Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

26 de abril de 2022

A Amiga Genial

 


E lá comecei a ler Elena Ferrante. Já por várias vezes tinha pensado em fazê-lo, mas ia adiando, travada por opiniões menos favoráveis. Estas são, no entanto, mais raras do que as boas. E, sendo a saga centrada em personagens femininas, aguça-me o apetite, pois estas surgem (ainda hoje) menos do que as masculinas. Quando dei com A Amiga Genial por 10 €, no dia em que fui à Feira do Livro do Porto, no ano passado, pensei: "o acaso encarregou-se da decisão".

As primeiras páginas deixaram-me cética, à volta de duas meninas da escola primária, o seu dia-a-dia, as suas brincadeiras, pensamentos, maldades, invejas, etc. Mas a máxima “primeiro estranha-se, depois entranha-se” serve como uma luva a este livro. Não é tudo tão inocente como parece. A vida das crianças é o reflexo da vida dos adultos: lutas, frustrações, invejas, amizades, ódios, injustiças, loucuras, desleixos. A escrita de Elena Ferrante é a vida real. Nem mais, nem menos! Ela deixa-nos desprotegidos no meio de um bairro pobre de Nápoles, em fins dos anos 1950. Tal como as suas personagens, vemo-nos perdidos, num primeiro momento, obrigados a procurar o nosso caminho.

A amizade entre as duas meninas está longe de ser perfeita. Lenú e Lila não juram pactos de fidelidade até à morte, não vivem aventuras empolgantes, não se defendem uma à outra sem reservas. Pelo contrário. Há inveja e concorrência entre elas, são muito diferentes uma da outra: Lila é dominante, sempre à espera que os outros lhe façam as vontades e nunca perde a pose, mesmo que caia no ridículo; já Lenú tem pavor do ridículo, é do género submisso, deixa-se guiar e manipular pela amiga, invejando-a, ao mesmo tempo. Entre as duas desenvolve-se uma estranha dinâmica que as torna inseparáveis. Têm uma paixão comum: adoram ler. E têm um sonho comum: tornarem-se escritoras.

Lenú e Lila adaptam-se perfeitamente à sociedade machista e patriarcal que as rodeia. E, junto com elas, nós vamos encontrando o caminho: afinal, faz sentido acompanhá-las desde tenra idade, assim vamos assistindo à sua educação, que desvaloriza as mulheres. Elas crescem com a sensação de estarem a ser aldrabadas, sem saberem de onde essa sensação lhes vem. São orientadas para se subjugarem aos homens (e rapazes), lhes fazerem as vontades, se sacrificarem por eles. Ao mesmo tempo, não sabem qual a origem da estranha amargura que cresce dentro delas. Tomam-na por defeito delas próprias. Lila, uma aluna fora de série, não reclama, quando a tiram da escola para que ajude na sapataria do pai, sujeitando-se às ordens do irmão. Também não reclama, quando o irmão e o pai se apoderam das suas ideias para criarem novos modelos de sapatos, sem sequer mencionarem o seu nome, quando os modelos são apresentados.

A saída de Lila da escola vem perturbar a hierarquia estabelecida entre as duas. Depois de muita insistência da professora, Lenú é autorizada pelos pais a continuar os estudos. A submissa, que tanto admira a coragem e a altivez da amiga e deseja ser como ela, vê-se, de repente, na posição superior, objeto de inveja. E não sabe lidar com a situação. A amizade continua, cheia de ambiguidades, de palavras por dizer, de atitudes inexplicáveis, de revoltas (aparentemente) vindas do nada. Até que a ordem parece repor-se, quando Lila, aos dezasseis anos, casa com um rapaz, aos seus olhos, rico. As bodas vão ser de arromba, ela vai ter direito a lua-de-mel, vai viver para um apartamento num bairro mais conceituado, tornar-se patroa de duas charcutarias, o pai e o irmão serão contemplados com uma sapataria no centro de Nápoles. E Lenú olha de novo de baixo para cima para a amiga, apesar de esta só ter a instrução primária e ela estar já nos últimos anos do liceu. Mas continua pobre. Tem de trabalhar nas férias e entregar tudo o que ganha à mãe, a fim de merecer a graça de continuar os estudos. Só pode fazer os trabalhos de casa, quando todos dormem, pois, mal sai do liceu, desdobra-se em tarefas caseiras, que incluem a assistência aos irmãos mais novos. Leva uma vida esgotante, com poucas horas de sono, entra, por vezes, em depressão.

