Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

15 de setembro de 2019

"Memórias de uma aldeã"



Este livro não é uma grande obra literária. Mas é maravilhoso, porque conta a vida real. E a vida supera, muitas vezes, a ficção.

Nascida em 1919, na Baviera, a autora, Anna Wimschneider, conta a sua vida de trabalho, desde que, com nove anos, teve de substituir a mãe que morreu de parto do nono filho. Anna não era a mais velha, tinha três irmãos nascidos antes dela. Mas era a rapariga mais velha e teve de ser ela a tomar conta da família. Trabalho sem fim, tanto em casa, como na agricultura, ao mesmo tempo que frequentava a escola. Muitas vezes, o “agradecimento” do pai e dos três irmãos mais velhos, por ela cozinhar, limpar, lavar e remendar a roupa, vinha na forma de tabefes, por ela se esquecer de algo, ou não o ter feito em condições. Só podia ir para a escola, depois de ter tratado dos irmãos mais novos, feito o pequeno-almoço para toda a família e arrumado a cozinha. Chegava sempre atrasada às aulas. O professor era felizmente compreensivo. O padre não! Chegou também a bater-lhe, por chegar atrasada à missa, ou apenas por trazer o missal errado (de notar que toda a gente, na aldeia, sabia que a miúda substituía a mãe).

Quando conheceu o futuro marido, o pai não a queria deixar casar, pois ela fazia-lhe falta. Mas uma vizinha lá o convenceu a deixar a moça viver a sua vida. Que aliás não se tornou mais fácil, pelo menos, nos primeiros anos. O marido era um lavrador tão pobre como ela. Além disso, casaram em 1939, pouco antes de se iniciar a 2ª Guerra Mundial, e ele foi alistado. Anna ficou sozinha com dois tios e uma tia do marido, já velhos, e a sogra. Tratava sozinha de tudo: da casa, das terras e dos velhos. Além disso, a sogra era-lhe muito hostil.

A vida só começou a melhorar, depois de a guerra acabar e o marido recuperar dos ferimentos. Os velhos foram morrendo. Anna tinha, assim, apenas a sua própria família e, embora continuasse a ter muito trabalho, já se considerava privilegiada. Os últimos dez anos da sua vida, quando já não tinha os filhos a seu cargo, não foram, porém, muito agradáveis. Anna estava frequentemente doente, devido às agruras que experimentara na infância e na juventude, e chegava a passar mais tempo no hospital, do que em casa. Sofria, principalmente, de asma.

No início dos anos 1980, uma das filhas convenceu-a a escrever a sua história. De notar que Anna Wimschneider nunca se serve de um tom queixoso, ou revoltado. Limita-se aos factos, descritos com grande lucidez. Uma editora dispôs-se a rever e a corrigir o manuscrito (Anna estava longe de ser uma escritora), publicando-o em 1984. Já se venderam, na Alemanha, dois milhões de exemplares! E foi realizado um filme em 1988 (a capa representa uma das cenas). A autora morreu em 1993.

Este livro é testemunho de uma vida que, pelo menos nas nossas latitudes, já não existe, nem se consegue imaginar. Um livro que também nos mostra como as pessoas descarregam as suas frustrações e os seus ódios nos outros, tendo, por alvo preferido (porque mais fácil), as crianças - de notar que a autora não o denuncia, a conclusão é minha. Um livro que tornou famosa uma mulher simples e nos mostra que as editoras deviam estar atentas a relatos deste tipo. Um livro que li de um fôlego.

A autora Anna Wimschneider, imagem da Süddeutsche Zeitung

Manuscrito original de Anna Wimschneider, na posse da BayerischeStaatsbibliothek (Biblioteca do Estado da Baviera)


Nota: o título original, “Herbstmilch”, designa uma antiga receita bávara, com leite azedo, e significa “leite outonal”, ou “leite de outono”. Como o seu sentido não é passível de ser identificado em Portugal, preferi traduzir o subtítulo: “Memórias de uma aldeã”.


4 de setembro de 2019

Efemérides históricas à volta da formação de Portugal (4)

No Verão de 1184, D. Afonso Henriques deu a mão da filha, a infanta D. Teresa, a Filipe da Alsácia, conde da Flandres.

A história à volta desta filha de D. Afonso Henriques e do conde da Flandres é deveras curiosa. Por vezes, penso que, não se tivesse ela passado em Portugal, mas, por exemplo, na Inglaterra, o romance já teria sido transformado em filme, ou em série, ou nas duas coisas, tornando-se a infanta D. Teresa de Portugal e o conde Filipe da Flandres num dos mais famosos pares amorosos da época medieval.

Afonso Henriques parece ter tido uma relação muito especial com esta filha, que ostentava o nome da avó. Ela permaneceu ao lado do pai até aos trinta e três anos, incomum numa época em que as princesas costumavam casar muito cedo, algumas, ainda crianças. Sobre as razões, nada se pode dizer.
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Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos

 Corria o ano de 1177, quando uma frota de cruzados flamengos, a caminho da Terra Santa e comandada pelo próprio conde Filipe da Flandres, ancorou na cidade do Porto. Afonso Henriques conhecera o pai de Filipe, Teodorico da Alsácia, que, vinte anos antes, passara, pelas mesmas razões, pela costa portuguesa e participara num ataque a Alcácer do Sal. Em 1177, o nosso primeiro rei, com cerca de setenta anos, estava bastante debilitado, devido ao desastre de Badajoz, em que teria ficado gravemente ferido. Já quase não saía de Coimbra, era o seu filho, o futuro D. Sancho I, que se deslocava pelo reino em seu nome. Mesmo assim, decidiu viajar ao Porto, a fim de se encontrar com o conde da Flandres. Afonso Henriques ficara eternamente grato pela ajuda dos cruzados na Conquista de Lisboa. A rota marítima, que passava pela costa portuguesa, continuou a ser muito frequentada e o nosso primeiro rei não perdia uma oportunidade de contactar com os cruzados que fizessem escala num dos portos portugueses.

