Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de setembro de 2012

Quando a liberdade é ofensiva



Foi detido o autor do vídeo considerado ofensivo pelos seguidores do Islão, não pelo conteúdo do filme, mas pelo facto de o indivíduo ter violado a sua liberdade condicional, pois estava impedido de aceder à internet.

Mais uma vez, caiu o Carmo e a Trindade, perante a sensibilidade excessiva dos muçulmanos, uns fanáticos, que não entendem sequer a liberdade de expressão. Ora, é muito difícil entender aquilo que não se conhece. Parecemos esquecer que a maior parte dos países islâmicos vive sob ditaduras brutais, onde, por um lado, impera a censura e, por outro, tudo o que seja manifestação contra o ocidente e os EUA é empolado. E é aqui que corremos o risco de tomar o todo pela parte. Todos sabemos o que aconteceu quando os jovens iranianos quiseram fazer uma revolução (ou a nossa memória é assim tão curta)? É claro que os muçulmanos que são a favor da liberdade de expressão, que, quiçá, até aceitem este tipo de humor e que condenam as atitudes dos extremistas, se calam muito bem caladinhos. Senão levam balázio (no mínimo). Os extremistas, que assaltam embaixadas, matam pessoas, queimam bandeiras e se manifestam histéricos são apoiados pelos ditadores e muitos dos seus líderes religiosos, pois dá-lhes um jeitão para a sua política de intimidação dos EUA e do ocidente em geral.

Não nos façamos de anjinhos! Todos nós sabemos que há casos em que se justificará limitar a liberdade de expressão. Muitos de nós são contra a publicação de, por exemplo, vídeos a exultar o nazismo, não hesitando em dizer que qualquer elogio ao regime hitleriano deve ser proibido. Pode falar-se de censura, em casos destes? E como reagiriam muitos de nós se, a partir do Irão, fosse publicado um filme, exibindo cenas pornográficas entre Cristo e Maria Madalena? Ou, até, cenas homossexuais entre Cristo e os Apóstolos? Não corríamos o risco de sermos “sensíveis demais”? Pondo a hipótese de que os europeus, embora indignados, reagissem cheios de civismo, não haveria protestos mais ou menos violentos em certos países, onde o Catolicismo é mais exacerbado (como na América do Sul, ou nos próprios EUA)?

E sejamos coerentes! Se eu estou na posse de material que sei, de antemão, que pode ser extremamente ofensivo para certas pessoas, que pode causar tumultos, dos quais resultarão mortos e feridos, só o publico se não tiver consciência nenhuma! É preciso saber medir o grau de provocação e esse senhor, aliás, natural do Egito, mas a residir nos EUA, sabia perfeitamente que tinha uma “bomba” entre mãos. Censuramos a violência dos muçulmanos que se revoltaram (e com razão), mas ninguém se lembrou de censurar o ato de um louco. Esse não, coitadinho, só fez uso da sua liberdade de expressão! E vem-se a saber que já teve, várias vezes, problemas com a Justiça!

Nota: será difícil, senão mesmo impossível, algures, no mundo islâmico, ser produzido um filme ofensivo em relação a Cristo. Jesus Cristo figura, no Alcorão, entre os (salvo erro) vinte e cinco profetas reconhecidos pelo Islão. Não li o Alcorão completo, apenas partes, e posso afirmar que Jesus Cristo é referido com grande respeito e admiração, embora se rejeite a ideia de que Ele seja filho de Deus. Mas é, sem dúvida, para os muçulmanos, um profeta, pois esteve em contacto direto com Deus.

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27 de setembro de 2012

Naquele Tempo (8)


