Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.
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11 de novembro de 2014
Excerto (5)
A pesada régua de castanho sobe e desce furiosa, o moço contorce-se e grita, tenta fugir com a mão e então recebe o resto do castigo no corpo, nas costas, no rabo, até na cabeça - Bem feito, que não paras quieto!, justificar-se-á o mestre, tudo isto debaixo dos meios sorrisos dos meninos prendados, que, no entanto, não ousam rir abertamente, receosos de represálias: - Lá fora, tu comes-as!
Para os Escabelados, pouco importa o motivo do castigo, pois todos os dias haverá outros, pode ser a falta de equipamento, que não têm botas, nem bata, nem livros e cadernos, apenas pedra, como chamamos ao rectângulo de ardósia onde escrevemos com o ponteiro a tabuada e fazemos as contas, apagando com cuspo e manga de camisa, pode também ser a ignorância: sempre que o mestre-escola precisar de exercitar mão ou régua bastará pedir-lhes que papagueiem a tabuada do nove ou as preposições simples ou os apeadeiros do ramal de Tomar...
7 de outubro de 2014
Excerto (4)
Os anos passaram, uns piores do que os outros, outros menos maus do que o costume, sempre ruins, sempre numa luta pela sobrevivência tão dura que hoje a não conseguimos sequer imaginar.
(...)
- Ah, se eu matasse só por ser pobre...
Prontamente outros discordam, perguntando o que é que andamos a fazer neste mundo de sofrimentos. Retorquia um, talvez mais beato, que aos suicidas os espera o inferno. Inferno? Inferno é esta vida. Depois morremos e acabou-se. Como é que pode haver castigo depois da morte quando tão castigados somos já em vida?
Estavam entre homens de confiança, a conversa corria bem regada, as línguas soltavam-se com mais facilidade; confiavam em que ninguém do regime escutaria às portas das adegas pela calada da noite - afinal, quem quer saber o que os pobres pensam? - e, se acaso alguém os ouvisse dizendo algo contra o governo, daria o desconto, sabendo que não eram eles a dizer barbaridades: era, como já se disse, o vinho que falava pelas suas bocas.
26 de setembro de 2014
Entre Cós e Alpedriz
Agradeço ao José Cipriano Catarino ter-me proporcionado a leitura deste livro, só disponível em ebook na LeYa Online, em edição de autor. Infelizmente, digo eu, porque é um excelente romance, honesto e realista, sobre a vida numa freguesia do concelho de Alcobaça, ao longo do século XX. Criando a personagem da Joaquina, mulher que nasceu no início desse século, morrendo já com 104 anos, José Cipriano Catarino põe-nos em contacto com o Portugal aldeão.
Mas não com um Portugal idealizado, bucólico, onde ainda não chegou a civilização com os seus barulhos e setresses, vivendo em comunhão com a Natureza. Trata-se de um Portugal onde existe «o fedor da "mijaceira" escorrendo dos currais dos porcos, as nuvens de moscas envolvendo animais e pessoas, as melgas, a que chamamos belfos, o cheiro a ranço das candeias, a alimentação pobre e mal confeccionada»; o Portugal onde se lava «a cabeça dos cachopos, catando cuidadosamente lêndeas»; o Portugal onde «para pobre dia de festa é dia de bebedeira de caixão à cova»; o Portugal da «luta pela sobrevivência tão dura que hoje a não conseguimos sequer imaginar»; o Portugal onde «serão precisas gerações para os homens da terra serem vistos em público ao lado das respectivas mulheres»; o Portugal da «solidão desesperadora» de uma mulher, apesar de ter «mudado de uma cidade onde já ninguém a conhecia para uma aldeia onde toda a gente a conhecia bem de mais» e que acaba por se atirar a um poço; o Portugal onde se exercia violência extrema na escola primária; o Portugal de «crianças semi-nuas, vestindo apenas uma camisola interior que já não lhes tapa a barriga inchada de subnutrição, descalças sobre geadas de Fevereiro, arrancando lâminas de gelo da superfície de poças de água, o ranho a escorrer pelas faces»; o Portugal onde morrem jovens por se estamparem contra um pinheiro, perdidos de bêbados, de regresso de uma borga.
Depois de lermos este belo livro, perguntamo-nos porque não foi aproveitado por uma editora conhecida, com bom poder de distribuição e de marketing.
Enfim, também isto é Portugal. Entre Cós e Alpedriz será apenas lido por meia dúzia de felizardos, onde me incluo, compreendendo bem as palavras com que o autor encerra a sua obra:
«A quem interessará ela [esta história], sem um escândalo para o editor, sem uma alegria para os críticos, sem metáforas para o leitor decifrar, sentindo-se, talvez, inteligente por ter encontrado o sentido oculto das coisas, sem ideologias a legitimá-la nem moral a extrair? E, afinal, que importância tem isso? Sobre as casas em ruínas edificarão outras, entre Cós e Alpedriz, onde há muito se não ouve azurrar nenhum candidato a juíz, continuará a viver gente talvez feliz, geração após geração, misturando vidas e histórias que o vento dispersará e reunirá numa só, tal como o coveiro, passados os sete anos regulamentares, amontoa numa só campa os ossos dos esqueletos que outrora se moveram e falaram dando corpo e alma a vidas perdidas no tempo».
Lembro-me de certa vez, sendo eu adolescente, o meu pai ter ajudado a reorganizar o cemitério da sua aldeia transmontana. Abriram-se covas e tiraram-se de lá os esqueletos, algumas caveiras ainda com dentes e cabelo, a fim de arranjar lugar para novas campas. Aquilo impressionou-me, pois sempre ouvira dizer que as campas serviam para eternizar a lembrança dos nossos antepassados, que continuariam a ser lembrados e honrados, eternamente, pelos parentes, a cada visita ao cemitério. Ao fazer tal referência, o meu pai despachou-me: «ora, algumas dessas pessoas já tinham sido enterradas há mais de cem anos». E eu perguntei-me se era essa a ideia que ele tinha de eternidade: cem anos!
Aconselho a todos os leitores deste blogue que tiverem a possibilidade de comprar um ebook (sigam o link) a fazer parte do grupo dos felizardos leitores deste livro!
23 de setembro de 2014
Excerto (3)
O passeio de carro foi breve, interrompido mais cedo do que o previsto, que a Joaquina enjoou e não parava de vomitar a cada solavanco da estrada esburacada, a cada curva, a cada travagem brusca para não atropelar os garotos que corriam à frente do automóvel, atraídos pela buzina que, no entanto, os alertava para os perigos que corriam, a cada guinada para evitar a vaca ou a cabra que atravessava indolentemente a estrada, ou a velha embasbacada, paralisada pelo medo do engenho diabólico que corria direito a ela, envolto em fumarolas e trovões como o próprio Lúcifer.
(...)
Os primos partiram ainda nesse mesmo dia, ansiosos por deixar para trás o fedor da "mijaceira" escorrendo dos currais dos porcos, as nuvens de moscas envolvendo animais e pessoas, as melgas, a que chamamos belfos, o cheiro a ranço das candeias, a alimentação pobre e mal confeccionada, os olhares basbaques com que fitavam Simão, comentando alta voz: - Que pena ser pretinho, um homem tão perfeito.
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