Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de março de 2014

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (12)




Uma terceira e muito importante fonte para a produção de apodos foi o próprio indivíduo seu futuro portador, escalpelizado em todas as suas facetas, quer no seu aspecto físico, quer nas características morais ou intelectuais, na maneira de ser, nos costumes adquiridos, em eventuais peculariedades de qualquer tipo. Ele podia ser observado de todas as maneiras, olhado sob todos os ângulos, com olhares imbuídos de diversíssimas intenções, mas quase sempre mordazes, mesmo hostis. O produto dessas observações era a alcunha. Alcunha que podia apresentar-se de forma aparentemente inócua - Alto, Louro, Claro, Barba - ou até de conotações laudatórias - Amigo, Forte, Verdadeiro, Belo, Bem-falante - mas que assumia muitas vezes um tom mordaz, satírico - Ranhoso, Madraço, Mata Piolhos, Tinhoso, Unhas de Gato - ou até mesmo insultuoso - Pestelença, Maldito, Ravasco, Roussado, Galeado. À distância de alguns séculos é impossível saber que conteúdos teriam os milhares de alcunhas que a documentação trouxe até nós. Mas, conhecida como é a mordacidade quase sem limites do humor medieval e sabido como em todos os tempos as alcunhas se comprazem de forma especial nos vícios, nos defeitos, nos ridículos, é muito possível que quase todas elas, independentemente do conteúdo semântico da palavra ou expressão que deu voz à característica que se quis salientar, se fizessem acompanhar pelos risos trocistas dos seus criadores, talvez de modo tanto mais acerbo quanto mais laudatória fosse a forma utilizada.

Muito comum era ainda a transposição da característica a sublinhar no indivíduo visado, para o animal que supostamente a possuiria em alto grau. E ela podia ser feita pela simples referência ao animal em questão - Lobo, Perdiz, Anho, Cordeiro, ou ainda Coelhinho, Cervinho, Baratão - ou utilizando formas mais elaboradas: Boi Negro, Barbas de Porco, Quadril de Pega, Mãos de Águia, Bicho Feio. Menos comum era a transposição feita para plantas - Cebola, Nabo, Botelho - uma vez que as árvores, bastante frequentes na nossa antroponímia, na medida em que o são igualmente ou ainda mais na sua expressão como nomes geográficos, foi por essa via que a maior parte delas - e dificilmente poderá conhecer-se o seu volume - entrou na onomástica pessoal.

O Nome, Iria Gonçalves (p. 214)


27 de março de 2014

a máquina de fazer espanhóis


A minha estreia nas leituras de Valter Hugo Mãe foi acompanhada de sentimentos variados, à medida que avançava no livro. Passando por cima da dificuldade em distinguir pontos finais, num texto sem maiúsculas, e do discurso direto sem pontuação, o início pareceu-me um cliché: o senhor Silva fica viúvo depois de mais de quarenta anos de casamento, não consegue lidar com a situação e, como se isso não bastasse, os filhos ingratos despejam-no num lar.

Sem faltar ao respeito pelos idosos (aliás, aproximando-me eu própria dos cinquenta, estou cada vez mais perto da terceira idade; e nem tenho filhos para cuidar de mim), confesso que tenho problemas com os julgamentos precipitados que se fazem dos filhos "ingratos". Nunca fiz um estudo exaustivo do assunto (nem para isso tenho meios), mas é minha convicção que, na maior parte das vezes, os filhos agem à semelhança dos pais, ou seja, se não têm pejo em despejar o idoso num qualquer lar e mal se dignam a ir visitá-lo, penso que não teriam sentido muito respeito pela sua pessoa durante a infância. Criar um filho não é só sustentá-lo, vesti-lo e pagar-lhe os estudos. Para isso, podiam pôr-se todas as crianças em instituições.

