Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de janeiro de 2015

O Mistério da Estrada de Sintra





Eça de Queirós não é de facto apenas o Eça de Os Maias, O Crime do Padre Amaro, ou O Primo Basílio. E, depois de ter lido o Defunto e A Ilustre Casa de Ramires, torno a afirmar: que bom haver Eça por descobrir! Quanto mais dele se lê, mais se constata quão completo ele era, experimentando novos formatos e narrativas. Foi pena ter falecido novo (na idade de cinquenta e quatro), quantas maravilhas literárias teria ainda produzido, se tivesse vivido mais uns vinte anos!

Este projeto, O Mistério da Estrada de Sintra, foi aliás levado a cabo em conjunto com Ramalho Ortigão. De qualquer maneira, a sua marca é bem visível, nomeadamente, na caracterização das personagens. A novidade, aqui, é tratar-se de um romance policial, com um grande mistério a envolver uma morte. Suicídio ou assassínio?

Esta é, portanto, uma nova experiência de leitura em Eça, pois alia a habitual descrição da sociedade e dos costumes ao suspense de um mistério por deslindar. Mais uma vez, há uma mulher adúltera com a marca de Flaubert, ou seja, compreensão para um ato, à época, inaceitável. As adúlteras, em Eça, nunca são mulheres devassas, ou condenáveis.

Para o género policial, porém, tenho um defeito a apontar: uma parte da narrativa demasiado longa, num dos flashbacks que nos põem a par do passado das personagens envolvidas.

Nota: li a versão ebook, em download gratuito, no Projecto Adamastor.



28 de janeiro de 2015

Os Segredos de Jacinta - Excertos (9)



Embrenhou-se na serra, correndo sem parar. Não fugia apenas do mosteiro. Fugia também do turbilhão de sentimentos que devastava o seu peito com a força de um tufão. Fugia, como se o virar das costas aos destroços negasse a sua existência. Mesmo quando já sentia falta de ar e as pernas lhe doíam, continuou a galgar os caminhos íngremes da serra.
Chegada ao moinho, deixou-se cair no chão, a respirar às golfadas.
Não sabia há quanto tempo ali jazia, quando tomou consciência do frio, dos pés gelados. Rastejou até ao canto das mantas, onde se quedou tolhida. Ignorava fome e sede, tudo o que significasse vida, esse albergue de sensações e pensamentos que a aterrorizavam.
Só ao escurecer foi acordando daquele transe, finalmente perfurado pelos espinhos da dor. Tormentos e choros sacudiam-lhe o corpo, alimentando-se do resto de energia que lhe restava. A fraqueza mental e física acabou por mergulhá-la numa vigília, entrecortada por pesadelos, num escuro total, enquanto os lobos uivavam pela serra.


27 de janeiro de 2015

Sonhos

«Espera-se do filho que cumpra todos os sonhos que os seus pais sonharam, mas que nunca realizaram; espera-se que ele se torne um grande homem e um grande herói na vez do pai, ou que ela consiga um príncipe para marido, como retribuição tardia devida à mãe. A mais precária das aspirações narcisistas – a imortalidade do ego, tão gravemente ameaçada pela simples realidade – é assegurada pela escapatória encontrada no filho. O amor paterno, tão comovente e, no entanto, tão infantil, não é mais do que o narcisismo que ressurge nos pais, o qual, ao transformar-se no objecto desse amor, inegavelmente revela a sua verdadeira natureza».

Sigmund Freud, “On the Introduction of Narcissism”

Via Sed Contra


26 de janeiro de 2015

A Citação da Semana (45)

«Educa-se através daquilo que se diz, mais ainda através daquilo que se faz, mas melhor ainda através daquilo que se é».

Santo Inácio de Antióquia


25 de janeiro de 2015

IV PRÉMIO LITERÁRIO ALDÓNIO GOMES - 2015


Com o intuito de estimular a criação literária e a revelação de novos autores, a Universidade de Aveiro, através do seu Departamento de Línguas e Culturas, em parceria com a Reitoria, decidiu instituir um Prémio Literário, que viria a receber o nome de Aldónio Gomes, com o intuito de honrar a memória deste insigne pedagogo e grande estudioso e divulgador da língua portuguesa e das literaturas de língua portuguesa, cujo espólio foi doado a esta Universidade.

A edição dste ano premeia a poesia. Envio de originais até 28 de fevereiro de 2015.

Pode ver aqui o regulamento e uma nota biográfica sobre Aldónio Gomes.




24 de janeiro de 2015

O Nosso Tamanho

Ninguém se deve fazer maior do que aquilo que é. Mas também não há razão nenhuma para que nos façamos mais pequenos do que aquilo que somos, ou até para que nos escondamos.


