Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

17 de outubro de 2022

Moby Dick

 


Não é novidade que Mobi Dick é uma obra gigantesca em todos os sentidos. No entanto, é a negação de muito do que se considera essencial para um bom romance. Li uma edição alemã (excelente tradução), contendo uma análise (no final) de Daniel Göske, Professor de Teoria da Literatura e de Literatura Norte-Americana na Universidade de Kassel, referindo vários aspetos que eu já havia considerado, durante a leitura. Alguns exemplos: a personagem de Queequeg, importantíssima no início, quase desaparece, assim que embarca no Pequod, junto com Ismael (o narrador); a partir da maneira como essas primeiras páginas estão construídas, somos também levados a pensar estarmos perante um romance de aventuras, mas Melville cedo nos confronta com descrições técnicas infindáveis, mais adequadas a obras de não-ficção; o final abrupto não combina igualmente com as centenas de páginas anteriores a explicarem pormenores. Terá Melville modificado o seu objetivo inicial, à medida que escrevia?

No meio de todo esse mar de letras, frases, parágrafos e capítulos, é, porém, admirável a quantidade de referências bíblicas e literárias, assim como de figuras de estilo e a combinação de várias linguagens específicas, como a dos baleeiros, da navegação, bem como a religiosa, a científica e a lírica. A isto se juntam cenas de antologia sobre a relação dos humanos com a Natureza, dos humanos entre si e aquilo que nos move. A própria sobrevivência? Apenas lucro? O desejo de controlar a Natureza, ao darmos conta da nossa pequenez? Razões de sobra para justificar o mito em que se tornou esta obra, talvez a mais importante da Literatura Norte-americana.

Herman Melville descreve como ninguém a caça à baleia. E conhecia ao pormenor a anatomia destes seres (descrevendo-a em muitas dessas páginas infindáveis). Porém, à luz dos conhecimentos de hoje, notamos ignorância em muitos aspetos. Em meados do século XIX, as técnicas de mergulho eram ainda muito primitivas, exaustivas e perigosas. Resumiam-se, por isso, a raríssimas tentativas, estávamos longe do mergulho “em série”, para não falar da existência de máquinas fotográficas e câmaras de filmagem. Para Melville, a vida abaixo da superfície das águas é um perfeito mistério. Muitas vezes, ele se pergunta para onde mergulham as baleias, o que fazem lá em baixo, em que mundo vivem. E ignorava igualmente o seu sistema fascinante de comunicação através de sons, que se sabe hoje ser complexo e permanecendo, em grande parte, misterioso.

Justiça seja feita ao autor: ele confere majestade e dignidade às baleias, transmitindo-nos a contradição entre a nossa admiração pelos animais e o desejo de os matar. Mas acaba por optar pela explicação mais fácil o que, confesso, me desiludiu: as baleias são animais sanguinários, capazes de afundar uma embarcação num ápice, é necessário aniquilá-las, a fim de que os homens não corram perigo.

Ora, qualquer animal que pese algumas toneladas é perigoso para os humanos. Principalmente, quando vê a sua vida ameaçada por esses mesmos humanos. E, por mais que admire esta obra, dou comigo a perguntar-me em que medida Melville aceitaria uma convivência pacífica estre baleias e humanos.

No seguinte vídeo, rodado através de um drone, na Argentina, é incrível a maneira delicada como a baleia toca no frágil caiaque da formiga humana. Bastava-lhe um movimento descuidado com a sua barbatana para dar cabo do sapiens. Mas não o faz. E nada por debaixo dele sem o derrubar. Denota uma delicadeza e um cálculo impressionantes.

Muito gostaria de saber o que Melville teria a dizer sobre esta cena. Será que a conseguia imaginar?

 

https://pt.euronews.com/2021/09/02/baleias-brincalhonas

 

3 de outubro de 2022

The Mothers

 


Fiquei curiosa quanto a este livro, depois de ler uma recensão numa publicação alemã. Não existe versão em português, apesar de haver um livro da mesma autora traduzido na nossa língua por Tânia Ganho: A Outra Metade. Brit Bennet é-nos apresentada como uma das grandes novas vozes da literatura americana, herdeira de James Baldwin e Toni Morrison. Estou tentada a concordar, embora confesse nunca ter lido o autor e a autora que servem de referência. Mas gostei muito de The Mothers.

O cenário é a Califórnia contemporânea, a personagem principal chama-se Nadia Turner, uma jovem bonita, de dezassete anos. Nadia sofre com o suicídio recente da mãe, mas está decidida a romper a tradição das mulheres da sua condição: negra, da classe média-baixa. Não quer casar cedo e, sendo boa aluna, batalha para conseguir uma bolsa, a fim de tirar um curso universitário.

Nadia atinge o seu objetivo, mas sacrifica algo na sua vida. E não se trata apenas de deixar o pai sozinho, ao ter de partir para longe (o que também lhe custa). Ela guarda um segredo, algo que aconteceu ao envolver-se com o filho do pastor da igreja presbiteriana local. O curto caso amoroso, que os dois decidem calar e esquecer, acaba por ter consequências que marcarão a sua vida nos dez anos seguintes.

Brit Bennet começa de mansinho, mas o enredo adensa-se, à medida que avança. A vida das três personagens que acompanhamos desde a adolescência até ao início da vida adulta complica-se cada vez mais. A autora aborda de forma subtil assuntos como o racismo encoberto pela normalidade, mostrando o vazio de vidas destinadas a serem de 2ª classe. Mas há também outros dilemas, como o eterno problema do aborto, aqui, em confronto com a situação de quem quer engravidar sem o conseguir. E também tudo aquilo de que prescindimos, numa certa fase da vida, em detrimento de objetivos que consideramos mais altos.

Pode-se realmente ser mais feliz com um diploma universitário na mão? Compensa deixar o lar para se ir conhecer mundo e alargar as nossas experiências?

Um livro que vale a pena ler. E A Outra Metade parece ser igualmente interessante.