Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de fevereiro de 2020

Os Crimes de Hamburgo




posts que trazem consequências e contactos inesperados. Primeiro, falei nos “Portugal-Krimis”, ou seja, policiais escritos por alemães, mas situados em Portugal. Depois, fui contactada por um dos autores, o que me despertou a curiosidade. Acabei por ler um livro dele, do qual falei aqui. Mas a história continuou: fui, por sua vez, contactada por um jovem autor português, que escreveu um policial passado na Alemanha. Os Crimes de Hamburgo é o primeiro romance de Francisco Carvalho, editado em Outubro passado pela Coolbooks, inspirado nos dois anos que o autor viveu na cidade alemã.

É um policial muito bem engendrado, cheio de personagens interessantes, com suspense e bem resolvido. Tem outra mais-valia: o tema é actual. Em Hamburgo, começam a ser assassinados refugiados oriundos de países muçulmanos. Francisco Carvalho revela sensibilidade e conhecimento do assunto. Dá-nos a conhecer os centros onde os refugiados são aquartelados, enquanto esperam que a sua situação se regularize, e as dificuldades com que são confrontados. De assinalar também a maneira como consegue transmitir a atmosfera da cidade do Norte da Alemanha, já com ares de Escandinávia.

Trata-se de um bom primeiro romance. E, como Francisco Carvalho, segundo nos informa a editora, «tem mais histórias para contar», penso que compensará ficarmos atentos a este nome.


10 de fevereiro de 2020

Emigrantes




Apesar de, nos últimos anos, Portugal se ter igualmente tornado num país de imigrantes, é, sobretudo, um país de emigrantes. Não se compreende, por isso, que a temática seja rara na nossa literatura, comparado com a importância e o impacto do fenómeno no nosso país. Assim, o resultado não é animador: quando se fala de emigração, das duas, uma: ou é para enfatizar a capacidade que os portugueses têm para se adaptarem aos países de acolhimento, ou é para criticar a soberba dos emigrantes de visita à terra. Não nego a pertinência destes dois aspetos, mas a emigração é muito mais do que isso. A emigração é sobretudo um corte radical na vida de pessoas e suas famílias, com consequências que insistimos em ignorar. Marcamos irremediavelmente a nossa vida, no momento em que emigramos, e nada é como imaginamos, nem sequer como planeámos.

Estes motivos chegariam, por si só, para sustentar a importância de um livro como este. Adicionemos-lhe agora a qualidade de uma escrita sensível, sem se tornar kitsch, ou sentimentaloide, de Ferreira de Castro, ao descrever a fissura interior de quem deixa a sua terra-natal, para se aventurar num outro mundo, aliada à ingenuidade de quem espera encontrar um paraíso que não existe. Manuel da Bouça adapta-se, sim, adapta-se a tudo. Mas… a que preço? A sua desilusão é palpável. E não só no Brasil longínquo, também o regresso à pátria se revela completamente diferente daquilo que imaginara.

Este é, por isso, um livro importantíssimo, devia até ser leitura, não digo obrigatória, mas recomendada, no ensino oficial. Aliás, qualquer obra sobre este tema, a que lhe seja atribuída a qualidade necessária, devia ser lida e tratada nas escolas portuguesas. E, não havendo tempo para um romance, podia optar-se por um conto, pelo menos um, durante a escolaridade obrigatória.

Tenho apenas uma falha a apontar a este livro de Ferreira de Castro: as mulheres surgem quase como meras figurantes. Antes que me acusem de anacronismo, de que tenho de ver o contexto em que foi escrito o romance, etc. e tal (uma acusação que está tanto na moda), acrescento que compreendo perfeitamente que Ferreira de Castro assim tenha procedido, pois era um homem da sua época (o romance foi publicado pela primeira vez em 1928). Além disso, a personagem principal é masculina e o autor centra-se (e muito bem) na sua perspetiva. Não será, no entanto, descabido que se chame a atenção para a imagem estereotipada de mulheres e crianças, bem presente nesta frase:

«A sua alegria desvanecera-se e agora, volvido de novo para o cais, ao ver os últimos emigrantes desembarcados, que caminhavam, trôpegos e miseráveis, entre as mulheres e os filhos, apiedava-se deles» (p. 219).