«A nobreza participou, evidentemente, na guerra externa durante os séculos XI a XIII. Mas seria grave ilusão atribuir-lhe os principais méritos da conquista do território, como tentavam fazer crer muitos nobres já no fim do século XIII e acreditou também a historiografia recente. Na verdade, depois da participação directa de exércitos de condes e magnates na ocupação do vale do Douro no século XI, o papel activo coube entre 1064 e 1147, ou seja, entre a conquista de Coimbra e a de Lisboa, a nobres de categoria média ou inferior das zonas de Viseu, Lamego e Coimbra, por vezes, sob o comando de condes galegos, como os Travas, e aos cavaleiros-vilãos dos concelhos. Coube, mais tarde, entre 1147 e 1217, aos exércitos de Afonso Henriques e de seu filho Sancho, às ordens militares e a certos bandos de marginais, como o comandado por Geraldo Sem Pavor, o Cid português. Coube, enfim, predominantemente às ordens militares entre 1217 e 1249, a data da conquista definitiva do Algarve. Os membros da alta nobreza que participaram no exército régio foram apenas os altos dignitários da corte, entre eles o alferes. É de supor que esta participação foi pouco mais do que honorífica. A intervenção efectiva deve-se sobretudo a cavaleiros de segunda e terceira categoria, que militavam ao lado de cavaleiros-vilãos (...) Daí o sentido predominantemente profissional da categoria do «cavaleiro» até ao princípio do século XIII (e mesmo depois), o carácter tardio da identificação da nobreza com a cavalaria, a imprecisão terminológica do vocábulo e alguma resistência social ao ideal da cavalaria».

Página 293, A nobreza medieval portuguesa (séculos X a XIV)


25 de setembro de 2012

O Sentido do Fim


E se, por um acaso, entrássemos em contacto com o nosso passado para descobrirmos que julgáramos mal certas pessoas e certos acontecimentos? Talvez sentíssemos remorsos. Por outro lado, é legítimo que nos culpemos por algo que não causámos?

Um imprevisto põe o reformado Tony Webster em contacto com uma namorada dos seus tempos de liceu, uma moça por quem ganhara rancor, pois achava-a egoista, detestava a família dela e nunca lhe perdoou ela ter começado a namorar com um dos seus melhores amigos, depois de o deixar. Para cúmulo, o amigo suicidou-se alguns meses depois de iniciar o namoro. Tony Webster, que se havia afastado dos dois e nunca chegou a saber a razão para tal, viveu convencido de que a moça seria a culpada de todas estas desgraças.

Aos poucos, vai descobrindo a verdade sobre ela, a sua família e o amigo que se suicidou. Não é fácil, porque a ex-namorada, quarenta anos mais tarde, continua evasiva, não lhe revelando a verdade, mas mantendo-se ressabiada por ele não entender o drama da sua vida. Confesso que me irritou a sua insistência na pergunta: "Não percebes nada, pois não? Nunca percebeste".

Somos obrigados a adivinhar as mágoas e os problemas dos outros? É certo que Tony Webster constata que os julgara mal. A opinião que formara sobre todas aquelas pessoas era errada. E fica cheio de remorsos. Mas o seu único "pecado" foi o juízo errado, ele próprio em nada contribuiu para a tragédia. E eu não acho que seja uma boa estratégia de vida sentirmo-nos culpados por algo que não fizemos.

Não obstante, este foi o livro que mais gostei de ler nos últimos tempos. Julian Barnes conseguiu "agarrar-me", manter-me suspensa, sentindo aquela satisfação ansiosa sempre que, finalmente, tornava a pegar no romance. Que mais se pode exigir a um autor?



22 de setembro de 2012

25 de Abril - Documento



Descobri este livro em casa dos meus pais, em Junho passado. De resto, só é adquirível em antiquários ou nalgum leilão online. Foi escrito logo a seguir à revolução. A 1ª edição data de 5 de Maio de 1974. A 2ª edição, revista e aumentada (a que li), de 16 de Maio, saiu depois de ter sido anunciada a constituição do I Governo Provisório. Foi coordenado pelos jornalistas Afonso Praça, Albertino Antunes, António Amorim, Cesário Borga e Fernando Cascais.

Apesar de, à altura da revolução, eu ainda não ter completado os 9 anos, é incrível como este documento me avivou a memória. Lembro-me de muito mais do que imaginava e foi muito interessante, às vezes, até emocionante, ver, de repente, imagens a passarem-me diante dos olhos, vivências a tornarem-se atuais, como se não existissem quase quatro décadas a separá-las de mim.

Sensibilizou-me alguma ingenuidade. Tendemos a limitar o júbilo da revolução à liberdade adquirida, mas havia, igualmente, uma crença muito grande num país melhor, mais justo, em que ninguém passasse necessidades, nem fosse obrigado a emigrar, um aspeto que, atualmente, se torna muito significativo.

