Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de junho de 2019

Feira do Livro de Braga

De 28 de junho a 14 de julho, as "Memórias de Dona Teresa" poderão ser encontradas na Feira do Livro de Braga, stand nº 11, da Poética Edições.





«- Senta-te a meu lado, Teresa - dizia minha tia Urraca, nos serões longos de Estio, quando já tínhamos os olhos cansados de bordar, provocando ciúme nas minhas duas irmãs. - Já te falei da cidade de Viseu? Já te contei que foi junto às suas muralhas que teu bisavô, Afonso V de Leão, encontrou a morte, trespassado por uma flecha dos infiéis?
Tantas vezes ouvi aquelas narrativas, que Viseu se me tornou uma cidade de fantasia que eu ansiava conhecer, a cidade ligada, desde tempos mui antigos, à meninice de infantes leoneses que ali foram criados.
- Não havia, na Hispânia, memória de soberano tão poderoso como Dom Fernando, "O Magno" - dizia ela, o olhar brilhante pousado no horizonte. - Nunca estes reinos viram tão excelso par real, como meus queridos pais, Dom Fernando e Dona Sancha!
Sentada a seu lado, eu venerava-a, junto com meus gloriosos avós paternos, envolvida pelo doce aroma dos jasmins da alcáçova toledana, que hoje recordo como se do Paraíso se tratasse».


In "Memórias de Dona Teresa"






20 de junho de 2019

Efemérides Históricas ao Tempo da Formação de Portugal (2)

A 20 de Junho de 1120, D. Teresa refugiou-se no castelo de Lanhoso e a meia-irmã D. Urraca montou-lhe cerco.

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Castelo de Lanhoso - esta torre, a sua "imagem de marca" actual, ainda não existia ao tempo de D. Teresa.
Foto © Horst Neumann

Trata-se de uma época muito conflituosa, cheia de intrigas e golpes, nos quais estavam envolvidas mais duas importantes personalidades: o conde galego Pedro Froilaz de Trava e o arcebispo de Santiago de Compostela, Diego Gelmírez.

Tal como a meia-irmã, D. Urraca, como mulher, teve muita dificuldade em fazer valer a sua autoridade, apesar de ser a única herdeira legítima de D. Afonso VI. O facto de ter cumprido a última vontade de seu pai, casando com o rei D. Afonso I de Aragão e Navarra, piorou a situação da rainha, pois, no caso de o casal ter filho varão, esse príncipe deveria herdar Leão e Castela e o meio-irmão, Afonso Raimundes, filho do falecido D. Raimundo, herdaria apenas a Galiza. Assim determinara o imperador Afonso VI, logo provocando o protesto do conde galego Pedro Froilaz de Trava, Aio de Afonso Raimundes, que considerava o seu protegido o único herdeiro do avô. Depois da morte do imperador, o conde galego, assim como o bispo Gelmírez, apressaram-se a coroar Afonso, de apenas seis anos, como rei da Galiza, num primeiro sinal da autoridade que assistia ao pequeno.

Afonso I de Aragão, por Manuel Aguirre y Monsalbe

Esta coroação complicou a vida de D. Urraca, pois, durante a menoridade do filho, teve de aceitar a regência de Pedro Froilaz de Trava sobre a Galiza. Não teve aliás filhos com Afonso I de Aragão e o casamento chegou mesmo a ser dissolvido pela Igreja. Porém, quando o filho atingiu a maioridade, que, nesta altura, se dava pelos catorze ou quinze anos, o conde galego instou-o a ocupar o trono de Toledo, a fim de tomar o lugar de seu avô, apesar de a mãe ainda ser viva. Não estando disposta a prescindir dos seus direitos, D. Urraca envolveu-se em contendas com Pedro Froilaz de Trava e o arcebispo de Santiago de Compostela.

Os dois galegos eram amigos, unidos na defesa do seu protegido, mas, com o tempo, começaram a desentender-se. D. Urraca aproveitou para aprofundar o fosso entre eles, entrando, em 1120, com um exército na Galiza. Instalou-se em Santiago de Compostela, onde doou um importante feudo à igreja daquela cidade, favorecendo o arcebispo. Esta doação debilitava a família de Trava, o que indignou o conde Pedro Froilaz.

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Em seguida, aconteceu, porém, algo que hoje não se sabe bem explicar: D. Urraca penetrou no condado Portucalense, arrasando culturas, incendiando e depredando. Terá sido por influência do arcebispo Diego Gelmírez, que pretendia acabar com o estatuto arqui-episcopal de Braga? Nesse caso, será difícil de explicar que D. Urraca tenha feito, a 17 de Junho, uma importante doação à igreja de Braga, na presença do arcebispo D. Paio Mendes.

