Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

27 de novembro de 2020

Epidemias ontem e hoje

 

A Sociedade Medieval Portuguesa.jpg

Durante a peste de Coimbra, em 1477-79, resolveram os do Porto estabelecer um cordão sanitário em torno da sua cidade, que vedava a entrada a todos os que viessem de Coimbra. Tendo-se notado casos de peste numa rua portuense, em 1486, foi resolvido entaipar a dita rua e isolar os respectivos moradores. Outras vezes, em princípio de epidemia levavam-se todos os doentes para lazaretos especiais fora dos muros da cidade. Havendo notícia de peste no estrangeiro, impedia-se a entrada nas fronteiras ou submetiam-se a quarentena passantes e navios.

(…)

Isto sem falar de precauções de carácter geral: abstenção de prazeres sexuais; moderação no comer e no beber; «evitar o banho de cada dia»; fuga a ajuntamentos e contactos com pessoas; uso e abuso da água com vinagre para lavar as mãos, a cara e o interior das casas; permanência dentro da habitação tanto quanto possível, etc.

(…)

Recomendava-se, em qualquer caso, que se bebessem fortes doses de vinagre e líquidos avinagrados.

(pp. 122 a 124)

 

Leríamos este texto de modo diferente, se o tivéssemos feito há um ano. Teríamos compaixão pelas pessoas medievais e dávamos graças a Deus (ou a quem se queira) por vivermos numa época livre de pestes e epidemias. Aliás, este ponto de vista é latente em certas passagens deste capítulo, dedicado à higiene e à saúde, sem pôr em causa a excelência de A. H. de Oliveira Marques, falecido em 2007, o primeiro historiador português a publicar um livro sobre o quotidiano medieval, nas suas várias facetas.

Ao ler o texto hoje, vemos as semelhanças com um tempo que julgávamos morto e enterrado. Nem sequer faltava a recomendação de beber líquidos julgados eficazes, como “fortes doses de vinagre e líquidos avinagrados”. E, se o ingerir de tanto vinagre pudesse provocar outros problemas de saúde, não seria com certeza tão perigoso como a lixívia…

Enfim, anedotas à parte, o certo é que também se recomendavam mezinhas que, muitas vezes, eram fatais. E resta-nos o consolo de viver num tempo, em que se sabe o que são vacinas e se dispor de meios para as obter.

Mas será que as já existentes trarão o efeito desejado?

 

Dados sobre a obra citada: A SOCIEDADE MEDIEVAL PORTUGUESA, A. H. de Oliveira Marques (A Esfera dos Livros, 6ª edição: Setembro de 2010)

14 de novembro de 2020

Siddhartha

 


Não se põe em causa a qualidade literária e a beleza deste livro. Trata-se de um clássico, escrito por um dos autores mais conhecidos no mundo. Quem nunca ouviu falar de Hermann Hesse? E quem não sabe que Hermann Hesse ganhou o Prémio Nobel? Limito-me, por isso, a algumas reflexões que o conteúdo me suscitou.

Hermann Hesse era, sobretudo, um pensador, na incessante procura do sentido da vida e do significado de felicidade. Não encontrando respostas satisfatórias na nossa civilização ocidental, virou-se para a cultura indiana e os valores budistas. Também a sua personagem Siddhartha, um indiano, começa cedo essa procura, juntando-se, na companhia de um amigo, aos seguidores de Buda. Chega a conhecer pessoalmente o próprio mestre e vive, durante sete anos, segundo os seus preceitos.

Siddhartha aprende a dominar o desejo, a dor, a fome e a sede; fica imune a sentimentos e emoções. É esse o sinónimo de felicidade? Não necessitar de nada e não se deixar atingir por nada? Siddharhta acha que não. A resposta não pode estar no ignorar do nosso próprio corpo, em anular aquilo que somos. Por isso, Siddhartha deixa o grupo à volta de Buda, separando-se igualmente do seu grande amigo, e continua a sua busca.

Chegado a uma cidade, dá-se uma viragem inesperada na sua vida. Torna-se o homem de confiança de um comerciante rico, graças à sua inteligência e à sua disciplina. Conhece igualmente o prazer carnal, ao iniciar uma relação com uma concubina, na verdade, uma prostituta de luxo. Esta é, para mim, uma fraqueza desta obra-prima da literatura. Embora Hermann Hesse conceda a Siddhartha capacidade para admirar e respeitar a sua amante, ela mais não é do que uma conhecida fantasia masculina: uma mulher afável e inteligente, que ensina a um homem inexperiente tudo o que há a ensinar sobre sexo, não exigindo qualquer compromisso da parte dele. O texto não é muito claro quanto à possibilidade de ela continuar a servir outros clientes, mas depreende-se que sim, já que Siddhartha não sente qualquer tipo de responsabilidade em relação a ela.

