Admira-me que a saga desta família ainda não tenha sido filmada. Nada ficaria a dever à Guerra dos Tronos, com as suas intrigas, rivalidades e guerras constantes. Depois de cerca de quinze anos de casamento, a forte paixão entre Henrique e Leonor foi-se transformando em ódio. Os dois guerrearam-se e instigaram os filhos a tomarem posição, ou contra o pai, ou contra a mãe, conforme os casos. Ricardo era o preferido de Leonor e lutou sempre contra o pai. A situação chegou a tal ponto, que Leonor esteve presa durante dezasseis anos, por ordem do marido. Mas sobreviveu-lhe, apesar de ser dez anos mais velha. Leonor viveu mais de oitenta anos. Assim que o marido morreu, Ricardo Coração de Leão, feito rei, ordenou a libertação da mãe.
Túmulos de Henrique II e Leonor da Aquitânia, na Abadia de Fontevraud*
Ricardo e João odiavam-se, apesar de o mais novo ter ficado a tomar conta do trono inglês, quando o Coração de Leão partiu para as cruzadas (este é o fundo verdadeiro das histórias de Robin dos Bosques). João cobiçava a coroa. E esta acabou mesmo por lhe cair no regaço! Ricardo morreu, com cerca de quarenta anos, atingido por uma flecha. O grande guerreiro, que regressara das cruzadas com uma fama inigualável, acabou por perecer numa luta "menor", uma escaramuça contra um seu vassalo francês.
Túmulo de Ricardo Coração de Leão, na Abadia de Fontevraud*
João nem acreditava na sua sorte. Ricardo não deixou descendentes, apesar de ter sido casado. Terá tido um filho ilegítimo, mas ainda não esclareci esse aspeto, pois ainda não li a saga toda. Aliás, a sua vida sexual é objeto de especulações. Diz-se que se interessava mais por guerra do que por mulheres e, claro, põe-se a hipótese de ter sido homossexual.
João Sem-Terra (assim apelidado por ter sido o mais novo de todos os irmãos, com poucas hipóteses de conseguir herança) ficou conhecido por ter assinado a Magna Charta, considerado assim o "pai" da representação parlamentar. De resto, perdeu todos os territórios franceses pertencentes ao progenitor e quase lhe escapava igualmente a coroa inglesa. Mas foi ele quem deu seguimento à dinastia Plantageneta.
Viajo regularmente de carro entre a Alemanha e Portugal. Na zona de Tours, vejo a placa mencionando a Abadia de Fontevraud e, muitas vezes, penso ser uma pena passar ali tão perto e não a ir visitar. Lá se encontram os túmulos de Leonor da Aquitânia, Henrique II, Ricardo Coração de Leão e Isabel de Angoulême, que foi rainha de Inglaterra, por ter sido casada com João Sem-Terra.
Perante o túmulo de Ricardo Coração de Leão*
Agora, que ando a ler esta incrível saga, não pude deixar de ir. E senti a emoção de finalmente conhecer pessoas que admirava há muito tempo. Foi uma experiência única.
Uma palavra para a ironia de Ricardo e Isabel de Angoulême jazerem lado a lado. Depois de enviuvar do rei João, Isabel já tinha cinco filhos, mas apenas cerca de trinta anos de idade. Regressou à sua terra-natal e casou com o conde de Lusignan, de quem teve mais oito filhos. E acabou por ficar sepultada em Fontevraud, na altura, um dos maiores centros religiosos franceses.
Túmulos de Isabel de Angoulême e Ricardo Coração de Leão, na Abadia de Fontevraud*
O rei que não deixou descendência ficou, para a eternidade, ao lado da cunhada, a esposa do irmão que odiava. O certo é que Isabel de Angoulême foi mãe, avó, bisavó, trisavó, etc. dos reis que regeram sobre a Inglaterra, por mais de dois séculos.
João Sem-Terra está sepultado na catedral inglesa de Worcester, que visitei em 2003.
Túmulo de João Sem-Terra (John Lackland) na Catedral de Worcester*
Nota: há apenas um livro de Sharon Kay Penman traduzido em português: Quando Cristo e os Seus Santos Adormeceram, o primeiro volume desta saga, sobre a guerra civil inglesa, travada entre a mãe de Henrique II, a imperatriz Maude, e o seu primo, o rei Estêvão (Stephen).
Não se verificando hoje nenhuma efeméride especial relacionada com o reinado de D. Dinis, aproveito para relembrar a sua Cantiga de Amigo mais conhecida. Ignoro porque se terá destacado tanto, talvez devido ao ritmo. Estes poemas eram escritos para serem musicados e cantados, o próprio D. Dinis compunha melodias. Infelizmente, quase nada chegou aos nossos dias.
