Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

14 de novembro de 2020

Siddhartha

 


Não se põe em causa a qualidade literária e a beleza deste livro. Trata-se de um clássico, escrito por um dos autores mais conhecidos no mundo. Quem nunca ouviu falar de Hermann Hesse? E quem não sabe que Hermann Hesse ganhou o Prémio Nobel? Limito-me, por isso, a algumas reflexões que o conteúdo me suscitou.

Hermann Hesse era, sobretudo, um pensador, na incessante procura do sentido da vida e do significado de felicidade. Não encontrando respostas satisfatórias na nossa civilização ocidental, virou-se para a cultura indiana e os valores budistas. Também a sua personagem Siddhartha, um indiano, começa cedo essa procura, juntando-se, na companhia de um amigo, aos seguidores de Buda. Chega a conhecer pessoalmente o próprio mestre e vive, durante sete anos, segundo os seus preceitos.

Siddhartha aprende a dominar o desejo, a dor, a fome e a sede; fica imune a sentimentos e emoções. É esse o sinónimo de felicidade? Não necessitar de nada e não se deixar atingir por nada? Siddharhta acha que não. A resposta não pode estar no ignorar do nosso próprio corpo, em anular aquilo que somos. Por isso, Siddhartha deixa o grupo à volta de Buda, separando-se igualmente do seu grande amigo, e continua a sua busca.

Chegado a uma cidade, dá-se uma viragem inesperada na sua vida. Torna-se o homem de confiança de um comerciante rico, graças à sua inteligência e à sua disciplina. Conhece igualmente o prazer carnal, ao iniciar uma relação com uma concubina, na verdade, uma prostituta de luxo. Esta é, para mim, uma fraqueza desta obra-prima da literatura. Embora Hermann Hesse conceda a Siddhartha capacidade para admirar e respeitar a sua amante, ela mais não é do que uma conhecida fantasia masculina: uma mulher afável e inteligente, que ensina a um homem inexperiente tudo o que há a ensinar sobre sexo, não exigindo qualquer compromisso da parte dele. O texto não é muito claro quanto à possibilidade de ela continuar a servir outros clientes, mas depreende-se que sim, já que Siddhartha não sente qualquer tipo de responsabilidade em relação a ela.

Ao fim de sete anos, porém, Siddhartha sente-se desiludido com a sua nova vida. O zelo que ele põe em tudo quanto faz torna-se exagerado, ao ponto de ele se ir tornando um tiranete, exasperando os clientes e parceiros de negócios do seu patrão. A insatisfação de Siddhartha leva-o a querer mais e mais, chegando à conclusão que também não é o luxo que dá sentido à vida. Resolve então deixar o emprego, a cidade e, por muito que lhe custe, a concubina, que aprendeu a amar. E ela, continuando a corresponder à fantasia masculina, nem lhe revela que está grávida dele.

Siddhartha acaba por encontrar satisfação a trabalhar como barqueiro, transportando pessoas de uma margem para a outra de um rio (o qual se torna na metáfora da vida), observando a Natureza e ouvindo as histórias de quem transporta. Constata não precisar de mais nada para ser feliz. Passado uns anos (e sem me querer alargar muito sobre o enredo), toma conta do filho adolescente, depois da morte da mãe. Porém, habituado à vida luxuosa na cidade, o jovem é incapaz de se adaptar àquela vida simples, o que entristece o pai. Por outro lado, Siddhartha nada faz para se aproximar do próprio filho, acha que o rapaz tem de ver, por ele, as vantagens que o seu tipo de vida traz, em relação à vida citadina. O jovem, amargurado e triste, acaba por regressar à cidade.

Penso que Siddhartha, apesar de toda a sua sabedoria, falha como pai. O rapaz só o conhece quase adolescente (ou seja, o pai é um estranho para ele); vê-se, de repente, a ter de adotar um estilo de vida que não conhece e, para piorar tudo, o pai pouco fala, passa a vida, ou a exercer a sua profissão de barqueiro, ou muito sossegado, a meditar. Recordemos que o filho ainda não é adulto e acabou de perder a mãe, que o criou sozinha. Quando parte, a fim de regressar à cidade, Siddhartha conforma-se: enfim, o rapaz lá fez a sua escolha. Depois de nada ter feito pelo filho, acho esta atitude de um egoísmo atroz, não tendo nada a ver com a condição de pai.

Siddhartha mostra-nos que uma vida sem luxos pode ser (e talvez seja sempre) mais satisfatória. O equilíbrio e a felicidade devem ser encontrados dentro de nós. Por outro lado, tal posição parece incompatível com o assumir de compromissos, com uma vida familiar, que implica assumir responsabilidade por outros que dependem de nós. A meu ver, essa a grande falha de Siddhartha.

2 comentários:

Alfredo disse...

Gostei muito da sua entrada, muito obrigado pelo seu tempo

Cristina Torrão disse...

De nada. Obrigada eu.