O senhor Silva, extremamente revoltado, recusa-se a falar com os outros habitantes do lar, com o pessoal que lá trabalha e mesmo com a filha, quando ela o visita. Nas suas cogitações, faz questão de sublinhar que foi um pai totalmente dedicado à família. Mas só temos a sua versão. E eu duvido que um pai que realmente sinta carinho por um filho fale assim dele, por muito revoltado que esteja:

«e assim abri a boca e acrescentei, dizes ao teu irmão que é um porco, e que das poucas coisas que me dariam gozo nesta vida uma era desfazê-lo à paulada até lhe arrancar a cabeça, dava-lhe tantas naquele focinho que lhe havia de arrancar os lábios, para nunca mais ninguém lhe dizer que tem a boca da mãe, porque ele não tem o direito de ficar com rigorosamente nada da mãe. ouviste, elisa. ouviste. dizes ao teu irmão que se mate, mas que nunca se atreva a aparecer-me aqui» (p. 58).

Ai, senhor Silva! Tem a certeza que isso é só teoria? Mesmo tendo em conta que o filho está na Grécia há três anos e não veio ao funeral da mãe, um pai que nunca espancou o filho diria isso? Além disso, sobrecarrega a filha com esse desabafo violento, para já não falar dos netos presentes.

Nestes momentos, a personagem não me parece credível. À medida que fui lendo, porém, e como disse, os sentimentos modificaram-se. Estava à espera de outro cliché: o do lar que não respeita os seus habitantes. Mas não se verificou. Na verdade, tanto o médico, como o restante pessoal, é muito simpático e respeitador e tudo fazem para proporcionar o bem-estar dos idosos. O senhor Silva vai ficando mais afável, criando amigos. E lembra velhos tempos, os da ditadura, em que ajudou um jovem perseguido pela PIDE, mas que acabou por denunciar, com receio do que a policia política pudesse fazer à sua família. Nas suas cogitações, esse episódio atormenta-o, sente remorsos, culpa.

A caracterização da sociedade portuguesa do tempo do Estado Novo está, a meu ver, muito bem conseguida, assim como a amargura de quem se sente perto do fim. O senhor Silva é atormentado por fantasmas, tem pesadelos horríveis. E eu novamente me pergunto de onde virão esses fantasmas, num homem que, segundo ele próprio, tanto estimou e amou a família. Enfim, há arrependimentos:

«e também a raiva que me aquecera contra o meu filho havia de ser em boa parte uma combustão exagerada de gestos que nunca teria. era da infelicidade tão grande e de estar tão magoado, tão perplexo com o que é uma família, afinal. eu fiquei com aquele dia atravessado no peito. cheio de ideias confusas que me punham ainda a proteger as minhas crias, mas só depois de as ter desprezado e atirado para os perigos que, instintivamente, acreditava eu, haveriam de os amadurecer e fazer compreender o que seria certo ou errado no lugar que ocupavam entre mim e a laura» (p. 64).

O amor pela esposa falecida, as saudades, são evidentes ao longo do romance. Mas fica-se com a sensação de que os filhos teriam sido um pouco esquecidos, sacrificados, em nome desse amor.

Ser pai e mãe não é apenas a ostentação de um título. Os idosos são frágeis. Mas as crianças não o são menos.


25 de março de 2014

Inspirações revolucionárias (2)



Custara-lhe ir passar as férias de Natal a casa. A separação de Leonel, ainda que temporária, tomava proporções de tragédia. Claro que nada contou à família, não podia revelar que tinha um namorado que rejeitava o governo do Professor Marcello Caetano, por quem o pai sentia grande admiração. Porém, numa tarde em que assistiam, pela televisão, às mensagens de Natal dos militares no Ultramar, com a mãe em queixumes por o filho estar quase em idade de tropa, ela não evitou proferir: «esta guerra não faz sentido e acabará em breve».
Manuela lançou-lhe os olhos escancarados, de profunda estupefação, como se a filha tivesse dito que, no dia seguinte, uma nave de extraterrestres aterraria no seu quintal.


24 de março de 2014

A Citação da Semana (1)

«Devemos ser orgulhosos do nosso valor e respeitar o dos outros».

Sully Prudhomme (poeta francês, primeiro Prémio Nobel da Literatura)


23 de março de 2014

A Máquina do Tempo 4

A minha amiga Céu, que me faz viajar no tempo, enviou-me mais uma curiosidade, produzida em 1983. Na altura, ela transcreveu um poema meu no seu diário com a seguinte introdução: «Hoje, dia 25 de Janeiro deste ano, revela-se um novo talento dentro do campo de malmequeres». E segue-se o poema humorístico, de que eu já não fazia ideia de que existia:

Onde está mi matador
qual belo tenente floral!
Como abelhudo não há melhor
oh, como me desvia a moral!