Há passagens que são verdadeiras pérolas. Transcrevo duas (para não me alongar):

«[Mário Soares] afirmou que, no esquema do socialismo democrático, ninguém se poderia considerar mais à esquerda do que o Partido Socialista, pelo que a chamada Esquerda Socialista também teria nele o seu lugar, de modo a fazer dele um partido forte, capaz de equilibrar forças com o Partido Comunista (…) Em resumo, considerou que existem três grandes forças com expressão política – os centristas, os socialistas e os comunistas».

Nota: centrista era, por exemplo, o PPD. Naquela altura, ainda não se falava em partidos de direita, conotada com o fascismo.

«O grupo constituído, entre outros, por Diogo Freitas do Amaral e Alberto Xavier, de que falámos no número anterior, continua em intensa actividade, de colaboração com Veiga Simão. Parece terem preparado em conjunto um “Programa de Governo” de 15 extensas páginas. Se é embrião de partido ou não, continua sem se saber, até porque eles preferem manter-nos confusos».

Ou seja, o nascimento do CDS ao vivo.

Uma autêntica viagem no tempo...

21 de setembro de 2012

"Slumtuga Millionaire"

Ainda há pouco tempo, falava eu aqui do papel do concurso Quem quer ser Milionário? no filme de Danny Boyle e eis que um português ganha 32.000 euros na versão alemã Wer wird Millionär?

Na emissão de 18 de Setembro, na RTL, Manuel Soares do Nascimento (que não vem de nenhum slum, o título deste post é uma brincadeira), de 22 anos, podia até ter ganho 64.000 euros, pois sabia a resposta da pergunta respetiva, mas decidiu não arriscar.


Desde o início, o estudante de Direito em Bona, português, mas nascido na Alemanha, esteve muito nervoso e inseguro. Gastou os seus Jokers em perguntas fáceis e eu pensei que não ia longe. Mas recompôs-se um pouco, arriscou mais e chegou aos 32.000 euros. A resposta que não se atreveu a dar era, no fundo, fácil:

Qual dos quatro realizadores, lançou, desde 1982, todos os anos, pelo menos um filme, para o mercado?
A - Steven Spielberg
B - Woody Allen
C - James cameron
D - Peter Jackson

É claro que a resposta era Woody Allen, que faz um filme enquanto o diabo esfrega um olho.

Falou-se sobre futebol e, naturalmente, o CR7 veio à baila. No fim, o locutor alemão quis saber como se diz "ich bin sehr traurig" em português. E Manuel Soares do Nascimento esclareceu-o: "estou muito triste". O que não era o caso dele, que se declarou determinado a guardar algum do dinheiro para ir ao próximo Mundial de Futebol, no Brasil.

19 de setembro de 2012

Afinal, de quem é a culpa?

Depois de tudo o que tenho lido na blogosfera e nas notícias sobre o governo, o primeiro-ministro, a coligação, a TSU, a ira dos portugueses e todas as peripécias políticas lusas, a que se junta agora o facto de que mais de metade dos deputados também trabalha para o privado (e sabe-se lá o que ainda estará para vir) apetece-me fazer minhas as palavras da Helena Araújo:

«Há que deixar a Angela Merkel em paz. Isto não está para bodes expiatórios - outro sofá do nosso descontentamento. Este é o momento de identificar os verdadeiros responsáveis da miséria e exigir-lhes responsabilidades».

Nada como estar de fora, para ter uma ideia mais objetiva da situação.

E, se os portugueses (no qual me incluo, que sou portuguesa) não estão em condições de gerir o país que têm, são bem capazes de precisar de quem os ponha na ordem!

17 de setembro de 2012

Originalidade


Não me é fácil voltar a este livro para dizer algo de que evitei falar na opinião já dada. Depois de ter publicado três livros, o meu sucesso (se é que se pode falar disso) não chega aos calcanhares do alcançado por João Ricardo Pedro, com um único. E logo o de estreia. Daí a acusarem-me de inveja vai um passo muito pequeno.

