Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

31 de janeiro de 2019

Contra o Esquecimento!



Ruth Winkelmann, uma judia de 90 anos, é um caso raro na História da Alemanha. Sobreviveu ao regime nazi e à guerra, sem sair de Berlim. E, mesmo depois do conflito mundial, não deixou o país onde nasceu.

Era filha de um judeu e de uma cristã. Os pais separaram-se, quando o ódio contra os judeus se tornou visível e eles consideraram que os seus filhos podiam estar em perigo. Mesmo assim, Ruth, a mãe e uma irmã viveram os anos da guerra escondidas num anexo da casa de um amigo da família, aliás, um militante do Partido Nazi!

Ruth foi o único membro judaico da família que sobreviveu. O pai morreu em Auschwitz, um irmão foi também assassinado pelos nazis e uma irmã, mais nova, não resistiu à vida no esconderijo sem aquecimento e acabou por morrer de difteria, em março de 1945, pouco tempo antes de acabar a guerra e apenas três dias depois de completar os oito anos.

Durante 57 anos, Ruth Winkelmann não conseguiu falar desse período da sua vida. Sempre que se falava no Holocausto, ou aparecia um programa sobre o assunto na televisão, ela saía, em silêncio, da respetiva sala e ficava incomunicável por algumas horas. Em 2002, porém, numa estadia de férias na costa polaca do Mar Báltico, fez amizade com outra turista alemã. Conversa puxa conversa e, ao aperceber-se de que ela era judia, a senhora perguntou-lhe como tinha sobrevivido ao período nazi. Sem hesitar, surpreendendo-se a si própria, Ruth começou a contar a sua história, uma história que estava guardada no fundo do seu ser há tantas décadas e que, de repente, subiu à superfície. A surpresa foi ainda maior, quando, instada pela senhora se estava disposta a contar as suas memórias numa escola, Ruth respondeu, sem hesitar: «Estou».

Durante três meses, anotou as suas lembranças e vasculhou entre fotografias e documentos que havia guardado durante todo esse tempo, mas ignorado. Foi terrível, nas suas palavras, houve dias que ela achava que não aguentava. Mas aguentou, pois, com 74 anos, Ruth encontrara a missão da sua vida: lutar contra o esquecimento.

Entretanto, as suas memórias foram publicadas em livro, Plötzlich hieß ich Sara (De Repente, Chamava-me Sara) com a ajuda da historiadora Claudia Johanna Bauer. Com 90 anos, Ruth ainda arranja força para três sessões mensais nas escolas, ou de leitura de excertos do livro noutros contextos. Os estudantes são mais recetivos a um destino pessoal do que a aulas estéreis de História. Numa ocasião, até fizeram uma pequena peça de teatro, baseada em passagens do livro. Na apresentação da peça, Ruth diz que não havia ninguém na sala que não tivesse lágrimas nos olhos.



Ruth Winkelmann adora falar com os jovens, realizando, em parte, um sonho seu: gostaria de ter sido professora. Porém, quando a guerra terminou, ela tinha já dezasseis anos e não a autorizaram a encetar os estudos interrompidos há vários anos, por já estar fora da idade. Acabou por se tornar modista e, se a sua nova missão a ajuda a fazer as pazes com o passado, esta mágoa, diz ela, guarda-a até hoje.

Nota: Texto baseado numa reportagem da edição de 27 de janeiro de 2019 da KirchenZeitung, igualmente a origem da fotografia, no início.


24 de janeiro de 2019

Seres exóticos

Na programação televisiva alemã da passada segunda-feira, dei com o seguinte programa (tradução minha):

«Quem come o quê ao pequeno-almoço? Como funciona a máquina da louça? Onde está o aspirador? Cinco mulheres observam como um pai se avia sozinho, durante dois dias, com os filhos».

Passando por cima da polémica que possa causar um programa que mostra o quotidiano de uma casa onde moram crianças, achei pertinente o comentário da redação da revista em causa:

«Curioso que, em 2019, homens a tratar das tarefas caseiras continuem a ser apresentados como algo de exótico».



19 de janeiro de 2019

Feminismo


«Uma mulher que educa os seus filhos seguindo os ensinamentos e os valores cristãos faz mais pelo progresso da política e pela verdadeira emancipação feminina do que todas as feministas do mundo, com os seus costumes duvidosos».

Gosta desta frase? No fim deste post, direi quem e quando a proferiu.

O feminismo é ainda muito mal visto. No caso dos homens, não me admira. Afinal, a ambição, por parte das mulheres, de atingirem igualdade de direitos e oportunidades significa que eles têm de fazer concessões, aprender a dividir o poder. E quem gosta de perder privilégios?

No caso das mulheres, já me preocupa mais, pois mostra que estão imbuídas de mentalidade machista, mesmo sem o saberem. Não querem ser confundidas com ativistas, não vão os homens pensar que também são “dessas”. Ou seja, submetem-se à imagem que os homens criaram para elas.