Tendo isto em conta, criei, no meu romance, a seguinte cena (fictícia) à volta destes versos:
Num serão de Março, os cálices de vinho esvaziavam-se facilmente e o rei encarregou os trovadores João Anes Redondo e Pêro Anes Coelho de entoarem a sua nova cantiga. Começava com um lamento dirigido à natureza, uma donzela pedia às flores notícias do amigo que tardava em aparecer, receando que ele lhe houvesse mentido. O refrão consistia precisamente na pergunta: "Ai Deus, e onde está?"
Ai flores, ai flores do verde pino
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que m’ há jurado,
Ai Deus, e u é?
A natureza interpelada punha fim à angústia da donzela, dizendo-lhe que o amigo estava vivo e sano e viria ter com ela dentro do prazo prometido. A simplicidade e o ritmo harmónico da cantiga pôs os convivas a cantar o refrão «Ai Deus, e u é?» em coro.
Vós me perguntades polo voss’ amigo?
e eu bem vos digo que é san’ e vivo.
Ai Deus, e u é?
Vós me perguntades polo voss’ amado?
e eu bem vos digo que é viv’ e sano.
Ai Deus, e u é?
E eu bem vos digo que é san’ e vivo,
e será vosc’ ant’ o prazo saído.
Ai Deus e u é?
E eu bem vos digo que é viv’ e sano,
e será vosc’ ant’ o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
Se o fervor dos aplausos surpreendeu Dinis, maior foi o seu espanto, quando se exigiu a repetição da cantiga. Os versos não custavam a fixar, todos faziam coro com os trovadores, erguendo os seus cálices na altura do refrão:
Ai Deus, e u é?
Gerara-se uma rara descontração e, assim que a cantiga chegou ao fim, foi exigida uma terceira vez! Aquela noite parecia diferente das outras, havia algo de especial no ar morno, convidativo ao deleite.
A 20 de maio de 1277, morreu o único papa português, João XXI, de acidente, em Viterbo.
D. Dinis tinha dezasseis anos e ainda não era rei. Mas conhecia com certeza João XXI, antigo deão da Sé de Lisboa.
Transcrevo uma pequena cena do meu romance, relativa à morte do papa português:
- Mestre Pedro Julião finou-se? - surpreendeu-se Dinis.
O antigo deão da Sé de Lisboa, conhecido no estrangeiro como Pedro Hispano, estudara Artes em Paris e Medicina em Montpellier. Escrevera várias obras sobre Teologia e outros campos do saber e passara temporadas na cúria papal, tornando-se físico do papa Gregório X, a quem sucedera. Ainda não era velho, nem se lhe conhecia enfermidade:
- Mas como pode tal haver sucedido?
- Foi um acidente, em Viterbo - respondeu o mensageiro. - O Santo Padre inspeccionava as obras de uma nova ala que mandara edificar no palácio dos papas, quando uma parte do edifício desabou.
D. Dinis é sobretudo conhecido pelas suas Cantigas de Amor e de Amigo. Mas ele compôs também algumas Cantigas de Escárnio. Aproveito para lembrar uma passagem do meu romance, onde enquadrei um desses poemas:
Serão na corte, por H. Vanez
Assim se viu Dinis rodeado de fidalgos pomposos a disputar-lhe a atenção, tentando impressioná-lo com as suas proezas, sem sequer haver uma sessão musical para o distrair. O Paço episcopal não era o local indicado para fazer a corte às senhoras com cantigas trovadorescas, para já não falar de uma ou outra dança.
Dinis recordou uma sua Cantiga de Escárnio sobre um fidalgo de província, por ele apelidado de Dom Foam, que falava intermitentemente, sem se aperceber do cansaço e do tédio que causava ao seu soberano.
U noutro dia seve Dom Foam, a mi começou gram noj’ a crecer de muitas cousas que lh’ oí dizer. Diss’ el: - «Ir-m’ ei ca já se deitaram»; e dix’ eu: - «Boa ventura hajades porque vos ides e me leixades».
E muit’ enfadado do seu parlar sevi gram peça, se mi valha Deus, e tosquiava estes olhos meus. E quand’ el disse: - «Ir-me quer’ eu deitar» e dix’ eu: - «Bõa ventura hajades porque vos ides e me leixades».
El seve muit’ e diss’ e porfiou, e a mim creceu gram nojo por em, e nom soub’ el se x’ era mal se bem. E quand’ el disse: - «Já m’ eu deitar vou» e dix’ eu: - «Bõa ventura hajades porque vos ides e me leixades».