Ao fim de sete anos, porém, Siddhartha sente-se desiludido com a sua nova vida. O zelo que ele põe em tudo quanto faz torna-se exagerado, ao ponto de ele se ir tornando um tiranete, exasperando os clientes e parceiros de negócios do seu patrão. A insatisfação de Siddhartha leva-o a querer mais e mais, chegando à conclusão que também não é o luxo que dá sentido à vida. Resolve então deixar o emprego, a cidade e, por muito que lhe custe, a concubina, que aprendeu a amar. E ela, continuando a corresponder à fantasia masculina, nem lhe revela que está grávida dele.

Siddhartha acaba por encontrar satisfação a trabalhar como barqueiro, transportando pessoas de uma margem para a outra de um rio (o qual se torna na metáfora da vida), observando a Natureza e ouvindo as histórias de quem transporta. Constata não precisar de mais nada para ser feliz. Passado uns anos (e sem me querer alargar muito sobre o enredo), toma conta do filho adolescente, depois da morte da mãe. Porém, habituado à vida luxuosa na cidade, o jovem é incapaz de se adaptar àquela vida simples, o que entristece o pai. Por outro lado, Siddhartha nada faz para se aproximar do próprio filho, acha que o rapaz tem de ver, por ele, as vantagens que o seu tipo de vida traz, em relação à vida citadina. O jovem, amargurado e triste, acaba por regressar à cidade.

Penso que Siddhartha, apesar de toda a sua sabedoria, falha como pai. O rapaz só o conhece quase adolescente (ou seja, o pai é um estranho para ele); vê-se, de repente, a ter de adotar um estilo de vida que não conhece e, para piorar tudo, o pai pouco fala, passa a vida, ou a exercer a sua profissão de barqueiro, ou muito sossegado, a meditar. Recordemos que o filho ainda não é adulto e acabou de perder a mãe, que o criou sozinha. Quando parte, a fim de regressar à cidade, Siddhartha conforma-se: enfim, o rapaz lá fez a sua escolha. Depois de nada ter feito pelo filho, acho esta atitude de um egoísmo atroz, não tendo nada a ver com a condição de pai.

Siddhartha mostra-nos que uma vida sem luxos pode ser (e talvez seja sempre) mais satisfatória. O equilíbrio e a felicidade devem ser encontrados dentro de nós. Por outro lado, tal posição parece incompatível com o assumir de compromissos, com uma vida familiar, que implica assumir responsabilidade por outros que dependem de nós. A meu ver, essa a grande falha de Siddhartha.

8 de novembro de 2020

História viva

 

Museu Casa da Roda Torre de Moncorvo

Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann

 

Antigamente, os bebés abandonados eram denominados de expostos. Existiam casas da roda um pouco por todo o país. Na Lisboa queirosiana, o hospital dos expostos da Santa Casa da Misericórdia era o destino de cerca de trezentos e cinquenta bebés por ano. Estes são vários registos de baptismo dessas crianças. Concentremo-nos no primeiro, o Assento nº 4:

1890-01-08 Carlos da Graça e Santos PT-ADLSB-PRQ-

«No dia oito do mês de Janeiro do ano de mil oitocentos e noventa, pelas duas horas e meia da tarde, entrou para o Hospital dos expostos de Lisboa, uma criança do sexo masculino, nascida em vinte e três de Dezembro do ano próximo findo, trazendo o seguinte: camisa, fralda e envolvedouro de algodão, um cueiro de baetilha branca, um embrião (?) de chita de riscas amarelas e encarnadas com raminhos pretos, touca de malha de lã cor de rosa e branca e um xaile de algodão em xadrez preto e branco. Foi hoje solenemente baptizado com o nome de Carlos pelo Reverendo José António Conceição Vieira, tesoureiro da Igreja da Santa Casa da Misericórdia; sendo padrinho o moço de capela Manuel de Oliveira Nunes. E para constar, lavrei este assento, que assino com o referido padrinho.