El jacaré tambem se vai
qual guapo filosofal.
Oh, Dulcineia como ela cai
nos braços do animal!

El lipo bombardeiro
não ata nem desata o cordel.
Enquanto Paulas sem dinheiro
procura rechear o farnel!

Oh que dia desastroso
em que três sequeosas meninas
num espanto assombroso
gritam como tolinhas!

Nem tenente, nem jacaré, nem lipo,
Paulas então, nem pensar
vão as três até ao pipo
as suas mágoas afogar.

Céu já dança de bêbeda
em saltos flibusteiros.
Isa e Krys estão em soberba
amizade (sem motoqueiros).

Depois, as três, com ressaca
choram lágrimas sem limites
limpam-nas à casaca
e dão com  a cabeça nas estalactites.

Krys 25-1-83

Nota: algumas destas expressões não são inteiramente de minha autoria. A minha habilidade consistiu em adaptá-las ao formato.


21 de março de 2014

Quem não deve...

Quem não deve, não teme,
Quem não dá, não recebe,  
Quem não ouve, não aprende,
Quem não ri, não aquece,
Quem não ama, não vive,
Quem não respeita, não progride,
Quem não acarinha, não colhe.

Quem não arrisca, não petisca,
Quem não procura, não encontra,
Quem não pergunta, não avança,
Quem não sonha, não cria, 
Quem não sorri, não brilha,
Quem não vê, não ilumina,
Quem não ajuda, não alegra,
Quem não rejeita, não liberta.


18 de março de 2014

Inspirações revolucionárias (1)



Levou uma bofetada que lhe pôs a cara à banda. Tentava ainda recuperar o ar, refazer-se do choque, quando o agente repetiu a pergunta. Perante o silêncio dela, saiu nova bofetada e depois outra e mais outra, umas vezes com a palma, outras com as costas da mão. As pancadas sucediam-se, entrecortadas com a pergunta, sempre a mesma pergunta.
Helena deixou de reagir, deixou até de sentir revolta e medo. Os pides não faziam ideia do quanto ela aguentava, de como ela aprendera a anular-se, a desistir de reagir, de pensar, de sentir. De como aprendera a desligar-se do próprio corpo e do mundo. Apanhar bofetadas sem bem saber porquê era-lhe familiar. Crescera assim.


16 de março de 2014

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (11)


Tirando algumas torres de castelos, não havia construções prisionais de raiz. Sendo a respectiva função muito desvalorizada, não se lhe afectavam boas casas; as cadeias eram geralmente pardieiros, muitas vezes um anexo da pobre casa do carcereiro. Não tinham quaisquer condições de conforto, de salubridade, não separavam os detidos: criminosos empedernidos misturavam-se com devedores, com crianças apanhadas a fazer asneiras, com alguma mulher de língua mais destravada, com inocentes indevidamente acusados. Comiam e dormiam todos juntos. Só no reinado de D. Manuel, e aproveitando os excedentes de um imposto extraordinário, a Coroa manda investir na construção de espaços prisionais minimamente dignos, desde logo com separação por sexos. O que mais atormentava os presos? É difícil escolher: o frio ou o calor; a sujidade (sem latrinas nem facilidades higiénicas de qualquer tipo, era um espectáculo habitual, por exemplo no Porto, ver sair da prisão uma fila de gente acorrentada, de todas as idades e dos dois sexos, conduzida pelo carcereiro, para se aliviar no espaço público fronteiro antes de regressar ao cárcere); a fome; a falta de auxílio na doença; a promiscuidade; sobretudo o confinamento físico, terrível para gente habituada ao ar livre, e de enlouquecer quando os detidos estavam presos às paredes com cadeias que lhes corriam pelos pés ou por uma argola à volta do pescoço. Mais do que tudo, a falta de luz. Muitos morreram na cadeia, e os que lá passaram demasiado tempo para a sua capacidade de resistência física, psíquica e material podem ter regressado à liberdade apenas para constatarem que já não conseguiam manter o seu lugar na comunidade a que antes pertenciam.