No entanto, e apesar de continuar a achar que este autor é um exímio contador de episódios da vida, há coisas que não nos deixam em paz, enquanto não as deitamos cá para fora. Um bom escritor não só escreve bem, como é original. E, neste caso, penso que a originalidade de certos episódios deixa um pouco a desejar.

Comecemos com um dos aspetos mais famosos e admirados de O Teu Rosto será o Último: o pormenor de um quadro de Bruegel que mostra uma mulher apoiada em muletas. João Ricardo Pedro foi elogiado pela simbologia desse momento e por pôr tanta gente (inclusive alguma que nunca se interessou por pintura) à procura do quadro, a fim de confirmar o pormenor. Ora, é algo que já aconteceu, várias vezes, no mundo literário (e, até, naquele considerado menos literário). Não pôs Dan Brown meio mundo a examinar a Última Ceia, de Da Vinci? Além disso, o nobelizado Orhan Pamuk, em O Romancista Ingénuo e o Sentimental, conta o seguinte:

"Lembremos a expressão de Proust «Mon volume est un tableau» («O meu livro é um quadro» ou «O meu romance é uma pintura»), referindo-se à famosa obra À la recherche du temps perdu, a que dedicou toda a sua vida. No final de À Procura do Tempo Perdido, uma das personagens, um escritor muito conhecido chamado Bergotte, está de cama, doente e vê num jornal que um crítico tinha escrito acerca de uma pequena superfície de um muro pintada de amarelo por Vermeer no seu quadro Vista de Delft. O crítico dizia que o pormenor era tão maravilhosamente pintado que poderia ser comparado a uma obra-prima da pintura chinesa. Bergotte levanta-se da cama para ir ao museu ver com outros olhos o quadro de Vermeer, que estava convencido conhecer muito bem".

Diga-se, em abono de João Ricardo Pedro que, se tentou copiar um pouco Proust, escolheu, pelo menos, um bom mestre.

Reporto-me, em seguida, a um estranho crime acontecido em O Teu Rosto será o Último, citando o próprio romance:

"Contavam eles que o Índio, encostado a uma pilha de grades de cerveja, estava completamente nu e que o seu pénis, depois de cortado, tinha sido enfiado na própria boca".

Onde é que eu já ouvi isto? Não há um português a ser julgado por assassínio, em Nova Iorque...?

E, last but not the least, começo por transcrever parte de uma cena do romance premiado pela Leya:

"Para que, do altifalante, se ouvisse algum som, o órgão precisava de uma pilha de nove volts, mas pilhas de nove volts era coisa que não existia à venda na pequena aldeia com nome de mamífero.
Estranhamente, Duarte parecia não se importar com essa suposta contrariedade. Tratou de arranjar um assento apropriado, arregaçou as mangas do pulôver, baixou o rosto e, sobre as teclas mudas, começou a desenhar inesperados acordes e arpejos. Os dedos, silenciosos como as patas de uma aranha, movimentavam-se ora em lânguidos adágios, ora em rápidas semifusas, conforme as instruções inscritas na partitura que só Duarte parecia vislumbrar.
(...)
Mas, na família do doutor Augusto Mendes, ninguém possuía habilitações musicais suficientes para encontrar uma correspondência entre os gestos de Duarte e os sons que se ouviriam, caso o órgão estivesse a funcionar em toda a sua plenitude."

Ao ler estas linhas, não pude deixar de me lembrar de uma das cenas mais bonitas do cinema, contida no filme sublime O Pianista, de Roman Polanski, vencedor de três Óscares. O pianista judeu polaco, interpretado por Adrien Brody, escondido dos nazis num apartamento, tem de se esforçar por viver no mais completo silêncio. Mas nesse apartamento há um piano e uma das ocupações que lhe tornam aquela "prisão" mais suportável é mover os dedos pelas teclas, «silenciosos como as patas de uma aranha», deleitando-se com a música só audível nos seus pensamentos.
Uma cena que, a ser usada, também ficará bem no filme que Luís Filipe Rocha há de realizar, baseado em O Teu Rosto será o Último. Só é pena ser copiada.


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15 de setembro de 2012

Viver à pressa


A maior parte de nós vive na ânsia de colecionar experiências, umas a seguir às outras, quanto mais exclusivas, melhor. Chegamos a sacrificar os nossos gostos pessoais, em nome dessa política. O importante é viver algo diferente, todos os dias. Temos medo de nos aborrecermos. Ou de estarmos sozinhos.

