Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

17 de maio de 2011

"Ainda o apanhamos!"

As últimas linhas de Os Maias, de Eça de Queirós:

"Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
- Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos, assentámos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
-Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia."

E, agora, uma história, a propósito destas linhas:

Eu tinha 13 ou 14 anos, frequentava o 8º ou 9º ano do liceu. A professora de Educação Visual disse-nos que desenhássemos uma cena de um livro que tivéssemos lido e gostado. Eu já não sei se tinha lido Os Maias completo, ou só partes. Não era propriamente leitura para a minha idade, ainda deparava com as chamadas "partes chatas". De qualquer maneira, fiquei fascinada com a última página, aquela maneira de acabar um romance, dois homens a correr atrás de uma tipóia, a gritar: "Ainda o apanhámos!"

De certeza que mais ninguém teria aquela ideia! Uma boa maneira de impressionar a stôra, ainda nem estávamos na altura da leitura obrigatória de Os Maias, salvo erro, no 11º ano. Pus-me a desenhar o Carlos da Maia e o João da Ega a correr atrás da carruagem. Num balão, a sair das suas bocas, o grito: "Ainda o apanhamos".

Deu-me bom trabalho, nunca tive grande jeito para o desenho. Mas fiquei satisfeita com o resultado e fui mostrá-lo orgulhosa à stôra.

A stôra não entendeu nada daquilo. Olhou-me como se eu não fosse boa da cabeça. Senti-me envergonhada, será que tinha feito um disparate? E perguntei-me: "Uma professora de liceu não conhecerá Os Maias?"

Ela perguntou-me o que significava aquilo e eu expliquei-lhe. Olhou-me ainda mais desconfiada do que da primeira vez. Fiquei com a sensação de que ela pensava que eu estava a inventar. Devolveu-me o desenho, desdenhosa (estaria despeitada, por eu saber mais do que ela?), lançando um seco: "Está bem."

Tenho pena de já não ter esse desenho. E de já não saber como se chamava a stôra, para desancar nela, agora, aqui. Forte e feio!

(Um agradecimento à Teresa, que me inspirou a escrita deste post).

17 comentários:

  1. No tempo de escola da stora não era obrigatório ler os Maias...

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  2. Não sei se estás agora a ser irónico, ou não :P

    Mas, mesmo que ela não tivesse lido o livro, eu expliquei-lhe de que se tratava. Não foi uma boa atitude dela, fazer-me sentir como se tivesse desenhado o maior disparate do mundo.

    Nunca tive jeito para o desenho, mas tive um professor de E. Visual no ciclo que me dizia que, apesar disso, eu tinha boas ideias, era muito criativa. Eu adorava as aulas com ele. É tão fácil fazer uma criança feliz...

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  3. Só não gostei desse negócio de stôr. Aluno que me queira ver de mau humor, trate-me por stôr! Até já comecei uma crónica sobre o assunto... :)

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  4. Conheço "doutores" que só têm o título porque o seu conhecimento deixa muito a desejar. Esta é a razão principal para eu desdenhar dos títulos exibidos a torto e a direito, legitimamente ou não. Doutores são os médicos, para mim, os outros são senhores e senhoras.

    Abraço do Zé, que continua a lembrar-se dos Maias, afinal está por Sintra.

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  5. Talvez veja uma cadelinha escocesa, ao dobrar de uma esquina... ;)

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  6. Eu até acho que doutores são os doutorados, mas, enfim, isso não é o mais importante.

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  7. Em Portugal, abusa-se do tratamento de doutor, sim.

    Nas escolas e nos liceus ainda se tratam assim os professores? (É que eu ando mesmo desactualizada, nesse aspecto).

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  8. Deve imaginar o prazer que foi ler este post, Cristina.
    Um dia destes ainda conto como foi o meu primeiro encontro com este livro da nossa eterna paixão.
    Um beijinho.

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  9. Permita-me a correcção: eles não correm atrás de uma tpóia, correm atrás do americano. :)

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  10. O Eça usa várias expressões: "americano", "break", tipóia... Haverá diferenças entre eles, mas não estou a par. Presumo, no entanto, que se trate de tipos de, digamos, carruagens, os táxis daquele tempo.

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  11. Julgo que o americano era um transporte colectivo, veja o que encontrei na página da Carris:

    http://www.carris.pt/pt/historia/

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  12. Muito obrigada. Nunca tinha ligado o termo a um transporte colectivo. Sem dúvida, interessante, dá uma outra visão da cena. Aliás, penso não ser a única de Os Maias em que se faz alusão ao "americano".

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  13. Tanto quanto me lembro, a cena final é a única em que o americano é referido.
    Eu tinha uma vaga ideia de que era um transporte colectivo, adquirida nem sei onde, talvez num dos livros Lisboa Desaparecida, de Marina Tavares Dias.
    Mas só ontem confirmei, graças ao nosso grande amigo Google e à mágica combinação de palavrinhas na pesquisa: "americano, transporte, lisboa".

    Já os breaks, tipóias, broughams, faetontes, etc., creio serem carruagens pequenas, umas abertas, outras fechadas (não sei quais). As tipóias são as que encontramos normalmente referidas como os táxis da época - não se lembra.

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  14. (...) no Primo Ba´sílio, de Luísa tomar uma tipóia para ir ter ao Paraíso?

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  15. Não me lembro, Teresa. Acho que li "O Primo Basílio" uma única vez e já foi há uns bons anos...

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  16. O prometido é devido:
    http://exiladonomundo.blogspot.com/2011/07/stor.html

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