Marginalidade e Marginais, Luís Miguel Duarte (pp. 194/195)


14 de março de 2014

Somos todos brasileiros (ou: da importância do Português europeu)

Abro a página da t-online (assim uma espécie de Sapo alemão). Clico numa notícia que me interessa e surge-me publicidade na barra lateral. Nada de estranho. Era da Babbel, que oferece cursos de línguas online, com apps e essas coisas. Também nada de especial. Sob o título Welche Sprache möchtest du lernen? (que língua queres aprender?), surgem algumas sugestões: Inglês, Espanhol, Francês, Italiano, Português, Sueco, Turco.

E depois, perguntam vocês. Bem, junto com cada língua, vem a bandeira nacional do país. No Inglês, a Union Jack, pois claro, nada de americanices, que a língua procede da Grã-Bretanha. Mas, segundo a Babbel, de onde procede o Português? Do Brasil!!!


Era a bandeira que lá tinham. A nossa, com a esfera armilar e as cinco quinas, nem vê-la! Vão à Babbel e confirmem!



Nota: não dou o link da notícia que li, onde vinha essa publicidade, porque esta muda a cada clique.


12 de março de 2014

O maior perigo para as crianças são os próprios pais

Há coisas de que não se fala, são assuntos tabu, porque não gostamos de admitir a existência daquilo que não pode ser. Costuma dizer-se que as crianças nunca foram tão amadas como hoje. Na minha opinião, esta frase é perigosa, porque baseada numa falsa ideia do que é amar. Proporcionar às crianças bens materiais, vivências e ocupações em excesso, na verdade, não é amar. Este verbo tem mais a ver com carinho, atenção, paciência, tempo. E o que mais falta, hoje em dia, é paciência e tempo! Além disso, sempre houve, há e haverá pessoas cheias de agressividade, frustrações e infelicidade, pessoas que precisam de descarregar o seu sofrimento em alguém, por mais que aquilo a que chamamos civilização avance. As vítimas são sempre os mais fracos, aqueles que não se podem defender.

O médico alemão Michael Tsokos não mais conseguiu calar. É médico legista e a sua tarefa não consiste apenas em fazer autópsias, também examinar e documentar (em fotografias, para apresentação em tribunal) vítimas de agressões. Quando começou a sua atividade profissional, há vinte anos, ficou chocado quando teve de proceder à autópsia de um cadáver maltratado de criança. Pensou: enfim, um caso isolado. Na semana seguinte, porém, surgiu-lhe o próximo. Entretanto, já perdeu a conta a quantas crianças examinou, mortas e vivas, vítimas das agressões mais horrendas.

Ele próprio pai de quatro filhos sentiu necessidade de alertar a sociedade para este problema. Junto com uma colega de trabalho, Saskia Guddat, escreveu o livro Deutschland misshandelt seine Kinder (a Alemanha maltrata as suas crianças). O título tem sido muito criticado, porque, na opinião de muitos, não corresponde à verdade. Felizmente, os maus tratos continuam a ser a exceção. Mas Tsokos e Guddat constatam que são muitos mais do que aquilo que se pensa. Na Alemanha, morrem, todas as semanas, três crianças vítimas de maus tratos (considere-se que a Alemanha tem 80 milhões de habitantes e eu gostaria de conhecer uma estatística portuguesa deste tipo). Os dois médicos acham que as autoridades públicas não fazem o suficiente para reconhecer e prevenir casos destes. Aliás, ninguém faz, é um assunto que se ignora, olha-se para o lado. E Tsokos e Guddat dizem que ignorar é consentir. Daí o título chocante. Porque qualquer caso destes é sempre um caso a mais.