Embora o masculino plural sirva para os dois géneros, temos a sensação de que a frase apelida de emigrantes apenas os homens, reduzindo as mulheres e as crianças a simples figurantes.

Porém, repito: marca de uma época, que não tira a importância nem o mérito a este excelente romance. Pelo contrário. Ensina-nos que o mundo já foi diferente do que é hoje.

4 de fevereiro de 2020

Os criadores da mulata

Costuma dizer-se que o dinheiro, ou o poder, estragam o carácter. Na verdade, acontece o contrário: o dinheiro, ou o poder, mostram o verdadeiro carácter, aquele que foi recalcado. O adquirir de poder, ou de riqueza, abre novas possibilidades, surge a oportunidade de dar livre curso a desejos e práticas que muitos mantinham secretos.

Penso que se passa algo parecido com a libertação da xenofobia que alguns portugueses têm manifestado. Durante muito tempo, houve a convicção de que não existia racismo em Portugal. E a prova era que, em muitos países europeus, havia partidos de extrema-direita, notoriamente xenófobos, com bons resultados eleitorais, enquanto que, em Portugal, tudo continuava pacato. Confirmava-se: o nosso jardinzinho à beira-mar era um oásis.

O surgimento do partido Chega parece ter soltado a rolha que se mantinha sob pressão. Agora, sim, muitos mostram, sem pruridos, aquilo que lhes ia no interior. A melhor prova de que há racismo é o facto de este novo partido ter passado de 1,29%, nas últimas eleições, para 6,2%, nas últimas sondagens, muito à custa de uma simples frase do seu líder: mandou uma deputada negra regressar à "sua" terra. Ah, mas o homem foi provocado, coitado, a dita senhora deu-lhe cabo da paciência, precisava de uma lição. Enfim, um homem não é de ferro… (Isto faz-me lembrar outras coisas que não digo, para não me desviar do tema).

Quero, no entanto, fazer um parênteses para declarar que não estou a apoiar a proposta de Joacine Katar Moreira de devolver a África peças de arte que se encontram nos museus portugueses. Na verdade, não tenho competência para deliberar sobre esse assunto. Não sou, porém, contra a discussão de tal proposta, escutando vários pontos de vista, pois é algo que ocupa igualmente os governos de outros países europeus. O que eu veementemente condeno é a atitude do líder do partido Chega. Nada, no meu entender, a justifica. Mas o que mais me choca não é o comportamento condenável de um político (infelizmente, não é raro, entre políticos). O que mais me choca é a tal atitude ter ajudado a disparar as intenções de voto no seu partido.

Diz-se que os portugueses criaram a mulata, já em criança ouvia. E já nesse tempo, eu achava que havia algo de muito errado, nessa frase. Como Deus criou o homem (como sabem, o masculino serve para os dois géneros), o português criou a mulata - interessante, aqui, usa-se a forma feminina, embora seja inevitável que o garanhão luso tenha igualmente criado o mulato em proporções idênticas. Não estava mais de acordo com o funcionamento da nossa língua dizer que o português criou o mulato?

Mas ninguém fala no mulato, só na mulata. Porquê? Ora, porque a mulata é uma mulher lindíssima, sensual, que faz ferver o sangue dos homens. Quantos sonhos as mulatas já alimentaram, quantos poemas e canções já lhe foram dedicados… E quantos desses portugueses casaram com as mulatas que idolatravam? Bem, convenhamos que essa perfeição feminina transporta em si os genes negros… Por isso, não misturemos as coisas! A mulata serve para a diversão; casar é com a branca! Embora possa ser uma branca moreninha, assim com um tom de pele próximo do da mulata…

“Os portugueses criaram a mulata” - esta frase, que se diz com orgulho (não fôssemos nós um país de poetas) encerra, em si, um verdadeiro tratado sobre racismo e machismo. Hoje, fico-me pelo racismo, esse, que André Ventura ajudou a libertar. Acho que até lhe devíamos agradecer por, finalmente, nos mostrar a verdade. Espero que contribua para que deixemos de mentir a nós próprios.


Nota: Texto originalmente publicado aqui