- Acaso achais que haja alguém que sofra mais do que eu com o rumo que nossas vidas tomaram? Desejo a paz. Desejo o melhor para a minha família e para a minha terra, as duas cousas que mais amo. E é em nome desses amores, pelo seu bem-estar, que vos peço que intercedais junto do papa, a fim de anular o matrimónio de Fernando Peres de Trava com Sancha Gonçalves.
Ergueu as sobrancelhas em grande espanto:
- Anular o matrimónio de D. Fernando? A que propósito?
- Pensei que o motivo era inquestionável. Carrego o fruto da minha união com o filho do conde de Trava e não desejo continuar a viver em pecado. D. Fernando e eu pretendemos casar. E seria do interesse de todos que a situação se regularizasse.
- Não desejais viver em pecado? Pois deveríeis haver pensado nisso antes de pecar!
- D. Paio Mendes, somos as duas maiores instâncias deste condado. Não ajamos como se fôsseis vós um pároco de aldeia e eu uma lavadeira que se deixou encantar pelas palavras de um mancebo de estrebaria! Está em causa a nossa terra, que herdei de meu pai. Pretendo engrandecê-la e só o poderei fazer se remarmos todos juntos.
- Estais à espera que eu, os bispos e os barões pactuemos com mancebia e incesto? A vingança de Deus cairá sobre vós, D. Teresa. E o castigo será gigantesco!
Engoli em seco, como que prevendo as desgraças que estavam para vir. Recusei-me, porém, a mostrar fraqueza:
- Tal não sucederá, D. Paio, se vós derdes ouvidos a vossa rainha e tudo fizerdes para que ela possa desposar o pai de seu futuro filho.
- Não se pode usar o poder da Santa Igreja a seu bel-prazer, minha senhora, lavando pecados mortais, apagando-os como se não houvessem existido!
- Não me façais rir, arcebispo! Bem sabeis que a Igreja anula matrimónios a pedido de reis e príncipes, a fim de legitimar bastardos, ou repudiar esposas incómodas e estéreis. A vossa Igreja não se escusa a pactuar com os tais pecados que referistes, quando se trata de homens!
- Ensandecestes, D. Teresa? Quereis vós, herdeira da Eva pecadora e tentadora, medir-vos com os excelsos varões deste mundo?
Este diálogo não passa de ficção, mas foi escrito a fim de realçar as dificuldades enfrentadas por D. Teresa apenas por ser mulher. Já sei, vão acusar-me de anacronismo, que a mentalidade daquele tempo era essa, etc. e tal. Acontece, porém, que D. Teresa foi muito maltratada pela História, ao longo dos séculos. Nos últimos vinte anos, tem-se vindo enfim a recuperar a sua imagem, mas enfrentando a resistência de muitos, isso sim, verdadeiro anacronismo.
Desde sempre se convencionou considerar D. Afonso Henriques o sucessor de seu pai, continuando a sua obra, como se os dezasseis anos em que D. Teresa esteve à frente do condado Portucalense não existissem. Ela é considerada um acidente de percurso, uma mulher promíscua, que queria “vender” o condado aos galegos. Valeu-nos ter um filho justiceiro, que pôs tudo em ordem e recuperou o bom nome do pai.
Na verdade, D. Afonso Henriques continuou mais a obra da mãe do que do pai. D. Teresa fez muito mais pela independência de Portugal do que o marido, ao recusar aceitar sua meia-irmã D. Urraca como a única herdeira do pai de ambas. D. Teresa insistiu na divisão da herança: Leão e Castela para a irmã, Galiza e Portucale para ela. E a sua luta deu frutos, colhidos pelo filho que, afinal, não era tão avesso à ideia de juntar Galiza a Portucale, pois, assim que assumiu o poder, andou, durante cinco anos, a tentar conquistar territórios galegos. Se nos guiarmos pelas fontes históricas, em vez de por preconceitos e lendas medievais, constatamos que D. Afonso Henriques colaborou com a sua mãe até ao ano de 1127, ou seja, só um ano antes de S. Mamede ele decidiu fazer-lhe oposição, ao contrário dos barões portucalenses, que começaram a abandonar a corte de D. Teresa já por volta de 1121.
Afonso Henriques é venerado em Portugal (e com razão), mas onde está o nosso reconhecimento pela obra de D. Teresa? Foi, por isso, com muito agrado que vi esse reconhecimento numa pequena vila portuguesa, onde ela é venerada como uma rainha (a própria aliás assinava os documentos da cúria com esse título e foi inclusive assim tratada pelo papa Pascoal II). Eu já sabia que em Ponte de Lima havia uma estátua dela, mas é importante vê-la ao vivo, admirá-la, a fim de assimilarmos melhor essa homenagem.
Adorei a estátua, faz-lhe toda a justiça. D. Teresa segura na mão o foral que concedeu à vila, em 1125, ainda antes de Portugal existir.
Uma homenagem mais do que merecida.