Apesar de ser pai, Michael Tsokos é perentório a afirmar que o maior perigo para as crianças são os próprios pais. As agressões inenarráveis, desde enfiar um miúdo numa banheira de água a ferver, a pontapear outro no rosto, até os olhos lhe saírem das órbitas, no verdadeiro sentido da expressão, são cometidos pelos próprios pais, ou padrastos/madrastas. A esmagadora maioria das crianças é abusada (também sexualmente) pelos progenitores! Michael Tsokos diz que mesmo os pediatras estão pouco sensibilizados para o problema. Quando encontram algo de estranho numa criança, por exemplo, uma nódoa negra, e interrogam os pais, estes fartam-se de mentir. Pais que agridem e abusam dos filhos são exímios em mentir. E, segundo Tsokos, os médicos, professores e outros profissionais que lidam com crianças preferem acreditar nas suas patranhas a enfrentarem a cruel realidade.

Tsokos e Guddat chamam também a atenção para outro tipo de maus tratos: os psicológicos, baseados em berros constantes, humilhações, ou castigos, como fechar as crianças na cave ou enviá-las com fome para a cama. Estes tipos de maus tratos são mais exercidos por pais com um alto nível académico. Como diz Michael Tsokos: os "cultos" optam mais por meios que não deixam marcas físicas.

Esta não é uma realidade apenas alemã. Nos Estados Unidos , há cerca de 800 000 casos de maus tratos e abusos por ano (os que vêm à luz). Seria interessante saber o que os médicos legistas portugueses têm a dizer sobre este assunto.


10 de março de 2014

Elogio das igrejas vazias

O texto é de Andreas Hüser, colaborador da KirchenZeitung. A tradução é minha (do alemão original):

Em que pensamos, ao ouvir a expressão «igrejas vazias»? Que cada vez menos pessoas vão à missa. «Igrejas vazias» é sinónimo de decadência.  Não poderiam estar as igrejas sempre cheias, como os estádios de futebol, os centros comerciais, as estações, os restaurantes de fast-food?

Felizmente existem igrejas vazias! Felizmente existem esses edifícios, no meio da cidade, que não são lojas, apartamentos, câmaras, repartições públicas. São igrejas.
As igrejas têm características especiais. As portas estão abertas. Não há campainhas, porteiros, controlos. Qualquer um pode entrar.  Em que outro sítio é assim?

Posso ficar o tempo que quiser. Não tenho de fazer nada. Na igreja, não há negócios para tratar, nem necessidade de fazer conversa. Posso ajoelhar-me, ou não, posso apenas estar lá. Em que outro sítio é assim?

Na igreja, há silêncio, o barulho da rua fica lá fora. Se alguém fala, fá-lo baixinho (espera-se). Só em algumas igrejas se ouve, pelos altifalantes, um órgão  a tocar baixo. É pena pelo sossego, pois, em que outro sítio é assim?

Na igreja, ninguém me incomoda. A probabilidade de que alguém nos dirija a palavra, nos atropele, empurre, ou que algo inesperado nos assuste, é ínfima. Não preciso de me justificar, se me rio, se choro, ou se simplesmente não faço nada. Em que outro sítio é assim?

A casa de Deus é também a minha casa. O dono desta casa não tem o hábito humano de se fechar nela. Quis morar entre as pessoas, convidá-las e ser convidado por elas. Ele está lá, mas numa presença silenciosa.

Quantos de nós já procuraram o sossego de uma igreja vazia para refletir, tomar decisões, sofrer, agradecer, ou apenas procurar a proximidade de Deus?

É de uma destas pessoas que fala a história contada por um padre parisiense. Havia um homem que ficava sentado no seu lugar, muito tempo depois de a missa ter acabado. Quedava-se tão compenetrado, que não dava para perceber se rezava ou sonhava. Um dia, o padre esperou que ele se levantasse e dirigiu-se-lhe, queria saber o que ali fazia. A resposta: «Limito-me a estar. Estou aqui e Deus vê-me. É essa a minha oração».


