Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

26 de março de 2022

Portugal na Idade Média


Visão História Portugal na Idade Média.png

«Em Portugal, houve nas últimas décadas uma explosão de investigações que alargou imenso as temáticas (…) Sabemos hoje muito mais sobre o que aconteceu no território que veio a tornar-se Portugal, e sobre o reino português, do que há 25 anos, e de uma forma mais plural» - palavras da historiadora Maria de Lurdes Rosa, na entrevista que serve de introdução a este especial Visão História.

A publicação cumpre aquilo que a historiadora nos promete. Abrange toda a época medieval (do século V ao XV), dando-nos informações sobre aspetos normalmente desprezados pela nossa História, mas essenciais para entendermos a formação de Portugal e as raízes do nosso povo, como a época dos reinos Suevo e Visigodo e a era islâmica, bem mais diversificada do que aquilo que nos fizeram crer, durante séculos. Além disso, apresenta artigos sobre a vida dos camponeses, os mesteres, a organização da sociedade, as finanças, o ensino, a cultura, a literatura, etc. Porque estudar a História não é apenas decorar datas e nomes de reis, batalhas e guerras.

E, no entanto, "não há bela sem senão". O artigo sobre D. Afonso Henriques, cheio de incongruências, não possui o nível qualitativo das outras contribuições. Para começar, o autor, Luís Almeida Martins, diz-nos que o «político e jurista Diogo Freitas do Amaral (…) deu em 2006 à estampa o livro D. Afonso Henriques - Biografia». Na verdade, esse livro é seis anos mais velho, foi publicado, pela primeira vez, no ano 2000, pela Bertrand Editora. Mais à frente, D. Teresa surge como sendo galega, quando não se sabe ao certo onde nasceu, embora se considere ter sido leonesa. Aponta-se o castelo leonês de Ulver, situado nos montes do Bierzo, como local do seu nascimento. Luís Almeida Martins diz-nos ainda haver uma lenda que diz ser D. Afonso Henriques filho de Egas Moniz, ou seja, o nosso primeiro rei teria sido fruto dos amores ilícitos de D. Teresa com o fidalgo de Ribadouro! Ora, a lenda não fala de “amores ilícitos”. O pequeno Afonso teria nascido aleijado das pernas e D. Egas Moniz, encarregado da sua educação, resolveu trocá-lo, ainda bebé, por um filho seu da mesma idade. Neste caso, a mãe nunca poderia ser D. Teresa! E, para dar mais um exemplo da falta de cuidado na escrita deste capítulo, atente-se à seguinte passagem: «já com 60 anos, D. Afonso Henriques (…) tentou apoderar-se de Badajoz. Ali, teve de lutar contra mouros e leoneses, acabando prisioneiro de Afonso VII (…) Acabaria por ser libertado pelo primo em troca de uma faixa de terreno na Galiza». Na verdade, quando o nosso primeiro rei atacou Badajoz, em 1169, o seu primo estava já morto há doze anos! Quem o fez prisioneiro foi Fernando II de Leão, filho do dito Afonso VII. E, diga-se de passagem, genro do próprio Afonso Henriques.

Tenho ainda uma crítica a fazer a este especial Visão História: falta um artigo dedicado a D. Teresa! Ela aparece-nos em vários momentos, incluindo um capítulo intitulado Ser Rainha, no meio de, por exemplo, D. Mafalda de Saboia, D. Isabel ou D. Filipa de Lencastre. D. Teresa não se enquadra, porém, neste contexto. Ela não se limitou a ser esposa de um rei (até porque foi casada com um conde); ela regeu sozinha sobre o condado Portucalense durante dezasseis anos. D. Henrique continua a ter mais destaque do que ela. Mas, como eu já referi no Delito de Opinião, D. Teresa marcou indubitavelmente a independência em relação a sua meia-irmã D. Urraca, a única herdeira do imperador Afonso VI. Recusou-se terminantemente a prestar-lhe vassalagem, assim como ao sobrinho (depois da morte de D. Urraca em 1126). Ou seja:  muito mais do que o conde D. Henrique, ela foi a preparadora do caminho que seu filho haveria de percorrer.

Pelos vistos, e apesar do avanço do estudo histórico, D. Teresa ainda é limitada à adúltera, a quem o filho teve de pôr na ordem. E, não contentes com os irmãos de Trava, ainda lhe querem impingir outro amante, o próprio Egas Moniz! Haja paciência!

2021-09-16 Ponte de Lima mit Manfred + Birgit 156.

Estátua da rainha D. Teresa, em Ponte de Lima

 

17 de março de 2022

Inter Lapidem

 


Inter Lapidem - "Entre Pedras". João J. A. Madeira, vencedor do Prémio Vergílio Ferreira 2020, atribuído pela Câmara Municipal de Gouveia, não só escreve bem, como tem uma imaginação prodigiosa. Este livro não podia ser mais original: mostra-nos um mundo paralelo ao nosso, entre as pedras da calçada! Um mundo para retratar tudo aquilo que já não vemos, ouvimos e sentimos, porque perdemos a sensibilidade para a beleza e para o que verdadeiramente importa.

