Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

10 de fevereiro de 2020

Emigrantes




Apesar de, nos últimos anos, Portugal se ter igualmente tornado num país de imigrantes, é, sobretudo, um país de emigrantes. Não se compreende, por isso, que a temática seja rara na nossa literatura, comparado com a importância e o impacto do fenómeno no nosso país. Assim, o resultado não é animador: quando se fala de emigração, das duas, uma: ou é para enfatizar a capacidade que os portugueses têm para se adaptarem aos países de acolhimento, ou é para criticar a soberba dos emigrantes de visita à terra. Não nego a pertinência destes dois aspetos, mas a emigração é muito mais do que isso. A emigração é sobretudo um corte radical na vida de pessoas e suas famílias, com consequências que insistimos em ignorar. Marcamos irremediavelmente a nossa vida, no momento em que emigramos, e nada é como imaginamos, nem sequer como planeámos.

Estes motivos chegariam, por si só, para sustentar a importância de um livro como este. Adicionemos-lhe agora a qualidade de uma escrita sensível, sem se tornar kitsch, ou sentimentaloide, de Ferreira de Castro, ao descrever a fissura interior de quem deixa a sua terra-natal, para se aventurar num outro mundo, aliada à ingenuidade de quem espera encontrar um paraíso que não existe. Manuel da Bouça adapta-se, sim, adapta-se a tudo. Mas… a que preço? A sua desilusão é palpável. E não só no Brasil longínquo, também o regresso à pátria se revela completamente diferente daquilo que imaginara.

Este é, por isso, um livro importantíssimo, devia até ser leitura, não digo obrigatória, mas recomendada, no ensino oficial. Aliás, qualquer obra sobre este tema, a que lhe seja atribuída a qualidade necessária, devia ser lida e tratada nas escolas portuguesas. E, não havendo tempo para um romance, podia optar-se por um conto, pelo menos um, durante a escolaridade obrigatória.

Tenho apenas uma falha a apontar a este livro de Ferreira de Castro: as mulheres surgem quase como meras figurantes. Antes que me acusem de anacronismo, de que tenho de ver o contexto em que foi escrito o romance, etc. e tal (uma acusação que está tanto na moda), acrescento que compreendo perfeitamente que Ferreira de Castro assim tenha procedido, pois era um homem da sua época (o romance foi publicado pela primeira vez em 1928). Além disso, a personagem principal é masculina e o autor centra-se (e muito bem) na sua perspetiva. Não será, no entanto, descabido que se chame a atenção para a imagem estereotipada de mulheres e crianças, bem presente nesta frase:

«A sua alegria desvanecera-se e agora, volvido de novo para o cais, ao ver os últimos emigrantes desembarcados, que caminhavam, trôpegos e miseráveis, entre as mulheres e os filhos, apiedava-se deles» (p. 219).

Embora o masculino plural sirva para os dois géneros, temos a sensação de que a frase apelida de emigrantes apenas os homens, reduzindo as mulheres e as crianças a simples figurantes.

Porém, repito: marca de uma época, que não tira a importância nem o mérito a este excelente romance. Pelo contrário. Ensina-nos que o mundo já foi diferente do que é hoje.

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