Nota: apesar de Dom Foam continuadas vezes alegar ir deitar-se, não pára de conversar, indiferente ao alívio, expresso pelo soberano, que a sua partida proporcionaria.
O Rei Lavrador outorgou um título simbólico a um fidalgo, o título de conde, sem estar ligado à sua função original: a de ser governante de um condado. Tratava-se apenas de um título de prestígio.
A 8 de maio de 1298, D. Dinis outorgou a carta de doação da vila de Barcelos «por serviço que me fez dom João Afonso [Telo] e porque o fiz conde».
D. João Afonso Telo era um nobre leonês, senhor do castelo de Albuquerque, mas com ligações familiares a Portugal. Tornou-se grande amigo de D. Dinis, exercendo atividades diplomáticas em nome da Coroa portuguesa. O Rei Lavrador decidiu recompensá-lo, dando-lhe o título de conde de Barcelos, mas de poder muito limitado, já que se confinava à vila de Barcelos. Este modo de proceder estava de acordo com a política de D. Dinis de restringir o poder da nobreza, concentrando-o na Coroa.
Há três dias, mencionei aqui o casamento de D. Afonso IV. Hoje, é a vez do avô, D. Afonso III, cujo segundo consórcio se realizou em 1253, cinquenta e seis anos antes do do neto, que aliás nunca conheceu. É curioso verificar haver três pontos em comum entre os dois enlaces. Também o pai de D. Dinis casou no mês de maio, também no caso dele não se sabe o dia e a sua noiva ostentava os mesmos nome e estatuto: infanta D. Beatriz de Castela. A diferença de idades entre os nubentes era, porém, muito maior, neste caso: a noiva teria apenas onze anos, o noivo ia pelos quarenta.
Este casamento surgiu na sequência de um Tratado de Paz entre Portugal e Castela por causa da questão do Algarve. Mas D. Afonso III foi acusado de bigamia pelo papa Alexandre IV, que, dois anos mais tarde, lançaria o interdito sobre Portugal. Um reino sob interdito estava proibido de celebrar missas e sacramentos (incluindo casamentos e batizados), situação que durou quase dez anos.
A razão para medida tão severa: à altura do seu casamento com D. Beatriz, D. Afonso III era ainda casado com Matilde de Boulogne. O pai de D. Dinis passou a sua juventude na corte francesa, durante a regência de sua tia Branca, antiga infanta de Castela. Em 1239, a tia arranjou-lhe casamento com a viúva Matilde de Boulogne, bastante mais velha do que ele, mas filha única da condessa Ida e herdeira daquele condado.
Passados seis anos, porém, D. Afonso regressou sozinho a Portugal, a fim de tomar conta do reino mal governado por seu irmão D. Sancho II. Oito anos mais tarde, já coroado rei, e no intuito de pôr fim ao conflito com o monarca castelhano por causa do Algarve, casou com Beatriz, ignorando Matilde por completo, de quem aliás vivera separado todo este tempo.
D. Afonso III chegou ao ponto de ignorar uma ordenação papal para se apresentar em Roma, a fim de ser julgado por bigamia. O problema resolveu-se, contudo, por si, pois Matilde morreria inesperadamente. Mas só em junho de 1263, passados cinco anos sobre a morte da malograda condessa, um novo papa, Urbano IV, legitimou o segundo consórcio do monarca, levantando o interdito sobre o reino.
À altura do seu nascimento, a 9 de outubro de 1261, D. Dinis era, no fundo, ilegítimo e este argumento foi usado por seu irmão Afonso, quando, pela terceira vez, se revoltou contra o rei, em 1299, obrigando D. Dinis a montar cerco a Portalegre. D. Afonso alegava ter mais direito ao trono por ter nascido numa data mais próxima da legalização do casamento dos pais (6 de fevereiro de 1263).
D. Afonso III e D. Beatriz tiveram sete filhos:
Infanta D. Branca, nascida em fevereiro de 1259
D. Dinis, nascido a 9 de outubro de 1261
Infante D. Afonso, nascido a 6 de fevereiro de 1263
Infanta D. Sancha, nascida a 2 de fevereiro de 1264 (faleceu com cerca de vinte anos)
Infanta D. Maria, nascida em fevereiro ou março de 1265 (faleceu com pouco mais de um ano)
Infante D. Vicente, nascido a 22 de janeiro de 1268 (falecido ainda criança)
Infante D. Fernando, nascido em 1269, falecendo pouco tempo depois.