Padre Leonardo Avelino Ribeiro

Manuel de Oliveira Nunes»

Na barra do lado direito, foi, mais tarde, acrescentado o seguinte:

«Este exposto casou com Ana de Jesus Coelho, no dia 03 de Novembro de 1909, como consta do ofício do Reverendo prior de Assentiz, de 20 do corrente. Lisboa, 23 de Novembro de 1909. O substituto do Padre ??? Padre Fonseca»

A noiva, Ana de Jesus Coelho, tinha dezanove anos e o exposto, que, no registo de casamento, surge com o nome de Carlos da Graça e Santos, também ainda não completara os vinte. Casaram na freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a terra-natal da noiva. Carlos e Ana tiveram nove filhos. A terceira dessas crianças foi batizada com o nome de Deolinda e haveria de ser a minha avó materna.

É difícil de descrever a comoção sentida, quando finalmente encontrei o registo de batismo do bisavô Carlos. Não fazia ideia de que ele tinha estado na Santa Casa. Na família, sempre se disse que era filho de um padre, mas falava-se na freguesia do Olival, concelho de Ourém, onde a minha avó e, penso, os seus irmãos nasceram. Também se diz que o padre vivia com uma irmã e uma prima, sendo esta a mãe do filho dele, mas as pessoas ainda vivas não sabem dizer nomes, ou outros pormenores. Ou não querem dizer.

Ao encontrar o registo, senti-me muito próxima deste bisavô, que nunca conheci. A descrição das roupinhas faz-me pensar que estava bem tratado. Pergunto-me, porém, como se sabia a data do seu nascimento. Noutros registos, referem-se certidões que os bebés traziam consigo, passadas nos hospitais onde nasciam; outros nada traziam e são batizados, sem se referirem datas. No caso do meu bisavô, porém, há uma data de nascimento, sem se explicar de onde ela vem.

A pesquisa familiar é, para mim, fascinante, embora seja uma actividade que exige muito tempo, muita persistência e ânimo para ultrapassar desilusões de documentos perdidos, ou de perguntas por responder (além do esforço para decifrar estas escritas antigas). Ainda assim, em Portugal, a pesquisa está bastante simplificada. Na página https://tombo.pt/ tem-se gratuitamente acesso a muitos livros paroquiais digitalizados (e continuam a digitalizar-se os que faltam). É um excelente trabalho dos nossos arquivos, que me permite fazer esta pesquisa a 2.500 km do meu país, confortavelmente, em casa.

O meu lado materno é bastante variado, abrange V. N. de Gaia, Mealhada, Torres Novas e possivelmente Lisboa. Infelizmente, nunca vou ficar a saber onde nasceu o meu bisavô Carlos, nem quem eram os seus pais. Já o lado paterno é mais simples, pois quase toda a família é proveniente da freguesia transmontana do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros. Numa certa linha, já cheguei ao século XVII, ao encontrar o registo de um casal que contraiu matrimónio a 14 de abril de 1698, Miguel Moreno e Catarina Alves, meus oitavos avós.

 

1698-04-14 Casamento Miguel Moreno e Catarina Alve

 

Não ando à procura de antepassados nobres, que não os tive. Mas, por algum motivo, fascina-me saber quem eles eram e tento imaginar as suas vidas. Ao mesmo tempo, aprendo bastante sobre o Portugal de antigamente, pois, como diz o Professor Mattoso: «O passado dos homens não foi só a sua vida pública. Foi também o jogo ou a luta de cada dia e aquilo em que eles acreditaram».

Não obstante, também do lado do meu pai vão ficar questões por esclarecer. À parte um trisavô filho de pai incógnito (precisamente, o trisavô Torrão!), tive uma bisavó espanhola, natural da freguesia de Fonfria, concelho de Alcanices. Acontecia bastante famílias espanholas assentarem arraiais em aldeias transmontanas. Contudo, no reino de nuestros hermanos, parece não existir uma página que me permita consultar os livros paroquiais online. Teria de ir ao arquivo de Zamora e passar lá um dia, ou dias, inteiros, a consultar os calhamaços. Isto, claro, se conseguisse ler o castelhano de séculos passados…

Fico com pena de nunca ter conhecido o bisavô Carlos, que foi depositado, ainda tão frágil, no hospital dos expostos. Nem sequer tenho uma fotografia dele. Mas tenho da mulher com quem ele casou, que aliás me lembro de visitar, em Porto de Mós, onde ela faleceu em 1976, tinha eu quase onze anos.

 

Ana Coelho.jpg

Bisavó Ana de Jesus Coelho, mãe da minha avó materna

(que esteve a 13 de outubro de 1917 em Fátima, no meio do povo que lá se reuniu e diz ter assistido ao milagre do sol)