22 de janeiro de 2015

Incentivar as crianças a ler


Uma coisa deve ficar clara: os pais são o grande modelo, pelos quais os filhos se orientam. Sem o seu incentivo, ou a sua ajuda, os filhos dificilmente adquirem hábitos de leitura!

Segundo um estudo levado a cabo na Alemanha, em 2014, pela "Fundação Ler" (Stiftung Lesen), do Ministério da Educação e da Investigação daquele país, a um terço das crianças não são lidas histórias. E, no entanto, o ler para os filhos não tem só uma função educativa, é igualmente um ponto importantíssimo na consolidação dos laços afetivos. Enquanto o pai ou a mãe está a ler para o/a filho/a, está a reservar tempo para o rebento, cria-se um momento íntimo. Além disso, as histórias podem ser um bom pretexto para abordar temas que ocupam a criança, que aproveita para desbafar sobre aquilo que a preocupa, amedronta, ou, pelo contrário, a põe satisfeita. A paciência com que o pai ou a mãe a ouve e a leva a sério é fundamental no seu crescimento saudável.

Com a ajuda dos livros também se podem tematizar vivências fraturantes, como o aumentar da família com o nascimento de um/a irmã/o, a mudança para outra localidade, a entrada na escola, ou a separação e a consequente sensação de perda.

A Stiftung Lesen aconselha os pais a irem regularmente com os filhos, mesmo pequenos, à biblioteca. Mesmo não se lendo, a simples observação de gravuras pode ser um pretexto para desenvolver a fala das crianças, se os pais as encorajarem a descreverem o que veem, ou até a inventarem uma história a partir da ilustração. Muitas bibliotecas possuem um canto apropriado para pais e filhos.

Um outro conselho desta "Fundação" é continuar a ler às crianças, mesmo depois de estas já terem entrado na escola e conseguirem ler sozinhas, precisamente para continuar a fortalecer os laços afetivos. Além disso, os livros também devem ser sinónimo de divertimento e bem-estar, para não ficarem conotados apenas com escola e estudo.

Na entrada da puberdade (pelos doze anos), muitas crianças, que até então tinham hábitos de leitura, começam a desinteressar-se pelos livros. Outras coisas surgem que as atrai mais, ou que elas consideram mais importantes. Os especialistas aconselham calma aos pais. Discussões agressivas ou críticas demasiado depreciativas são contraproducentes. Encarar as fases de crescimento com normalidade é muito importante e, na verdade, uma criança que antes da puberdade gostasse de ler, normalmente readquire esse gosto pelos catorze ou quinze anos.




21 de janeiro de 2015

Os Segredos de Jacinta - Excertos (8)



Passou a viver num estado permanente de ansiedade, um caos interior que contrastava com a rotina monacal, como se alguém houvesse desestabilizado uma balança, não se sabendo para que lado iria pender, nem tão-pouco em qual dos pratos pousava o discernimento, em qual a insânia. No fundo, era indiferente, conquanto vencesse o lado errado, mesmo que o prazer por ele proporcionado fosse efémero. Passara os últimos seis anos a construir um futuro estável e sólido, que culminaria numa velhice tranquila e reputada. Agora, o seu horizonte limitava-se a alguns dias, toda a sua vida parecia convergir para o sábado seguinte, como se, para além dele, não houvesse devir.


20 de janeiro de 2015

De Pais para Filhos

Toda a gente recebia o baptismo e Jesus também foi baptizado. Estava a orar quando o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma visível, como uma pomba. E uma voz do céu disse: «Tu és o meu Filho querido. Tenho em ti a maior satisfação».

Lucas 3, 21-22

«Tu és o meu Filho querido. Tenho em ti a maior satisfação».
Quantos pais/mães dizem isso aos seus filhos, às suas filhas?
Quem segue o exemplo de Deus?


19 de janeiro de 2015

16 de janeiro de 2015

Somos Dois Em Um



Achei muito interessante a crónica de Gonçalo M. Tavares, na revista Visão nº 1137 (18 a 24 de dezembro de 2014). Interessante e ternurenta, aliás. «Crescer é, pois, entre muitas outras coisas, aprender a cuidar de si», escreve ele, «mais tarde, já somos capazes de decidir (quando já caminhamos ou gatinhamos) se avançamos para um ponto ou para o lado oposto (…) Começamos aí, a ser dois, a deixar de ser um».

