Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

24 de outubro de 2022

A Noite Não É Eterna

 


Este livro é sobre um dos capítulos negros da ditadura em que se transformaram os regimes de ideologia comunista. Lembro-me bem de, a seguir à queda do Muro de Berlim, virem à luz as atrocidades cometidas na Roménia de Ceaușescu, nomeadamente, os orfanatos, onde bebés e crianças vegetavam em condições inenarráveis. Como pode uma sociedade consentir em tal? Como podiam certas pessoas viver de consciência tranquila, tendo conhecimento daquele inferno? Os humanos podem realmente ser muito cruéis e não, o Holocausto, por mais horrível que tenha sido, não é o único exemplo de quão longe pode ir a perfídia.

Na altura, porém, dizia-se esses orfanatos romenos se destinarem “apenas” a crianças com deficiência, ou cujo nascimento era inoportuno. Ana Cristina Silva mostra-nos que havia outras razões para o fazer. Por exemplo: um pai acreditar na ideia propalada pelo governo da criação de um exército do povo, cujos soldados seriam treinados desde crianças. Nessa convicção, entrega o seu filho, de apenas três anos, a um orfanato, convicto de que ele assim receberá do Estado a educação certa. E fá-lo sem informar a mãe.

Ao mesmo tempo que alimenta a ideia fixa de matar o marido, Nadia lutará, primeiro, para encontrar o filho e, depois, para tentar libertá-lo. Ao descrever essa odisseia, a autora põe-nos a par do mundo de corrupção, chantagens e denúncias em que se baseava o regime de Ceaușescu. Uma sociedade podre, desumana, miserável, decadente (e ainda dizia a propaganda comunista que o Ocidente é que era decadente!).

Não querendo revelar demais sobre o enredo, fico-me por aqui, referindo apenas que o romance engloba igualmente a queda do regime comunista e a libertação da Roménia. Um livro escrito com sensibilidade, sob a perspetiva feminina, e que nos ensina muito. Se isto não são boas razões para o ler…

17 de outubro de 2022

Moby Dick

 


Não é novidade que Mobi Dick é uma obra gigantesca em todos os sentidos. No entanto, é a negação de muito do que se considera essencial para um bom romance. Li uma edição alemã (excelente tradução), contendo uma análise (no final) de Daniel Göske, Professor de Teoria da Literatura e de Literatura Norte-Americana na Universidade de Kassel, referindo vários aspetos que eu já havia considerado, durante a leitura. Alguns exemplos: a personagem de Queequeg, importantíssima no início, quase desaparece, assim que embarca no Pequod, junto com Ismael (o narrador); a partir da maneira como essas primeiras páginas estão construídas, somos também levados a pensar estarmos perante um romance de aventuras, mas Melville cedo nos confronta com descrições técnicas infindáveis, mais adequadas a obras de não-ficção; o final abrupto não combina igualmente com as centenas de páginas anteriores a explicarem pormenores. Terá Melville modificado o seu objetivo inicial, à medida que escrevia?

No meio de todo esse mar de letras, frases, parágrafos e capítulos, é, porém, admirável a quantidade de referências bíblicas e literárias, assim como de figuras de estilo e a combinação de várias linguagens específicas, como a dos baleeiros, da navegação, bem como a religiosa, a científica e a lírica. A isto se juntam cenas de antologia sobre a relação dos humanos com a Natureza, dos humanos entre si e aquilo que nos move. A própria sobrevivência? Apenas lucro? O desejo de controlar a Natureza, ao darmos conta da nossa pequenez? Razões de sobra para justificar o mito em que se tornou esta obra, talvez a mais importante da Literatura Norte-americana.

Herman Melville descreve como ninguém a caça à baleia. E conhecia ao pormenor a anatomia destes seres (descrevendo-a em muitas dessas páginas infindáveis). Porém, à luz dos conhecimentos de hoje, notamos ignorância em muitos aspetos. Em meados do século XIX, as técnicas de mergulho eram ainda muito primitivas, exaustivas e perigosas. Resumiam-se, por isso, a raríssimas tentativas, estávamos longe do mergulho “em série”, para não falar da existência de máquinas fotográficas e câmaras de filmagem. Para Melville, a vida abaixo da superfície das águas é um perfeito mistério. Muitas vezes, ele se pergunta para onde mergulham as baleias, o que fazem lá em baixo, em que mundo vivem. E ignorava igualmente o seu sistema fascinante de comunicação através de sons, que se sabe hoje ser complexo e permanecendo, em grande parte, misterioso.

Justiça seja feita ao autor: ele confere majestade e dignidade às baleias, transmitindo-nos a contradição entre a nossa admiração pelos animais e o desejo de os matar. Mas acaba por optar pela explicação mais fácil o que, confesso, me desiludiu: as baleias são animais sanguinários, capazes de afundar uma embarcação num ápice, é necessário aniquilá-las, a fim de que os homens não corram perigo.

Ora, qualquer animal que pese algumas toneladas é perigoso para os humanos. Principalmente, quando vê a sua vida ameaçada por esses mesmos humanos. E, por mais que admire esta obra, dou comigo a perguntar-me em que medida Melville aceitaria uma convivência pacífica estre baleias e humanos.

No seguinte vídeo, rodado através de um drone, na Argentina, é incrível a maneira delicada como a baleia toca no frágil caiaque da formiga humana. Bastava-lhe um movimento descuidado com a sua barbatana para dar cabo do sapiens. Mas não o faz. E nada por debaixo dele sem o derrubar. Denota uma delicadeza e um cálculo impressionantes.

Muito gostaria de saber o que Melville teria a dizer sobre esta cena. Será que a conseguia imaginar?

 

https://pt.euronews.com/2021/09/02/baleias-brincalhonas