Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

21 de junho de 2020

Covid-19 nos matadouros alemães

O mundo atual pode ser caracterizado, entre outras coisas, pelo consumo desenfreado de carne. Nunca se comeu tanta carne como hoje em dia. Dir-me-ão que é bom praticamente toda a gente ter acesso ao seu bife e ao seu assado, já que a carne se tornou barata.

Por acaso, não é bom. Relacionamos o problema da fome com a falta de carne, mas, na verdade, pode-se viver muito bem, e até mais saudável, com pouca carne. Tenham calma, não comecem já a limpar e a carregar as armas! Não sou extremista, não acho que nos devíamos tornar todos vegetarianos, apenas que devíamos consumir menos carne. Esta tornou-se tão barata, que perdeu o seu valor, deita-se fora como se de cascas de batatas se tratasse. Um terço da carne produzida industrialmente vai para o lixo. Se prescindíssemos de um outro terço, ninguém morria de fome, talvez até fôssemos mais saudáveis, deitando por terra o argumento de que é forçoso manter este tipo de indústria, a fim de alimentar a população mundial.

Dizer que a produção industrial de carne dá cabo do planeta e da nossa saúde não é uma invenção. Claro que não estou apenas a falar do gás metano. Todos sabemos, por exemplo, que as gigantescas plantações de soja são um desastre ecológico. Ao contrário do que se diz (normalmente, os consumidores de grandes doses de carne), a responsabilidade não é dos vegetarianos e dos vegans. 70% a 80% da soja produzida serve de ração para animais que engordam e vegetam em espaços minúsculos, que se mutilam uns aos outros por puro stress e que não fazem ideia do que é a luz do sol.

Mas estou a fugir ao tema. Não queria falar de animais e, sim, de pessoas. Humanos que adoecem de Covid-19 por causa das suas condições de habitação e de trabalho nos matadouros alemães. Muitos desses trabalhadores são oriundos da Europa de Leste, recebem ordenados míseros e vivem em condições de pouca higiene, quase tão apertados como os animais que esventram e esquartejam todos os dias. Isto tudo, para que a carne chegue barata aos supermercados, coisa que em nada contribui para diminuir a fome no mundo, nem sequer para melhorar a qualidade de vida seja de quem for.

A Alemanha está a enfrentar um sério problema de Coronavírus nos seus matadouros. Depois dos primeiros indícios, a coisa está a descontrolar-se, precisamente, na altura em que se tenta recuperar alguma normalidade. Ontem foram testados mais de 600 casos positivos num matadouro de Gütersloh, uma cidade de quase 100.000 habitantes, bem no centro da Alemanha. As restrições regressaram ao concelho: tornaram a fechar-se todas as escolas e creches e há 7.000 pessoas em quarentena. Hoje, nova bomba: num matadouro da Baviera (pertencente à mesma empresa), foram, até agora, detetados 110 casos.

Quando, há algumas semanas, começaram a surgir os primeiros problemas, houve uma tentativa de início de uma discussão sobre as condições de trabalho desta gente e o nosso consumo de carne (admita-se, ou não, há uma ligação entre os dois assuntos). Essa discussão, porém, logo desapareceu, tão poderoso é o lobby da carne, um negócio de milhões, construído sobre a falta de respeito pela vida no nosso planeta. Agora, não deve haver modo de fugir a essa discussão.

É triste que tenham de surgir desgraças, a fim de que certos temas sejam finalmente abordados. Temos de desenvolver uma nova cultura da alimentação, começando pelas crianças, uma cultura que nos leve a dar mais valor ao que temos no prato. Um bife, ou uma febra, não é a mesma coisa que um pedaço de cartão. Um animal teve de viver em condições indignas, de sofrimento permanente, a fim de ser morto e esquartejado por pessoas a trabalhar e a viver em condições sub-humanas (para não falar nos estragos ambientais). E eu pergunto: na tentativa de modificar este estado de coisas, não seremos capazes de prescindir de carne todos os dias, de comer um bife de 200g em vez de 400g, ou de acabar com orgias de carnes em churrascos? Serão estes sacrifícios assim tão gigantescos, se pensarmos no que está em causa?

Para mim, não. Há muito que reduzi o meu consumo de carne para menos de metade (e assim se relativiza o seu preço). Podem dizer-me que não adianta nada, que sou uma sonhadora. Eu respondo com John Lennon:

You may say I’m a dreamer

But I’m not the only one

 Quantos mais formos, mais podemos modificar.

 

Nota: os artigos citados são em alemão, a tradução é de minha autoria. Texto originalmente publicado aqui.