8 de março de 2014

A Arte Está em Todo o Lado

Nós não nos damos conta de como a arte nos trespassa de todo o lado. Anotar isso aos que vaticinam a morte da arte. Isto ao nível mais corriqueiro. Dispor os móveis numa sala é fazer arte. Ou olhar uma paisagem, pôr uma flor na lapela, ou num vaso. Escolher uma gravata, uns sapatos. Provar um fato. Pentear-se. Fazer a barba ou apará-la quando comprida. Todas as coisas de cerimónia têm que ver com a arte. E o corte das unhas.
Todo o jogo. Toda a verdade que releva da emoção. Às vezes mesmo a escolha do papel higiénico. Mas mesmo a desordem. Bergson, creio, dizia que se tudo fosse desordenado, nós acabaríamos por ler aí uma ordem. E não é o que fazemos ao inventarmos as constelações? Admitir a morte da arte é admitir a morte do homem, que impõe essa arte a tudo o que vê. Mas tenho de ir à casa de banho. A ver se invento arte mesmo aí. (Mas quando disse «casa de banho» e não «retrete», já a inventei.)

Vergílio Ferreira em Contra-Corrente 3

Via Clube de Leitores


5 de março de 2014

A Vista de Castle Rock


Alice Munro, a escritora nobelizada em 2013, confirma um pressuposto meu (e ver um pressuposto nosso confirmado por um vencedor do Nobel é muito gratificante, talvez por isso, ela me cativou tanto): qualquer vida é digna de ser contada, depende da maneira como se conta.

Romancear as tragédias da Humanidade, como o Holocausto, as guerras, as ditaduras, etc. é muito importante (contra o esquecimento) e dá livros espetaculares. Mas não menos importante é trazer para a luz os escombros do dia a dia: vitórias e derrotas, ilusões e desilusões, surpresas e rotinas, conversas e silêncios, esperanças e medos, etc. Uma vida, por vezes, cheia de crueldades de que não damos conta, porque cada um é dono de sua casa, entre marido e mulher não se mete a colher e coisa e tal... Os ódios que se criam, as almas que se torturam.

O que pode levar, por exemplo, uma jovem adolescente a confessar que tem vontade de matar o pai? Foi isso que fez uma colega de liceu da autora. Morando com familiares na cidade, a fim de melhor frequentar as aulas, aliciou a colega (a autora) para irem espiar o pai, na quinta da família, com a desculpa de que queria ver se ele tratava bem do irmão mais novo. O rapaz, de doze anos, era o único de quatro ou cinco irmãos que ainda se encontrava com os pais. E  dizia-se que o pai era dado a violências.

Chegadas ao seu destino e escondidas atrás de umas árvores, puseram-se a observar os acontecimentos. Não viram nada digno de nota, o pai chamou o filho para juntarem as vacas que andavam a pastar e as levarem ao curral, tarefa que fizeram, na maior das normalidades. Mas, de repente, a amiga disse: «se eu tivesse aqui uma arma, podia matá-lo, sem que ninguém me visse». E, pela sua expressão, a autora ficou a saber que ela falava a sério. E ficou a saber que a outra só a tinha levado até ali para lhe dizer aquilo. Porque tinha necessidade de dizer a alguém que desejava matar o pai.

São momentos destes que, na minha opinião, fazem um grande livro. Perguntamo-nos o que pode gerar tal ódio. Lembrando-se dos rumores de que o homem seria violento, a autora dá seguimento às nossas dúvidas e, quando já se haviam afastado da casa, pergunta à amiga: «Ele alguma vez te bateu?» A outra desata a rir: «Estás a brincar? Da última vez que lá estive, tentou desfazer-me o crânio com uma pá». Mais à frente, nova pergunta: «Odeia-lo?» E a resposta: «Claro que o odeio. Se me viessem dizer que ele se estava a afogar no rio, ia até lá e punha-me a festejar na margem». E tudo isto se passa num cenário idílico, tipo "Uma Casa na Pradaria", com famílias como a de Laura Ingalls.

O livro inicia-se com a história dos antepassados de Alice Munro, que, da Escócia, emigraram para o Canadá, na primeira metade do século XIX. Daí o título: Castle Rock era um local de onde observavam o oceano e sonhavam com o continente americano. A forma de vida, naquele tempo, e as expectativas dos emigrantes, assim como a descrição da viagem, são bem explanados pela autora. Mas o que mais me surpreendeu foram as motivações que levavam as pessoas a deixarem o seu lar. Na verdade, Alice Munro diz-nos que nenhum deles sabia bem porque o fazia. Não se tratava de miseráveis, tinham terras. A vida era dura, sem dúvida, mas continuou-o a ser, no Canadá. Não piorou, mas também não se pode dizer que tenha melhorado. Alice Munro mostra assim que, muitas vezes, fazemos coisas por acharmos que as devemos fazer, não nos perguntamos se vale a pena, ou se realmente o desejamos.