O certo é que, na sequência da incursão da meia-irmã, D. Teresa teve receio de ser destituída do governo do condado e refugiou-se no castelo de Lanhoso, um dos melhores de Entre Douro e Minho. Situado no cimo de um maciço rochoso com quase trezentos metros de altura, o castelo permitia vigiar as redondezas num raio de dezenas de milhas. Devido ao terreno acidentado, o seu acesso fazia-se apenas por um itinerário e as suas muralhas eram reforçadas por cinco torreões, dois dos quais ladeavam a única porta de entrada, voltada a Sul. Além disso, o seu interior albergava uma estrutura palaciana.

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Pormenor do recinto actual do castelo de Póvoa de Lanhoso.
Foto © Horst Neumann

A partir daqui, não há certezas sobre o que aconteceu. A versão mais conhecida é que as irmãs se reconciliaram, nas chamadas «pazes de Lanhoso», jurando-se amizade e tendo D. Teresa prestado vassalagem à irmã, que instituiu, a seu favor, «os senhorios de Zamora, Orense, Salamanca, Toro e Ávila» (Mateus, 2005). Certo é que o cerco foi de pouca dura. E, regressada a Compostela, D. Urraca mandou prender o arcebispo Gelmírez e confiscou-lhe todos os castelos! O que terá gerado este volte-face?

Na opinião de Mateus (2005), terá havido intriga de Fernão Peres de Trava, o filho mais novo do conde Pedro Froilaz. Este é um interessante e fulcral episódio, pois talvez marque o início da relação entre Fernão Peres e D. Teresa. Mas como entraram os dois em contacto? Terá Fernão Peres procurado D. Teresa em Lanhoso? Teriam os dois, nessa altura, combinado apoderarem-se da Galiza (que D. Teresa considerava fazer parte da sua herança) e urdido uma intriga, a fim de pôr D. Urraca novamente contra o arcebispo Gelmírez? Neste caso, é possível que nem tenham existido as «pazes de Lanhoso», rejeitando a hipótese de D. Teresa ter prestado vassalagem a D. Urraca.

O mais certo é nunca virmos a saber o que realmente aconteceu. No entanto, o episódio de Lanhoso teve importância fulcral no futuro de D. Teresa, já que a sua ligação a Fernão Peres de Trava, permitindo a ingerência deste no governo do condado Portucalense, afastou de si os barões que veriam no filho, Afonso Henriques, o melhor meio de afastar a influência galega.

Nota: texto originalmente publicado aqui.

 

7 de junho de 2019

O Implacável Cerco de Almada




A ação deste romance situa-se nos anos de 1383/84, logo a seguir à morte de D. Fernando I, causando uma grave crise de sucessão. D. Fernando I deixou apenas uma filha, D. Beatriz, casada com D. João I de Castela. Por isso, se sentia o monarca castelhano com direito à coroa portuguesa. Foi na sequência destes acontecimentos que D. João Mestre de Avis se declarou rei de Portugal e, como sabemos, a crise só se resolveria com a Batalha de Aljubarrota, em 1385.

Neste romance, D. João I de Castela surge, em 1384, com a sua armada, no Tejo, cercando Lisboa e Almada ao mesmo tempo, a fim de impor a sua autoridade. O autor, António da Costa Neves, faz um bom retrato da época, através da sua personagem principal, João Galo, baseada num tabelião que existiu historicamente. Aqui, João Galo tem apenas 13/14 anos e é filho do regedor Afonso Galo, que faz parte do concelho da vila de Almada. Numa nota inicial, o autor esclarece que não tem a certeza desta relação familiar. Tomou, no entanto, esta opção, em prole do enredo, o que é legítimo, num romancista.

Sendo filho de um notável de Almada, o jovem João Galo mantém-se informado sobre os acontecimentos, que o leitor vê através dos seus olhos. Como disse, a época e a sua linguagem estão bem caracterizadas, assim como a vida do jovem, cujas incertezas e insegurança próprias da adolescência se misturam com os acontecimentos históricos.

Houve, porém, um aspeto que não me pareceu muito credível. João Galo atravessa várias vezes o Tejo, num pequeno barco, esgueirando-se por entre as galés castelhanas, acompanhado do seu futuro sogro (na época, um jovem de 14 anos poderia perfeitamente estar de casamento marcado), a fim de se inteirarem da situação em Lisboa. É certo que eles saem sempre de Almada às escondidas, ao escurecer, ou de manhã muito cedo, disfarçados de pescadores de alguma aldeia próxima (fazem-se ao rio num ponto afastado da vila), a quem os castelhanos não dão grande importância. Pergunto-me, porém, se tal seria possível, já que a finalidade de um cerco era levar os sitiados a morrer de fome. E mesmo que os castelhanos não os considerassem habitantes de Almada, deixá-los-iam andar à vontade?

Não obstante, trata-se de uma boa leitura para quem se interesse pela época e por este tema, em particular.


4 de junho de 2019

Ajudar quem quer desistir

Foto © Horst Neumann


O jornal católico que assino (na Alemanha), dedicou, há algumas semanas, uma edição ao suicídio (nº 18, 15-05-2019). Achei interessantíssimo, acima de tudo, porque informava como devemos reagir, caso desconfiemos que alguém que nos está próximo, ou que conhecemos, corre o risco de se suicidar. É um tema muito difícil de ser abordado e muitos de nós não o fazem pela simples razão de não saber como. Também há quem pense que o melhor é ignorar, pois receia que, ao referir o assunto, encoraje ainda mais a pessoa a levar a cabo as suas intenções.