Gosto desta ideia de sermos dois, «uma parte que cuida e outra que é cuidada», ou seja, «uma das nossas partes mantém-se exatamente como nasceu». Isto confirma a teoria da criança interior, de que já aqui falei, ligando-a inclusivamente a Saramago. Somos um núcleo (a parte que se mantém como nasceu, a verdadeira essência do nosso ser) e o que aprendemos (a nossa «parte cultural», nas palavras de Gonçalo M. Tavares). E, digo eu, o nosso equilíbrio – a nossa saúde mental e o nosso carácter – depende da sintonia entre estas duas partes. Se formos culturais demais, esmagando ou ignorando a nossa parte bebé/criança, vivemos oprimidos, insatisfeitos, stressados, tendemos a depressões e outras neuroses. Ao contrário, isto é, se a nossa «parte cultural» deixa a criança sem controlo, somos inconstantes, irresponsáveis, desrespeitadores, o que aliás, além de prejudicar os outros, também pode gerar psicoses.

Só gostaria de acrescentar algo! Gonçalo M. Tavares diz que «o cuidar do outro é a base da humanidade». E, embora ele acrescente, entre parênteses, «no nosso caso», ao lermos a sua crónica, ficamos com a impressão de que os humanos são os únicos capazes de transmitir experiência e sabedoria aos descendentes e de construir solidariedade entre si. «Há animais que mal nascem (…) são logo autónomos nas situações mais extremas (…) já caçam e matam». É verdade. Mas também há inúmeros animais que, tal como nós, só sobrevivem porque «está outro ao lado, mais velho, que não cuida apenas de si próprio». Nalguns casos, esse acompanhamento é igualmente longo, dura vários anos, como acontece com os elefantes. Animais desse tipo (mamíferos, mas talvez não todos) também são capazes de interagir, de construir relações sociais complexas e de desenvolver ternura por alguns membros da sua sociedade.

A humanidade é qualidade exclusiva dos humanos, sim, porque é o nome que damos à solidariedade que construímos entre nós. Mas não nos devíamos esquecer de que há muitas outras criaturas de Deus capazes de criarem solidariedade e cumplicidade. Perguntem ao Criador, que Ele confirma!


14 de janeiro de 2015

O Rio que corre na Calçada




Este é um livro de início discreto, mas que encerra em si uma pérola. De repente, deparamos com cenas de grande intensidade e beleza, que nos deixam suspensos, se nos entranham no pensamento e demoram a partir.

Conta a história de um bairro lisboeta, de ambiente familiar como o de uma aldeia, com as suas vantagens e desvantagens: por um lado, o facto de todos se conhecerem e ajudarem, por outro, o controle sobre as vidas de cada um, que, por vezes, deixa pouco espaço para a privacidade. Principalmente para as mulheres:

«Leonor viu-lhe as costas e soube que tinha de pensar depressa. Soube saber o que queria. A solidão cheirava a plástico, tinha o sabor artificial do nada. Mas hoje as estrelas tinham caído. Só não sabia que todas para dentro da sua cabeça onde se chocavam estrelejavam, rompendo em fagulhas que lhe minavam o juízo. Entreabriu os lábios mas o som não saiu. E ele afastava-se. Sabia o que provocaria quando verbalizasse o que pensava. Os homens olhá-la-iam de outro modo, as mulheres chamar-lhe-iam nomes. Mas ela sabia que o seu nome era apenas mulher» (p. 84).

Este romance de João J. A. Madeira é também uma interrogação sobre a vida que levamos, que tantas vezes não é aquela que queremos, mas a que programaram para nós, ou a que nos dá a ilusão de felicidade. Esbarramos constantemente nas pessoas erradas, que nos roubam a essência e a energia. Procuramos escapes, seja no envolvimento em casos amorosos que nos consolam enquanto duram, mas que acabam de maneira abrupta, inglória, seja na escrita de um livro, no fundo, a construção de uma segunda vida:

«Pensei, sem saber porque disso me convenci, ter sido bafejado no nascimento pelo dom de escrever quando, na realidade, a qualidade doada fora a de saber afastar-me de mundos que sentia não serem os meus. Graças à palavra, que nem fui capaz de usar de viva voz nos momentos adequados, refugiei-me isso sim escondidinho com ela num canto, aquecendo-nos e apoiando-nos mutuamente como dois seres abandonados aos quais ninguém mais compreendia» (pp 110/111).

O acordar para a realidade pode ser brutal. E, porém, mesmo depois de tomarmos consciência de que vivemos amarrados e desejamos a libertação, mesmo depois de descobrirmos a pessoa certa, no lugar e nas circunstâncias mais inesperados, tornamos a sucumbir às amarras, seja por amor, por medo, pelas convenções, ou por simples habituação. Rodeamo-nos de silêncios, de incógnitas, de palavras não ditas, de explicações não dadas, de desilusões.

Um romance cheio de vidas e oportunidades desperdiçadas.
Não será essa a nossa sina?