Muitos homens parecem ficar ciumentos, perguntam porque não podem eles ser machistas, ou seja, consideram o feminismo um pendant do machismo. Esta interpretação está errada. A História da nossa sociedade patriarcal prova que o machismo se baseia na subjugação da mulher, considerando o sexo masculino superior. O feminismo, por seu lado, “apenas” almeja igualdade de direitos e oportunidades. Não se trata de supremacia, mas de igualdade. As pioneiras do movimento necessitaram de um termo que caracterizasse a sua causa e a sua luta. Os homens não precisam, nem nunca precisaram, de lutar contra a subjugação por parte das mulheres. E, no entanto, parecem sentir-se ameaçados por elas! Sentem necessidade de se agarrarem a um termo com o pretexto de lhes fazerem frente. Pois eu acharia ótimo que o feminismo não fosse necessário. Mas vivemos ainda numa sociedade marcadamente patriarcal, foram muitos séculos de supremacia masculina e, se o feminismo não o lembrasse constantemente, depressa se voltaria ao passado.

Não resisto a fazer um paralelo com o racismo (que não é a mesma coisa, mas tem pontos de contacto). Muitos brancos se sentem afrontados com a expressão black pride e acham que também têm o direito de apregoar o white pride. Eu não concordo. A História conta-nos séculos de subjugação indigna dos negros. Apesar de a escravatura ter sido abolida há muito tempo, nós, brancos, carregamos essa herança, quer queiramos, quer não. Até porque a verdadeira igualdade ainda não foi atingida, há muitos negros vítimas de discriminação.

Acham que os brancos não têm de carregar herança nenhuma? E se eu falar de alemães, por exemplo? Acham que os alemães de hoje não têm de carregar com o estigma nazi? Como reagiriam os portugueses, se vissem um alemão alto, forte e loiro a passear em Portugal com uma t-shirt ostentado o dístico german pride? Decerto não lhes agradaria. E com razão. Porque, também neste caso, há uma História de desrespeito pelos direitos e pela dignidade de outros povos (e inclusive de genocídio) por parte dos alemães.

Voltando ao ponto de partida: muitas mulheres alegam que não precisam do feminismo para se sentirem ao mesmo nível dos homens. E apontam comportamentos impróprios de ativistas mais radicais para justificarem a sua aversão. É verdade que o movimento feminista já conheceu radicalismos. Por outro lado, é preciso reconhecer o grande valor das pioneiras do movimento, que, muitas vezes, precisaram de atitudes radicais para serem ouvidas. Mulheres atuais com aversão ao feminismo esquecem-se de que, se não fossem essas ativistas, talvez ainda não pudessem votar, nem viajar sozinhas sem a autorização de um homem, nem sequer orgulhar-se de não se sentirem inferiores a nenhum homem e de não terem medo deles. Atitudes destas, no dia-a-dia, são muito de louvar, mas não modificam leis. E são as leis que garantem a igualdade de direitos. As modificações de que beneficiamos, hoje, foram conseguidas pelas feministas que certas mulheres tanto desprezam.

Mulheres com aversão ao feminismo e homens machistas são, em regra, lestos a criticar a situação da mulher na sociedade islâmica. Eles e elas esquecem-se de que o podem fazer graças às feministas.

Infelizmente, a verdadeira igualdade não foi ainda atingida, mesmo na nossa democracia ocidental. Ainda há muita mulher a ser agredida pelo marido e/ou companheiro; ainda há muita mulher a ganhar menos do que os homens pelo mesmo trabalho; ainda há muita mulher a ser culpada por ter sido violada e a sofrer vexames incomportáveis perante sentenças de juízes e juízas!

Volto agora à frase que serviu de mote a este post, confessando que a modifiquei um pouco. A versão original é a seguinte:

«Uma mulher que educa os seus filhos seguindo os ensinamentos da religião católica faz mais pelo progresso da política e pela verdadeira emancipação feminina do que todas as lutadoras pelo direito de voto, em todo o mundo, com os seus costumes duvidosos».*

Sim, a frase foi escrita para agredir as feministas que lutavam pelo direito do voto das mulheres, em 1912! Foi escrita por mulheres! Fez parte de um comunicado da União das Mulheres Cristãs (Christliche Frauenbund), na Alemanha.

Pelos vistos, há mulheres que continuam a pensar segundo os mesmos esquemas. Foi só preciso fazer umas pequenas modificações para o provar.

Acrescento ainda que a expressão «costumes duvidosos» se refere às fundadoras da Associação Alemã para o Direito de Voto Feminino (Deutscher Verein für Frauenstimmrecht), criada em 1902. Chamavam-se Anita Augspurg e Lida Gustava Heymann e eram um par lésbico. É interessante verificar que este facto se tornava mais importante do que a causa em si. Hoje, continua a acontecer. Muitas vezes se atacam pessoas pelas suas opções sexuais, ofuscando a sua luta por causas justas.



* Traduzido, por mim, do alemão. O original foi lido na KirchenZeitung, um jornal católico alemão, edição de 13 de janeiro de 2019, e aqui o transcrevo:



«Eine Frau, die in echt katholischer Gesinnung Söhne erzieht, hat mehr für den politische Fortschritt und die wahre Emanzipation des weiblichen Geschlechtes getan als alle Wahlrechtdamen der Welt mit ihren höchst zweifelhaften Sitten insgesamt».