Fiquei completamente prisioneira do mundo de Lenú e Lila, prisioneira da Nápoles dos anos 50/60, onde domina a pobreza e a frustração, onde tudo se faz para subir na vida, incluindo aceitar humilhações dos considerados poderosos, onde os próprios rapazes e homens, os privilegiados, lutam para fazer justiça à imagem que se cria deles, tentam cumprir aquilo que se exige deles, tornando-se violentos e conhecendo um só deus: o dinheiro.

Fiquei com uma certeza: quero ler mais, muito mais.

 

Tradução de Margarida Periquito 

19 de abril de 2022

D. Leonor de Portugal, Rainha da Dinamarca

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À semelhança de sua tia D. Berengária, a infanta D. Leonor de Portugal foi igualmente rainha da Dinamarca, embora o marido nunca tenha reinado por conta própria. Valdemar the Young foi uma espécie de “rei júnior”, ao lado do pai. Era o filho mais velho, fruto do primeiro casamento de Valdemar II com Dagmar da Boémia. Dois anos depois de enviuvar, Valdemar II casou com D. Berengária de Portugal e teve mais três filhos e uma filha.

Em 1215, Valdemar II reuniu-se com os seus magnatas, que juraram fidelidade ao seu filho homónimo e, passado pouco tempo, o jovem Valdemar foi eleito rei, ao lado de seu pai, um estatuto estranho, mas que parece ter sido usado noutras monarquias europeias. Seria a fim de assegurar o seu futuro como rei da Dinamarca, já que o pai casara pela segunda vez? O certo é que, três anos mais tarde (já tinha nascido, pelo menos, um dos seus meios-irmãos), em nova cerimónia, que reuniu quinze bispos e três duques, o jovem Valdemar foi untado com os santos óleos e coroado “co-rei”.

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D. Leonor de Portugal, rainha da Dinamarca

António de Holanda, Public domain, via Wikimedia Commons

Interessante é verificar que Valdemar II escolheu, para sua nora, uma sobrinha da sua segunda esposa: a infanta D. Leonor, única filha de D. Afonso II. É possível que o consórcio tenha sido negociado em Paris. A infanta D. Leonor talvez tenha ido com o irmão D. Afonso para a corte francesa, onde este se faria conde de Bolonha, graças à tia materna Branca, rainha de França. D. Afonso acabaria por se tornar rei de Portugal, como Afonso III, por suposta incapacidade do irmão Sancho II, ficando conhecido por o Bolonhês.

D. Leonor casou com Valdemar the Young no dia de São João Baptista de 1229. No entanto, o matrimónio pareceu amaldiçoado quase desde o seu início: no ano seguinte, houve um eclipse solar, logo seguido de uma epidemia pestilenta, o que causou grande impacto numa sociedade supersticiosa, como o era a da época medieval. E, passado mais um ano, a maldição parecia confirmar-se: D. Leonor morreu de parto, em Maio de 1231, e o bebé também não sobreviveu. Como se tudo isto não bastasse, o jovem Valdemar foi ferido por uma flecha, numa caçada, acabando por sucumbir ao ferimento, com apenas vinte e dois anos, escassos seis meses depois da morte da esposa. Na historiografia, ele é, por vezes, referido como Valdemar III (assim está escrito no seu epitáfio, em latim), mas nunca chegou a reinar sozinho, pois morreu antes do pai. E a designação Valdemar III é também usada para designar um outro rei que viveu no século XIV (1314–1364).

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Igreja de São Bento, Ringsted, Dinamarca By Mariusz Paździora - Own work, CC BY-SA 3.0

Assim como a tia Berengária, D. Leonor de Portugal ficou sepultada como rainha da Dinamarca, na Sankt Bendts Kirke (Igreja de São Bento), em Ringsted, perto de Copenhaga. Porém, segundo Anabela Natário, ela está identificada como tendo sido «filha do rei de Espanha» (p. 204)! Devia o governo português solicitar a correção deste epitáfio? Ou será por estar escrito em latim, referindo Hispânia, em vez de Espanha? Há uma grande diferença entre os dois termos, mas não me parece que os dinamarqueses a conheçam.

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Placa com a lista de reis e rainhas sepultados na Igreja de São Bento, em Ringsted, Dinamarca. Berengária surge como Beengjerd, falecida 1220; Leonor surge como Eleonora, falecida 1231.

Imagem CC BY-SA 3.0


17 de abril de 2022

O Clube do Crime das Quintas-Feiras

 


Richard Osman foi um dos autores-surpresa das Ilhas Britânicas, nos últimos tempos, alcançando grande sucesso com este seu livro de estreia. É, de facto, uma leitura que prende e, no fundo, não é um policial normal. As personagens principais são idosos que vivem em Coopers Chase, um complexo residencial de luxo para a terceira idade. Sem ser uma obra literária, este livro tem o charme de nos mostrar que gente velha está longe (ou devia estar) de se deixar arrumar para o lado.

