Costuma dizer-se que o dinheiro, ou o poder, estragam o carácter. Na verdade, acontece o contrário: o dinheiro, ou o poder, mostram o verdadeiro carácter, aquele que foi recalcado. O adquirir de poder, ou de riqueza, abre novas possibilidades, surge a oportunidade de dar livre curso a desejos e práticas que muitos mantinham secretos.
Penso que se passa algo parecido com a libertação da xenofobia que alguns portugueses têm manifestado. Durante muito tempo, houve a convicção de que não existia racismo em Portugal. E a prova era que, em muitos países europeus, havia partidos de extrema-direita, notoriamente xenófobos, com bons resultados eleitorais, enquanto que, em Portugal, tudo continuava pacato. Confirmava-se: o nosso jardinzinho à beira-mar era um oásis.
O surgimento do partido
Chega parece ter soltado a rolha que se mantinha sob pressão. Agora, sim, muitos mostram, sem pruridos, aquilo que lhes ia no interior. A melhor prova de que há racismo é o facto de este novo partido ter passado de
1,29%, nas últimas eleições, para
6,2%, nas últimas sondagens, muito à custa de uma simples frase do seu líder: mandou uma deputada negra regressar à "sua" terra. Ah, mas o homem foi provocado, coitado, a dita senhora deu-lhe cabo da paciência, precisava de uma lição. Enfim, um homem não é de ferro… (Isto faz-me lembrar outras coisas que não digo, para não me desviar do tema).
Quero, no entanto, fazer um parênteses para declarar que não estou a apoiar a proposta de Joacine Katar Moreira de devolver a África peças de arte que se encontram nos museus portugueses. Na verdade, não tenho competência para deliberar sobre esse assunto. Não sou, porém, contra a discussão de tal proposta, escutando vários pontos de vista, pois é algo que ocupa igualmente os governos de outros países europeus. O que eu veementemente condeno é a atitude do líder do partido Chega. Nada, no meu entender, a justifica. Mas o que mais me choca não é o comportamento condenável de um político (infelizmente, não é raro, entre políticos). O que mais me choca é a tal atitude ter ajudado a disparar as intenções de voto no seu partido.
Diz-se que os portugueses criaram a mulata, já em criança ouvia. E já nesse tempo, eu achava que havia algo de muito errado, nessa frase. Como Deus criou o homem (como sabem, o masculino serve para os dois géneros), o português criou a mulata - interessante, aqui, usa-se a forma feminina, embora seja inevitável que o garanhão luso tenha igualmente criado o mulato em proporções idênticas. Não estava mais de acordo com o funcionamento da nossa língua dizer que o português criou o mulato?
Mas ninguém fala no mulato, só na mulata. Porquê? Ora, porque a mulata é uma mulher lindíssima, sensual, que faz ferver o sangue dos homens. Quantos sonhos as mulatas já alimentaram, quantos poemas e canções já lhe foram dedicados… E quantos desses portugueses casaram com as mulatas que idolatravam? Bem, convenhamos que essa perfeição feminina transporta em si os genes negros… Por isso, não misturemos as coisas! A mulata serve para a diversão; casar é com a branca! Embora possa ser uma branca moreninha, assim com um tom de pele próximo do da mulata…
“Os portugueses criaram a mulata” - esta frase, que se diz com orgulho (não fôssemos nós um país de poetas) encerra, em si, um verdadeiro tratado sobre racismo e machismo. Hoje, fico-me pelo racismo, esse, que André Ventura ajudou a libertar. Acho que até lhe devíamos agradecer por, finalmente, nos mostrar a verdade. Espero que contribua para que deixemos de mentir a nós próprios.
Nota: Texto originalmente publicado
aqui.