No fundo, não vivemos, porque não damos utilidade àquilo que experimentamos. Sem coisas novas, caímos no vazio. E não nos passa pela cabeça pensarmos em nós próprios, no que está bem e no que está mal, no que nos agrada e no que não nos agrada. Prescindimos do prazer de recordar e esmiuçar as vivências agradáveis e desprezamos a utilidade de aprendermos com as desagradáveis.

As experiências, boas e más, só nos são úteis se tivermos ocasião de as analisar e trabalhar. Mas sentimo-nos sem valor. Convencemo-nos de que ninguém está interessado em ocupar-se dos nossos pensamentos, das nossas ideias, preferências e experiências. Ninguém (julgamos), nem sequer nós próprios. Porém, se nos limitarmos a reunir experiências, abafamos o nosso poder criativo, desperdiçando todo um potencial.

Todos nós temos algo que contar. Qualquer vida é única e contém aspetos insólitos, interessantes e originais. É preciso ter coragem de ir à procura deles. E aquilo que pretendemos esquecer, que nos forçamos a ignorar, é o mais digno de ser gritado ao mundo.


13 de setembro de 2012

Slumdog Millionaire


"O horror... O horror", são as últimas palavras do coronel Walter Kurtz, intrepretado por Marlon Brando, no filme Apocalypse Now. Lembrei-me delas em várias cenas de Slumdog Millionaire, que, em português, tem o título Quem quer ser Bilionário?. O horror parece ser o quotidiano das crianças que vivem nas favelas de Mumbai.

São indescritíveis as provações por que Jamal e o seu irmão mais velho Salim passam, principalmente, depois da morte da mãe, na sequência de uma luta de bandos. Viver numa enorme lixeira a céu aberto é a mais inofensiva, se pensarmos que os dois caiem nas mãos de um gangster que põe crianças a pedir esmolas por ele, chegando a cegar algumas delas (arrancando-lhes os olhos - vá lá, anestesia-as antes) para que provoquem mais piedade nos passantes.


Jamal e Salim conseguem fugir, mas escusado será dizer que se entregam a uma vida criminosa, para sobreviverem. O mais novo, no entanto, permanece puro no seu coração, ao contrário de Salim, que acaba em assassino. Além disso, Jamal vive obcecado com a memória de Latika, uma menina que conheceu enquanto estava no poder do gangster e que perdeu de vista. Com dezoito anos, resolve participar no concurso Quem quer ser milionário, apenas porque sabe que Latika costuma ver esse programa.

O inesperado acontece: o jovem oriundo dos slums, que nunca frequentou a escola, avança até à pergunta final. As respostas são-lhe dadas pela experiência de vida (é assim que a história vai sendo contada, em flashback). Acaba, porém, por despoletar a desconfiança do locutor e é interrogado pela polícia sobre o seu verdadeiro fito em participar no concurso. Também querem descobrir onde arranjou toda aquela sabedoria. A polícia indiana vale-se de métodos de tortura, nos seus interrogatórios, entre eles, dos choques elétricos, que não deixam marcas, para que, nas palavras de um dos polícias, "não tenhamos problemas com esses gajos da Amnistia Internacional".

Enfim, o filme dá uma imagem bem horrível de certas facetas da sociedade indiana, bem longe da transmitida nos musicais de "Bollywood". Por outro lado, Slumdog Millionaire acaba por cair nesse paradoxo "bollywoodesco", pois tem um final bastante kitsch, onde não falta uma cena de dança, bem coreografada, ao som de Jay Ho (vídeo em baixo). Teria o realizador Danny Boyle uma intenção irónica, ou terá cedido à co-realização indiana?


Slumdog Millionaire é um filme polémico na própria Índia, entre outros motivos, por causa do nome Slumdog para os habitantes das favelas (que contrapõem que não são cães) e pelo facto de as crianças que nele participaram, oriundas dos próprios slums, terem sido mal pagas e regressado à origem, sem melhoria das suas condições de vida, depois de correrem mundo, enquanto o filme estava na berra. Estiveram, inclusive, na cerimónia da entrega dos Óscares, em 2009, junto com Danny Boyle, na qual o filme arrecadou oito estatuetas.