Da história dos antepassados, a autora passa para a sua própria vida - daí a capa da edição portuguesa, penso eu. E não resisto a transcrever um passo, depois de Alice Munro nos contar que o pai dela, um homem modesto, que passou a sua vida a fazer trabalhos com pouco valor social, como trabalhar numa fundição, ou num aviário, começou a escrever, com mais de sessenta anos de idade. Começou com memórias, das quais se desenvolveram contos, que chegaram a ser publicados num jornal local. Sobre isto, diz-nos a autora:

«Ele disse-me que a escrita o surpreendera. Surpreendeu-o ser capaz de tal e de que o fizesse tão feliz. Era como se o seu futuro estivesse na escrita».

Infelizmente, morreu pouco depois. E mais uma vez constatamos que uma alma de escritor pode ficar escondida durante toda uma vida, em alguém a quem não se dá valor, ao contrário da crença de que só quem publica livros e ganha prémios é um escritor digno desse nome.

O livro está organizado em contos, ou talvez seja melhor dizer em capítulos estanques, que se podem ler independentes uns dos outros. A linguagem é simples, nada tem de poético. Mas é muitas vezes crua. Alice Munro descreve-nos sentimentos como o da moça do exemplo, como nos podia estar a contar o que comeu ao jantar. Porque coisas dessas acontecem em famílias que denominamos de normais, têm origem em casa de "boa gente". E não são tão raras como pensamos...

Foi isso que me cativou. É esta a minha literatura!

Nota: li a versão alemã, com o título Wozu wollen Sie das Wissen (Fischer Verlag, reedição 2013)


3 de março de 2014

Animais com memória

Muitos de nós entram quase em pânico quando se diz que os humanos não serão os únicos seres com memória que transmitem aos seus descendentes. Acham que admitir certas qualidades a outros animais é fragilizar os humanos. Na verdade, nós somos frágeis, muito frágeis, todos os dias o constatamos, perante calamidades naturais que não controlamos, nem nunca controlaremos. Em certos aspetos, somos mais frágeis do que os outros animais (pelo menos, uma parte deles), que conseguem prever e/ou sobreviver a catástrofes em relação às quais somos impotentes.

Na minha opinião, os animais possuem igualmente memória, um património mental, que transmitem aos seus sucessores. Se assim não fosse, não poderiam ensinar às suas crias como se caça, como se devem comportar em determinada situação, ou quais as relações sociais que imperam num grupo. Um cão criado por humanos é incapaz de sobreviver na Natureza por não o ter aprendido (não bastam os genes e é isto que não cabe na cabeça de muitas pessoas que abandonam animais). Mas adiante: se os elefantes não tivessem uma  memória e não a transmitissem aos vindouros, como explicar os célebres "cemitérios de elefantes"?

Estas explicações, porém, não chegam para muitos de nós. Insistem nos genes, alegando que o ser humano é o único animal criativo. Um documentário transmitido pela estação televisiva fanco-alemã ARTE, no passado 21 de Fevereiro, com o título Et le singe inventa la culture, veio pôr em dúvida este pressuposto. Segundo o primatólogo Christoph Boesch, do Instituito Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, os chimpanzés são capazes de adaptar os seus conhecimentos a novos desafios e de os transmitir aos seus descendentes.


As suas teses são apoiadas por Klaus Zuberbühler, da Universidade escocesa St. Andrews, e Thibaud Gruber, da Universidade suíça de Neuchâtel, que fizeram pesquisas recentes no Uganda e constataram que grupos de chimpanzés, vivendo em regiões diferentes, utilizam técnicas diferentes para atingirem os mesmos fins. Ou seja, trata-se de um comportamento cultural, não genético. No Parque Nacional Kibale, servem-se de pauzinhos, que, por vezes, aguçam na ponta, para apanhar certas formigas nos seus buracos. Usaram o mesmo método para tirar o mel de um pequeno buraco num tronco de madeira, numa experiência preparada por Thibaud Gruber. Mas na Budongo Forest Reserve, a 180 km para nordeste, na mesma experiência, os chimpanzés usaram um método com que costumam apanhar água e que consiste numas folhas que, depois de mastigadas, funcionam como esponjas. Adaptaram esse seu conhecimento para agarrar o mel, não usando a suposta informação genética dos outros.