Elisabeth, uma das residentes de Coopers Chase, trabalhou para os Serviços Secretos e, a fim de continuar a exercitar a sua massa cinzenta, funda, com outros três residentes, o Clube do Crime das Quintas-Feiras. Com conhecimentos na Polícia, eles conseguem apoderar-se de arquivos com casos nunca resolvidos e tentam em conjunto resolvê-los, examinando os processos. Caso o consigam, de nada adianta, os casos estão prescritos. Para eles, no entanto, esta é uma boa maneira de se entreterem.

Joyce, uma outra residente, antiga enfermeira, acaba por se juntar ao clube, contribuindo com a sua experiência profissional para dar a sua opinião sobre ferimentos, ou a maneira como a vítima foi assassinada. E, pouco tempo depois, dá-se um crime! A vítima pertencia à empresa construtora de Coopers Chase, que tem aliás planos para expandir o complexo residencial. E estes planos estão longe de agradar a toda a gente.

Claro que o Clube do Crime das Quintas-Feiras não desperdiça esta oportunidade de se intrometer. Para resolver o caso, porém, necessita de estar a par da investigação policial, o que naturalmente não lhes é permitido. Esta mistura de investigação de um crime, a par das tentativas dos velhotes de acederem a informações que lhes estão vedadas, assim como a sua surpreendente acutilância, resulta num livro interessante e cheio de suspense. Não se procure, no entanto, uma grande performance literária.

11 de abril de 2022

D. Berengária de Portugal, Rainha da Dinamarca

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Na época medieval, houve uma infanta portuguesa que se tornou rainha da Dinamarca, estando sepultada junto de outros reis e rainhas medievais, na Sankt Bendts Kirke (Igreja de São Bento), em Ringsted, perto de Copenhaga. Porém, segundo Anabela Natário, autora do livro representado na imagem, o seu epitáfio identifica-a apenas como irmã do conde da Flandres.

Esta identificação, apesar de incompleta, não é falsa. Tudo começou com o avô desta infanta portuguesa, D. Afonso Henriques, ao casar a sua filha Teresa com Filipe da Alsácia, conde da Flandres. O consórcio durou apenas seis anos e o casal não teve filhos (do primeiro casamento de Filipe com Elisabeth de Vermandois também não houve descendência). O conde da Flandres embarcou em várias cruzadas e acabou por sucumbir, em setembro de 1190, a uma epidemia, durante o cerco a Akkon.

A infanta D. Teresa, ou Matilde, como ficou conhecida por aquelas paragens, por identificação com sua mãe (Mafalda, ou Matilde de Saboia), viu-se assim confrontada com a falta de sucessão e socorreu-se da numerosa prole de seu irmão, D. Sancho I. Nomeou o sobrinho, infante D. Fernando de Portugal, seu sucessor e negociou o casamento dele com Joana de Hainaut. O casal teve, porém, apenas uma filha, que morreu jovem. E, sendo a História da Europa Central intrincada e o condado da Flandres muito disputado, o filho de D. Sancho I viu-se envolvido em várias lutas, acabando prisioneiro do rei de França por cerca de doze anos e perdendo o seu valioso condado.

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Fernando de Portugal, conde da Flandres, prisioneiro de Filipe Augusto, rei de França

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Bem, tudo isto para dizer que, ao viajar para a Flandres, ao encontro da sua noiva, o infante D. Fernando levou consigo a irmã D. Berengária. E Valdemar II da Dinamarca, ao enviuvar, escolheu esta infanta portuguesa para um segundo consórcio, união igualmente negociada pela tia Teresa. A condessa regente da Flandres pretenderia um aliado contra o rei de França, que exigia a devolução de territórios flamengos conquistados outrora. Há algo, porém, a acrescentar: Valdemar II teria tido, ainda como príncipe herdeiro, contacto com a família real portuguesa. Segundo Anabela Natário, «muitos autores escreveram que D. Sancho I e Valdemar se teriam conhecido em 1189 e lutado lado a lado, ainda Berengária não era nascida. [Valdemar] teria entrado no rio Tejo, à frente de uma armada de cruzados cristãos vinda da Dinamarca e da Frísia (…), que antes de rumar à Terra Santa, ajudaria o rei português a conquistar o Algarve aos muçulmanos» (p.169).