Nem sei bem o que pensar da película. Quer dizer-nos que nos devemos manter puros e honestos, não importa o que nos aconteça? Ou que a experiência de vida vale mais do que qualquer escola? Ou, ainda, alertar-nos para uma certa faceta da sociedade indiana? Enfim, pelo menos, tem o mérito de nos mostrar os horrores.



Nota: espero que, em Portugal, também seja conhecido o termo "Bollywood", usado para os musicais made in India.

11 de setembro de 2012

Opinião "A Cruz de Esmeraldas"

Agradeço à Carla Ribeiro a opinião publicada n' As Leituras do Corvo e da qual cito um excerto:

"Escrita cativante e uma história rica em aventura e mistério são duas das melhores características deste livro em que a história particular de Konrad e Aischa se junta à visão mais global da história da conquista de Lisboa e das barreiras culturais que, na época, opunham cristãos a muçulmanos, para dar forma a uma narrativa envolvente, com uma boa caracterização do contexto histórico e um equilíbrio muito bem conseguido entre romance, mistério e conflito".




9 de setembro de 2012

Pré-Publicação # 14


Ia, enfim, entrar no Porto, de que tanto ouvira falar, desde que nascera, e cujas muralhas, com os seus merlões de remate piramidal, faziam agora parte da paisagem que a rodeava. Junto com o seu grupo e o resto do povo, subiu a escadaria incrustada na encosta de granito que, do cais, dava acesso à chamada Porta das Mentiras.
O burgo, em si, não era grande. As muralhas, construídas em função da catedral e da paróquia que a rodeava, não chegavam a ter uma milha de perímetro. A riqueza e a fama da cidade do Porto deviam-se à atividade mercantil que se desenrolava nos cais das duas margens do Douro e que envolvia, não só a população local, como a da vasta região à sua volta.
Embrenharam-se no labirinto de ruelas e vielas, com os seus cheiros a dejetos. A moça conhecia outro tipo de odores: os da agricultura e dos animais, que haviam morado no piso térreo da casa paterna. Mas, nos cheiros próprios dos aglomerados, burgos e cidades, inexistentes na sua terra, imperavam os dejetos humanos e as águas inquinadas deitadas pelas janelas, acumulando-se nas vielas, que só secavam completamente no Verão. E o povo enfiava os sapatos e os socos, ou mesmo os pés descalços, na lama mal cheirosa.

7 de setembro de 2012

Pré-Publicação # 13


O castelo de Gaia, um antigo castro, aumentado e reforçado pelos mouros, à época em que estes tinham dominado a região, ficava no cimo de um morro, sobranceiro ao rio Douro, na sua margem esquerda, perto da foz. Sob a sua proteção, desenvolvera-se, pela encosta, uma povoação, o lugar de Gaia, que se tornara concelho. Englobava as freguesias de São Pedro da Afurada, a ocidente, a de Santo André de Canidelo, a sul, e a de Santa Marinha, a poente. Esta freguesia era limitada pelo monte da Meijoeira, também sobranceiro ao Douro, e onde o bispo do Porto fundara um convento de emparedadas, havia cinco anos.
O burgo episcopal do Porto, organizado em função da catedral em construção, situava-se sensivelmente em frente do monte da Meijoeira, sobre uma saliência granítica, o chamado morro da Pena Ventosa. Era composto por uma só paróquia, a da Sé, e rodeado por uma muralha.
A moça surpreendeu-se com a azáfama que ainda reinava no Douro, entre o concelho de Gaia e o burgo do Porto, apesar do cair da noite. Nunca tinha visto tantos barcos rabelos, tantos carregadores na sua faina e tantos mercadores a regatear as suas mercadorias.

5 de setembro de 2012

O Pintor debaixo do lava-loiças


Um livro que se lê bem e rapidamente, tem cerca de 170 páginas, algumas delas, com ilustrações. A linguagem também é simples, pode-se dizer que, por vezes, é de uma simplicidade infantil. Não quer dizer, no entanto, que não tenha qualidade e que os assuntos descritos sejam infantis. Há lugar para um crime, um amor não correspondido, um filho que mete a mãe num hospício e depois se arrepende, a perseguição aos judeus, etc.