Também se sabe que, na Costa do Marfim, um certo grupo de chimpanzés usa pedras para quebrar nozes, enquanto outro grupo, vivendo num local diferente, usa pedaços de madeira parecidos com martelos.

No Parque Nacional Loango, no Gabão, Christoph Boesch fez observações ainda mais intrigantes. Os chimpanzés aperfeiçoaram uma técnica, passo a passo, apoiando-se nos conhecimentos que iam adquirindo. Para chegar ao mel de colmeias construídas nas árvores, utilizam não um, mas dois paus: um mais grosso, com que abrem a entrada da colmeia, fechada com cera, e um outro mais pequeno para tirar o mel. Também há chimpanzés que utilizam vários paus de formas diferentes, para chegarem a vários sítios onde esteja mel. Um desses paus até é mastigado numa ponta, ficando com o aspeto de um pincel.

Há quem conteste estas conclusões, como o americano Michael Tomasello, também do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, que, apesar das observações do colega Christoph Boesch, insiste em dizer que os chimpanzés não possuem a chamada cultura cumulativa, ou seja, a capacidade de aprender algo com a geração anterior e, a partir daí, desenvolvê-la.

No documentário do ARTE, também foi entrevistada Jane Goodall, que surgiu belíssima, nos seus 79 anos, uma beleza simples e serena. Claro que ela concorda com a existência de cultura e memória nos primatas. Diz ela que, quando começou as suas investigações com gorilas, nos anos 1960, a Humanidade estava convencida de que só so humanos eram capazes de usar e criar ferramentas. Hoje, sabe-se que não é assim. Mas quando ela o afirmou, pela primeira vez, provando-o com as suas pesquisas, logo houve quem não se rendeu às evidências e a contestasse. Na sua opinião, por mais que se descubra sobre os animais, haverá sempre quem diga: «sim, mas...», tanto é o nosso receio de encarar a nossa própria fragilidade, de sairmos do nosso pedestal de reis do planeta.

Nota: pode ver-se aqui o documentário em língua francesa, (link também em cima). E aqui em alemão, título: Das Geheimenis der Affen.


1 de março de 2014

História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (10)



Para responder à questão que formulei - até que ponto certos castigos podiam atirar uma pessoa bem inserida em redes familiares e sociais para a vagabundagem, a exclusão e a criminalidade - temos de levar em conta dois factores: a dimensão infamante da pena, a suprema vergonha, a humilhação pública em comunidades que só na nossa imaginação nostálgica eram harmoniosas e idílicas e que podiam ser extremamente cruéis levaria a que muitos dos que passaram por isso nunca mais quisessem voltar; e não era fácil recomeçar a vida noutro lado, sem apoios. Além disso, em economias familiares precárias, com baixa produtividade e escassa poupança, a falta de um elemento - pai, mãe, filho - em idade de trabalhar podia significar pura e simplesmente a ruína, das terras ou do negócio.

(...)

Como experiência humana, a prisão podia ser terrível. Mas aqui também seria um equívoco generalizar. Não creio que tivessem existido no Portugal medievo os sinistros calabouços nas profundezas de castelos como a imaginação romântica os pintou. Embora os do mosteiro de Alcobaça descritos por Iria Gonçalves não pareçam andar longe disso: o mosteiro ia buscar os presos às cadeias dos concelhos e lançava-os «por cordas no fundo das suas torres ou nos aljubes onde, segundo a expressão empregada, não há claridade de sol nem de lua, não os deixando ver as famílias e conservando-os assim detidos, em más prisões, por muito tempo, até perderem "a vista dos olhos"».

Na esmagadora maioria dos casos, as prisões não seriam tão severas.

Marginalidade e marginais, Luís Miguel Duarte (pp. 193/194)