Os estranhos habitantes desse mundo Inter Lapidem vivem com a missão de devolver a sensibilidade aos humanos do outro lado (ou acima deles). Uma missão espinhosa, que os leva quase ao desespero, e resolvem “raptar” um homem. Alexandre vive ao ritmo stressante dos nossos dias, esquecendo-se do resto, inclusive de si próprio. Com a saúde arruinada, desmaia em plena calçada. E, antes que o descubram e o levem, os pequenos seres de Inter Lapidem encolhem-no ao seu tamanho quase invisível, a fim de que ele caiba no seu mundo.

As vivências de Alexandre nesse País das Maravilhas consciencializam-no do que desaprendeu. O remédio, porém, não é fácil de encontrar. Os seus novos amigos propõem converter os humanos através da arte. Da música, por exemplo? Será que as pessoas conseguirão recuperar a visão para as coisas realmente importantes, ouvido música sublime?

Músicos são contratados, verdadeiros mestres dos seus instrumentos de eleição. João J. A. Madeira introduz-nos na pele desses músicos, ao incluir relatos de três artistas sobre o significado dos seus instrumentos na sua vida e as sensações experimentadas, quando os tocam.

Em Inter Lapidem, no entanto, as coisas não correm como o esperado. Os terráqueos “normais” permanecem insensíveis à arte, vivendo a correr, obcecados por bens materiais. 

Haverá esperança para o nosso mundo? Deverão os novos amigos de Alexandre desistir da sua missão? Esta é uma pergunta que deixo em aberto, para o caso de haver alguém interessado na leitura deste interessante e bonito livro, à venda online.

10 de março de 2022

The Making of a Marchioness

  


Encontrei este livro em promoção numa livraria de Hamburgo (custou apenas 5 €). Não conhecia a autora, mas o facto de ter vivido nos fins do século XIX e princípios de XX, convenceu-me a comprá-lo, pois interessa-me a condição da mulher nesses tempos já quase modernos, em termos de industrialização, mas ainda tão tradicionais, na sua mentalidade. 

Já em casa, pesquisei sobre Frances Hodgson Burnett e constatei duas coisas interessantes: escreveu cerca de cinquenta livros, muitos deles, infantis, e o mais conhecido já teve nada menos do que quatro versões cinematográficas, com o título O Pequeno Lorde (Little Lord Fauntleroy, no original). A versão protagonizada por Alec Guinness e Ricky Schroder data de 1980 e, na Alemanha, tem transmissão televisiva assegurada todos os anos, na época pré-natalícia! Nunca vi o filme completo (ou talvez o tenha visto nos anos 1980, em Portugal, não tenho a certeza), mas sei o suficiente sobre ele para me parecer muito kitsch: um pequeno norte-americano viaja para Inglaterra, ao encontro do avô, que não conhece. Ora, este é um nobre que, em idade adiantada, resolve trazer para si aquele neto de mãe americana, seu único herdeiro, a fim de o educar em conformidade. E dá-se a transformação: a alegria e a ternura da criança derrete o coração do severo lorde inglês. Enfim, é um filme que faz as delícias das avozinhas alemãs, ajudando-as a aquecer o coração, num serão frio de dezembro.

Foi, por isso, já com algum preconceito que comecei a ler The Making of a Marchioness. E, de facto, o início não foi promissor. A personagem principal, Emily Fox-Seton, é uma mulher de trinta e poucos anos. Apesar de ter origem quase nobre e gozado de uma boa educação, vê-se sozinha, solteira e sem família, tendo de ganhar o seu próprio dinheiro (o que, na viragem do século, ainda não era comum). Mas ela tem uma ocupação aceitável para uma senhora: como tem bons modos e gostos, é solicitada por senhoras nobres para lhes tratar da decoração das casas, do vestuário, fazer-lhes as compras e dar-lhes conselhos. Emily Fox-Seton executa todas as tarefas cheia de prazer e vontade de agradar, esquecendo as suas próprias necessidades e desejos. Está sempre bem disposta e sabe ser discreta, se, por acaso, se encontra numa reunião social. É assim uma espécie de eminência parda, que nunca se catapulta para primeiro plano e, ao mesmo tempo, arranja sempre maneira de a sua indumentária não envergonhar ninguém, apesar de não ter muito dinheiro.

Todo este ambiente cor-de-rosa atinge o seu auge, quando ela, acompanhando uma senhora da sociedade, se vê num convívio da alta roda, numa mansão da província inglesa, durante vários dias. E, pasme-se, acaba por ser pedida em casamento pelo viúvo mais cobiçado da festa!