A infanta D. Teresa, com cerca de vinte e seis anos, acompanhou o pai ao Porto (presume-se que praticamente não saísse do seu lado). E, estando o pai debilitado, foi ela que fez de cicerone a Filipe da Alsácia, mostrando-lhe a cidade e a região. Parece certo que, durante uma semana, a infanta portuguesa e o conde da Flandres conviveram muito. Ter-se-á estabelecido simpatia entre eles? Ou algo mais? Enfim, Filipe da Alsácia era casado. E, passada essa semana, despediu-se da infanta e de seu pai e seguiu viagem.

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Jovem medieval copiada de um anúncio numa revista medieval alemã, há vários anos (o vestuário não é muito compatível com o do século XII, mas serve hoje para representar a infanta D. Teresa, da qual não encontrei imagens)

Cerca de seis anos mais tarde, o conde da Flandres enviuvou. E, sete anos depois da sua passagem pelo Porto, sem nunca mais ter visto Teresa, enviou uma frota a Portugal, pedindo a infanta em casamento e, caso o pai o aceitasse, solicitando que ela viajasse para a Flandres nessa mesma frota.

Historicamente, não existem fontes que expliquem as razões que levaram a este casamento e alguns historiadores admitem que o conde da Flandres tenha ficado bem impressionado com a figura e o porte da infanta. O próprio Afonso Henriques a chegou a apontar como sua sucessora, caso o infante D. Sancho falecesse sem filhos. Em 1172, ao doar o castelo de Monsanto à recém-criada Ordem de Santiago da Espada, Afonso Henriques declarou que os Mestres da Ordem deveriam aceitar nesse castelo a soberania de seu filho Sancho e de sua filha Teresa, si regnum meum tenuerit («se vier a ter o meu reino»). Era a prova de que considerava a infanta, e mais ninguém, como a sucessão alternativa ao filho Sancho.

A infanta D. Teresa partiu para a Flandres nesse ano de 1184 e o rei seu pai morreria no ano seguinte. Já se previa que o seu fim estava próximo. Aquela filha, de trinta e três anos, que nunca se havia separado dele, não o confortou, nos seus últimos momentos, nem assistiu à sua morte. A separação deve ter sido muito difícil para os dois.
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Filipe da Alsácia, Conde da Flandres - estátua na Basílica do Sangue Sagrado, em Bruges. Filipe da Alsácia, que fez várias viagens à Terra Santa, foi um dos cruzados mais famosos do século XII.

Teresa e Filipe não tiveram filhos. E a união acabou por durar apenas seis anos. Filipe embarcou numa nova cruzada, em Setembro de 1190, e morreu, sem ter regressado ao lar, de uma epidemia que atingiu os cruzados durante o cerco a Akkon. Teresa, ou Matilde, como ficou conhecida por aquelas paragens, por identificação com sua mãe, governou a Flandres sozinha durante mais de vinte anos (uma verdadeira representante da avó, de quem herdou o nome). Morreu em 1216, sem filhos, e eu acho uma pena que os governantes da Flandres, a partir do século XIII, não tivessem sido descendentes de D. Teresa e de D. Afonso Henriques. A sorte acabou por calhar a Balduíno V de Hennegau, um parente do falecido Filipe.

1 de setembro de 2019

Sem receio da mudança

Imagem Wochenblatt

Estou muito orgulhosa do "meu" Horst. Atreveu-se a mudar de emprego aos 56 anos e até teve direito a reportagem no jornal diário local. Trabalha, desde 1 de agosto, na Câmara de Stade, a sua cidade-natal e onde vivemos há 20 anos, como planeador de tráfego, fazendo parte de uma equipa que pretende criar um novo conceito para a cidade, dando mais espaço aos peões e aos ciclistas (não, a Greta Thunberg não vai resolver os problemas ambientais do planeta, mas o movimento por ela iniciado está a ter reflexos e é isso que importa; quem, de nós, conseguiria tal proeza?).

Esta decisão do Horst exigiu coragem, pois, apesar de continuar funcionário público, está à experiência por seis meses. Se algo correr mal, pode ser despedido ao fim desse tempo. Para isso, rescindiu um contrato de trabalho vitalício, que tinha com a Câmara de Hamburgo, onde trabalhava há 26 anos. Como sabem, a Alemanha é uma federação de estados. Hamburgo é uma cidade-estado; Stade, apesar de estar a apenas 50 km, pertence ao estado da Baixa Saxónia. Um funcionário público não pode mudar de estado, mantendo o mesmo contrato, pois a entidade empregadora é diferente. Mas há-de tudo correr bem, estamos confiantes.

O emprego em Stade, além de lhe proporcionar fazer um trabalho para o qual está muito motivado, fica pertinho de casa. É só agarrar na bicicleta e, em dez minutos, chega ao emprego. Um verdadeiro sonho para quem, durante 20 anos, viajou de comboio todos os dias para Hamburgo, uma hora para cada lado.

O Horst merece.

Obs: a bicicleta dele não é elétrica.


Nota: texto originalmente publicado aqui.