Este livro não é uma grande obra literária. Mas é
maravilhoso, porque conta a vida real. E a vida supera, muitas vezes, a ficção.
Nascida em 1919, na Baviera, a autora, Anna
Wimschneider, conta a sua vida de trabalho, desde que, com nove anos, teve de
substituir a mãe que morreu de parto do nono filho. Anna não era a mais velha,
tinha três irmãos nascidos antes dela. Mas era a rapariga mais velha e teve de
ser ela a tomar conta da família. Trabalho sem fim, tanto em casa, como na
agricultura, ao mesmo tempo que frequentava a escola. Muitas vezes, o
“agradecimento” do pai e dos três irmãos mais velhos, por ela cozinhar, limpar,
lavar e remendar a roupa, vinha na forma de tabefes, por ela se esquecer de
algo, ou não o ter feito em condições. Só podia ir para a escola, depois de ter
tratado dos irmãos mais novos, feito o pequeno-almoço para toda a família e
arrumado a cozinha. Chegava sempre atrasada às aulas. O professor era
felizmente compreensivo. O padre não! Chegou também a bater-lhe, por chegar
atrasada à missa, ou apenas por trazer o missal errado (de notar que toda a
gente, na aldeia, sabia que a miúda substituía a mãe).
Quando conheceu o futuro marido, o pai não a queria
deixar casar, pois ela fazia-lhe falta. Mas uma vizinha lá o convenceu a deixar
a moça viver a sua vida. Que aliás não se tornou mais fácil, pelo menos, nos
primeiros anos. O marido era um lavrador tão pobre como ela. Além disso,
casaram em 1939, pouco antes de se iniciar a 2ª Guerra Mundial, e ele foi
alistado. Anna ficou sozinha com dois tios e uma tia do marido, já velhos, e a
sogra. Tratava sozinha de tudo: da casa, das terras e dos velhos. Além disso, a
sogra era-lhe muito hostil.
A vida só começou a melhorar, depois de a guerra
acabar e o marido recuperar dos ferimentos. Os velhos foram morrendo. Anna
tinha, assim, apenas a sua própria família e, embora continuasse a ter muito
trabalho, já se considerava privilegiada. Os últimos dez anos da sua vida, quando
já não tinha os filhos a seu cargo, não foram, porém, muito agradáveis. Anna
estava frequentemente doente, devido às agruras que experimentara na infância e
na juventude, e chegava a passar mais tempo no hospital, do que em casa.
Sofria, principalmente, de asma.
No início dos anos 1980, uma das filhas convenceu-a a
escrever a sua história. De notar que Anna Wimschneider nunca se serve de um
tom queixoso, ou revoltado. Limita-se aos factos, descritos com grande lucidez.
Uma editora dispôs-se a rever e a corrigir o manuscrito (Anna estava longe de ser uma escritora), publicando-o em 1984. Já
se venderam, na Alemanha, dois milhões de exemplares! E foi realizado um filme
em 1988 (a capa representa uma das cenas). A autora morreu em 1993.
Este livro é testemunho de uma vida que, pelo menos
nas nossas latitudes, já não existe, nem se consegue imaginar. Um livro que também
nos mostra como as pessoas descarregam as suas frustrações e os seus ódios nos
outros, tendo, por alvo preferido (porque mais fácil), as crianças - de notar que
a autora não o denuncia, a conclusão é minha. Um livro que tornou famosa uma
mulher simples e nos mostra que as editoras deviam estar atentas a relatos deste tipo. Um livro que li de um fôlego.
A autora Anna Wimschneider, imagem da Süddeutsche Zeitung |
Manuscrito original de Anna Wimschneider, na posse da BayerischeStaatsbibliothek (Biblioteca do Estado da Baviera) |
Obrigada pela indicação, fiquei curiosa para assistir o filme, encontrei no YouTube sob o título Leche de otono.
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