Não desisti da leitura, porque, no meio de tanto kitsch, achei interessante observar certos costumes da época e aperceber-me das mentalidades. E o facto de ela já ter casado a meio do livro, intrigou-me. Afinal, que melhor final para um romance deste género do que um matrimónio que faz de uma mulher pobre, acomodada, ingénua e aparentemente pouco inteligente numa das mais ricas marquesas das Ilhas Britânicas (sem nunca o ter almejado)?

Na segunda parte, o romance muda completamente de tom. Apesar do seu comportamento corretíssimo de gentleman, Lord Walderhurst é um homem extremamente frio, destituído de qualquer emoção. E, tendo negócios na Índia, não hesita em abalar para esse país, poucos meses depois das bodas, deixando a recém-casada grávida (sem ele aliás ainda saber), amargurada e sozinha numa mansão no meio do nada. Na sua solidão, a ingénua marquesa acaba por cair na influência de Alec e Hester Osborn, um casal que chega a tentar assassiná-la! Alec Osborn, um escroque aparentado com Lord Walderhurst, vê-lhe fugir a herança com a gravidez de Emily. 

The Making of a Marchioness torna-se então num romance lúgubre, quase de terror, com alguns contornos sobrenaturais. A autora transmite, com mestria, a crueldade dos Osborns e o horror em que passa a viver a sua heroína. E retrata ainda cenas de violência doméstica, pois, afinal, Hester Osborn apenas colabora com o marido, porque ele a tiraniza e espanca.

Concluindo: um romance bastante esclarecedor sobre a condição das mulheres naquela época, sujeitas aos humores dos homens, cuja falta de sentimentos conduz à negligência (no caso de Emily, que constata ter vivido muito mais segura e feliz quando era solteira e pobre) e à violência.

5 de março de 2022

Cem Anos de Solidão

 


A minha última opinião sobre um livro - A Tia Júlia e o Escrevedor, de Maria Vargas Llosa - foi já a 28 de maio de 2021. Claro que não deixei de ler, mas falta-me o tempo, a ocasião, essas coisas. Na verdade, a minha colaboração no blogue Delito de Opinião deixou o Andanças um pouco esquecido. Enfim, vou tentar recuperar em relação aos livros, embora seja difícil escrever sobre obras lidas há muito tempo.

Na verdade, em relação a Cem Anos de Solidão, pouco há a acrescentar ao epíteto de obra-prima. Não li, claro, todos os clássicos, nem lerei, nem haverá quem o consiga, mas não hesito em afirmar que este é realmente um dos melhores livros já escritos. Além disso, procurando na net, encontram-se inúmeras informações e recensões sobre esta obra e não serei eu que vou fazer a diferença.

Mas posso dizer o que mais me impressionou: o quase alucinante ritmo narrativo. Dir-se-ia que as ideias saltam em catadupa do cérebro de Gabriel García Marquéz, para o papel. Por isso, ninguém deixe de pegar nesta obra-prima da literatura por recear ser chata, ou conter linguagem erudita, não acessível a todas as pessoas. Na escrita de Gabriel García Marquéz, também conhecido por Gabo, não há pontos mortos, os acontecimentos sucedem-se a um ritmo alucinante e são narrados de forma perfeitamente compreensível.

Através de um local fictício, Macondo, Gabo conta-nos a história de uma família, durante um século, e, em paralelo, a história da América Latina. Está lá tudo: a fundação de uma cidade de província em terrenos selvagens, a evolução tecnológica no dealbar do século XX, a revolução caracteristicamente sul-americana com todas as suas contradições e reviravoltas (apreciei que Gabo, assumidamente comunista, não faça a apologia deste sistema - assim se define um bom escritor) e, por fim, a decadência, tanto de Macondo, como da família Buendía.

Gabo utiliza também o realismo mágico, ou seja, introduz elementos do sobrenatural, a fim de dar mais realce a certas mentalidades e acontecimentos, ou fazer crítica político-social velada. Gabo é aliás bastante poupado na utilização deste artifício literário. Mesmo assim, penso que se corre o risco de não levar a sério certas coisas. Na família Buendía, por exemplo, também lá está tudo: ciúmes, prepotência, incesto, violência, loucura, fanatismo, negligência, fraqueza - no fundo, o retrato de qualquer família, se o alongarmos durante um século. Como, porém, não conseguimos ser objetivos ao analisar a nossa própria família, a utilização do realismo mágico pode confirmar esta nossa tendência. Aumenta a nossa distância em relação à família Buendía, que remetemos para um mundo imaginário, vedando a autocrítica. Esta é, para mim, a única fraqueza desta obra.

E, bem, para um livro lido há mais de dez meses, até escrevi bastante. Mais do que pensei, quando iniciei este texto.