No entanto, o contrário é válido: os psicólogos consultados foram unânimes a afirmar que ninguém deve ter medo de provocar o suicídio, pelo facto de o referir. É muito mais eficaz abordar a pessoa diretamente. Por exemplo: «Sentes-te tão desesperado, que achas que deves desistir? Encaras a possibilidade de pôr um fim a tudo? Como te posso ajudar?»

Quem pensa em suicidar-se, costuma enviar sinais. Anda angustiado, sem esperança, desesperado; deixa de cultivar as suas amizades, ou de exercer os seus hobbies; queixa-se de ser um fardo para os outros; ou diz mesmo que pretende acabar com a vida. Quem assim age, precisa de quem o ouça, de quem o leve a sério e lhe providencie ajuda profissional. Ignorar, na esperança de que passe, é o maior erro.

Outro grande erro é tentar menorizar os problemas de quem sofre: “isso não é nada”; “há quem esteja bem pior”; “isso passa”; “tens de te animar”; “pensas que a minha vida também é fácil?”. Atitudes destas são de evitar ao máximo, pois a pessoa sente que não é levada a sério, o que a deixa ainda mais amargurada, mais fechada.

A parte mais interessante no tratamento deste tema, foi, para mim, uma entrevista a uma senhora que faz trabalho voluntário numa linha do tipo “SOS Voz Amiga”, da qual traduzo algumas passagens:


Imagine que está de serviço na linha e alguém telefona a dizer: “estou desesperado, vou matar-me”. O que faz?


Em primeiro lugar, tento estabelecer um contacto, alcançar a pessoa em todos os sentidos.

E como o faz?

Pergunto: “Quer contar-me o que o deixa assim tão desesperado? O que está por trás disso?”. Depois, conforme o que me contam, valorizo a luta dessa pessoa, valorizo o seu sofrimento, a sua dor. Digo, por exemplo: “eu sei o que tem de aguentar; sei como é difícil levantar-se todos os dias e tentar viver normalmente, ignorando o sofrimento da depressão”. Com expressões deste género, consigo o contacto. O meu interlocutor ganha confiança em mim e solta-se. No decorrer da conversa, digo: “diz-me que não quer continuar a viver e eu consigo compreender. Mas o que seria necessário para que dissesse que tornaria a tentar? Pode sempre suicidar-se, no fim, terá sempre essa opção. Mas vamos primeiro ver: o que é ainda possível? Tem talvez um sonho na sua vida, alguma coisa que gostaria de fazer? Repare: luta todos os dias contra a sua depressão, sem avançar. Não concebe empregar essa energia para atingir algo com que sempre sonhou?”. Tento não dar conselhos, mas sim avaliar quais as possibilidades que a pessoa ainda tem, ir ao encontro dos seus desejos, dos motivos que a podem levar a mudar de ideias.
  
Não relativiza.


Nunca. A pessoa iria imediatamente sentir que não é levada a sério. Mantenho-me compreensiva e expresso as minhas emoções com sinceridade, por mais abalada que fique. Lembro-me de um caso de um homem que me disse que era o bastardo da família, que sempre fizeram questão de lho dizer, pois ele era o resultado de uma relação extraconjugal de sua mãe. O seu pai [marido da mãe] arrancava-o da cama três vezes por semana, começou a fazê-lo quando ele tinha três ou quatro anos, metia-o no carro, levava-o para um sítio ermo e dizia-lhe que lhe dava um tiro e que depois se suicidava da mesma maneira. Nunca o fez, mas o homem revivia o cenário constantemente.

Isso é horrível. Como reage?

Com sinceridade. Digo: “Isso que me está a contar abala-me imenso; até me pergunto como tem conseguido sobreviver”.

Nunca relativizar ou desvalorizar.

Exatamente. E tento então ver onde estão as possibilidades. Pergunto: “como tem aguentado esse fardo? O que lhe deu força? A sua fé? A sua avó? Um amigo? Tem de haver alguma coisa.” Faço perguntas. E não dou conselhos, apenas sugestões, em função do que me dizem.

E como é consigo? Como supera a desilusão, quando alguém desliga, a meio da conversa, deixando-a com a sensação de que não evitará o suicídio?

Aceito, simplesmente. E procuro distanciar-me, digo-me: a decisão de desligar foi do outro. Tentei dar o meu melhor, fazer o que estava dentro das minhas possibilidades. Se não chegou, não há nada que eu possa fazer para alterar esse estado de coisas.


Acrescento que esta senhora teve uma formação de dois anos, antes de começar a atender pessoas em desespero.

Nota: a tradução é minha, do alemão; o publicado é um resumo da entrevista que li.

Texto originalmente publicado aqui.