Conta a vida do pintor Jozef Sors, nascido no final do século XIX no império Austro-Húngaro e que, em determinada altura da sua vida, teve de fugir aos nazis, acabando por chegar a Portugal e ser escondido debaixo de um lava-loiças. É baseado numa história verídica, já que os avós do autor tiveram mesmo um pintor assim escondido em sua casa.

Acontecem tantas coisas nestas 170 páginas, que escusado será dizer que a linguagem é muito económica, centrada no essencial e desmentindo aquela ideia de que, para escrever um romance, têm de se encher páginas a descrever os lugares, as atmosferas, os cheiros e sei lá mais o quê. Afonso Cruz centra-se mais nas emoções, tem frases lindíssimas sobre a vida, também as há cruéis, mas sempre (ou quase sempre) acertando no alvo. Só achei, por vezes, que pôs filosofias complicadas na boca de pessoas simples.

Não resisto a transcrever um excerto, porque me lembra algo que já aqui publiquei.
Primeiro, as palavras de Afonso Cruz:

Os primeiros anos nos EUA foram uma ilusão. O seu passado parecia ter ficado definitivamente para trás, mas o passado nunca fica para trás. Anda sempre connosco. Mais ainda, vai à nossa frente, e o futuro só o vemos através desse passado.

E, agora, as minhas:

«Somos o nosso passado», murmurou, para si própria. O presente só nos pertencia quando se tornava passado. Tudo aquilo de que tomávamos consciência, já passara. Talvez o presente nem existisse, apenas passado e futuro.
«E o futuro ainda não somos. Somos o nosso passado...»



3 de setembro de 2012

A minha prima São

A minha família é bastante numerosa. Do lado do meu pai, éramos catorze primos. Agora, somos treze. Porque a São morreu.

São  * 10/12/1956  + 28/08/2012

Como tantas vezes acontece, os contactos entre primos tornam-se escassos, com o passar do tempo. Mas há pessoas com quem não precisamos de contactar frequentemente para ficarmos contentes ao saber que estão bem e sentirmos a sua falta, quando desaparecem.

Por razões que aqui não vêm ao caso, a São e a irmã Rosário passaram vários meses em nossa casa, no longínquo ano letivo de 1972/73. No meu 7º aniversário, tinha-me sido oferecido um diário, mas ainda não sabia o que fazer com ele. A São disse-me que era bom ter um diário, onde podemos escrever tudo aquilo que nos apetece: o bom e o mau; o que nos alegra e o que nos põe triste. E não descansou, enquanto eu não lhe cedi uma página.

Apesar de só começar a escrever as minhas peripécias em 1977, enchi o diário. E, ao encontrá-lo, nestes dias, constatei que ele sobreviveu quatro décadas. A página da São também:





 Para que recordes sempre a tua prima muito amiga e todos os momentos alegres que passámos neste ano de 73.
Quando um dia leres este teu diário poderás ler estas palavras e por isso recordar-me sempre!...
Felicidades pela tua vida fora.

São os votos da priminha amiga: São

Gaia - 23-2-73








Também encontrei uma fotografia desses tempos. Da direita para a esquerda, a São (com dezasseis anos), a Rosário (dezoito) e eu (sete).



A São deixa muitas saudades a muita gente, para não falar do marido, dos três filhos (a mais nova tem dezoito anos), dos pais, dos irmãos e dos sobrinhos.

Recordo, ainda, o pequeno gira-discos das minhas primas. O disco mais tocado, enquanto estiveram connosco, terá sido o álbum Abraxas, de Carlos Santana, nomeadamente, o eterno Samba Pa Ti. Eu gostava de observar o movimento rotativo do enorme disco de vinil, que era maior do que o aparelho que o punha a funcionar, saía pelas bordas. Mas tocava. E ainda hoje, ao som das notas iniciais de Samba Pa Ti, eu me lembro de quando tinha sete anos e a São e a Rosário estavam em nossa casa.

Para que recordes sempre a tua prima muito amiga.

Nunca te esquecerei, São. Ninguém te esquecerá!