Valdemar II e D. Berengária casaram em Maio de 1214, na semana de Pentecostes. Mas a infanta portuguesa, feita rainha da Dinamarca, morreria em 1221, com pouco mais de vinte anos, depois de já ter dado quatro filhos à luz. Não se sabe as razões da sua morte, mas poderia ter sido de parto, como tantas vezes acontecia.

Berengária era realmente irmã do conde da Flandres. Porém, se é esta a única informação que consta do seu epitáfio, o povo dinamarquês, em geral, não conhece a verdadeira origem desta sua rainha.

Existe, no entanto, outro caso de uma infanta portuguesa assinalada, ainda segundo Anabela Natário, como «filha do rei de Espanha», no seu epitáfio dinamarquês! Mas disso falarei noutra ocasião.

 

Nota de rodapé: a infanta D. Teresa, filha de D. Afonso Henriques, é-nos apresentada, neste livro de Anabela Natário, como Teresa Henriques (pp.84 e seguintes), designação com a qual não posso concordar. Filhos e filhas adquiriam o apelido do pai, a partir do nome próprio deste, com uma terminação derivada do genitivo latino (por isso, Henriques filho de Henrique; Sanches filha de Sancho; Gonçalves filho de Gonçalo, etc.). Este apelido não transitava para netos e netas. Sendo Teresa filha de Afonso (e não obedecendo o nome de Afonso à regra do genitivo latino), a designação correta para esta infanta portuguesa seria Teresa Afonso.

2 de abril de 2022

Easy nach Assisi

 


“Com calma/leveza até Assis” (sim, os alemães também usam anglicismos), um título que soa como um slogan publicitário, próprio de um manual de instruções sobre peregrinação. Na verdade, é também um título carregado de ironia, pois a viagem que relata esteve longe de ser easy o tempo todo. Assim como não é leve o motivo que a provocou. 

O autor, Christian Busemann, escreve roteiros para, e produz programas de, televisão, uma vida stressada, sendo ele ainda casado e pai de dois filhos. Quando um ataque de pânico lhe surge do nada (terror, suores e taquicardia), ele, sem fazer ideia do motivo, resolve consultar uma psicóloga. E relembra um pequeno/grande pormenor não resolvido na sua vida: o pai morreu de ataque cardíaco, quando ele tinha quatro anos, e ninguém lhe disse nada! À pergunta do pequeno porque o seu querido pai, de repente, desapareceu, dizem-lhe que viajou. Mas, quando insiste, querendo saber quando volta, a mãe e restantes adultos ficam atrapalhados e remetem-se ao silêncio.

O miúdo aprende que não deve falar no assunto, passa a ser tabu, na vida da família, inclusive entre ele e o irmão mais velho. A família é frequentadora da missa, aos domingos, e o pequeno Christian passa aquele verão a pedir a Deus, todas as semanas, o regresso do pai. Até que, desiludido, acaba por desistir. E por esquecer. Quando, porém, já frequenta a escola e acontece as outras crianças lhe perguntarem pelo pai, ele não sabe responder. E sente vergonha por isso. Algures, durante a juventude, fica a saber a verdade. Mas o assunto mantém-se proibido, apesar de Christian ter muita curiosidade sobre o pai.

Faz-se adulto, casa, forma família e esquece de vez o assunto. Até àquele dia, em que se vê desesperado, aterrorizado, sem saber porquê. Nas conversas com a psicóloga, lembra-se de algo que ouviu contar sobre o pai e que o intrigou: ainda frequentador do liceu, o pai teve uma ligação a Assis, a cidade de São Francisco, onde passou vários verões! E Christian Busemann, a necessitar de pôr a sua vida em ordem, toma uma decisão: tira três semanas de férias para percorrer a pé o “caminho de São Francisco”, entre Florença e Assis. Sozinho e sem saber italiano.

Com humor, ironia, mas também com momentos dramáticos, tanto no seu interior, como perante dificuldades que lhe surgem, Christian Busemann conta-nos a sua caminhada de 180 km, ao encontro do pai e de si próprio. Momentos há em que duvida que consiga chegar a Assis. E, se conseguir, sentirá lá a presença do pai? Que fazia ele lá, todos os anos, nas férias? Haverá ainda lá gente que se lembra dele, gente que lhe possa contar algo sobre ele?

Sem pretensões em ser uma obra literária, este livro é muito emotivo, por vezes, comovente, e sempre agradável de ler. Além do drama pessoal do autor, dá conselhos práticos a quem esteja interessado em peregrinar, seja sobre a preparação da viagem, a bagagem, ou como actuar em situações inesperadas, como uma trovoada, de repente, no meio do nada, ou como arranjar um local para dormir, à pressa, num país estranho.