Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

24 de outubro de 2020

Cartas por um Sonho

Este livro, da escritora espanhola Ángeles Doñate, é agradável de ler, mas eu esperava mais dele, já que parte de uma ideia muito interessante e tem como mote uma frase de Saramago, “jamais uma lágrima manchará um email”, (da qual aliás já li outras versões, mas é esta que a autora cita).

Numa pequena localidade espanhola, Sara, a funcionária dos correios, é informada de que será transferida para Madrid, já que não compensa ter uma estação de correios na sua aldeia, num tempo em que quase ninguém escreve cartas. A mudança causa-lhe muitos transtornos, pois cuida sozinha de três filhos em idade escolar e pensa que tudo será muito mais complicado numa cidade grande, desprovida dos seus amigos e do ambiente familiar que ali se vive. Desabafa com Rosa, a sua vizinha idosa, que fica igualmente muito preocupada. Rosa é viúva, nunca teve filhos e Sara, com as suas crianças, são para ela uma verdadeira família. Tem então uma ideia: iniciar uma corrente de cartas, a fim de mostrar à Central, em Madrid, que, naquela aldeia, ainda se escreve muito. Numa carta anónima, explica o problema de Sara, e pede à destinatária que não quebre a corrente. Mas Rosa não resiste em usar aquela carta para resolver igualmente conflitos interiores. Endereça-a a uma amiga de juventude que deixara a aldeia há sessenta anos para nunca mais voltar. Rosa aproveita para dar livre curso a palavras que guardou durante todo aquele tempo dentro de si. A casa onde a amiga vivera, um pouco afastada da aldeia, e que permanecera vazia, está de novo ocupada, desde alguns dias. E, querendo acreditar que a amiga regressou, Rosa envia para lá a carta.

Este seu gesto dá início a uma corrente com consequências inimagináveis, já que os autores das cartas, sempre anónimos, seguem-lhe o exemplo e aproveitam para dar livre curso a palavras que guardam dentro de si, revelando paixões escondidas e sonhos que ficaram por realizar.

Penso que todo este potencial poderia ter sido mais bem aproveitado. Alguns conflitos são resolvidos em estilo cor-de-rosa, que roça a telenovela. Além disso, não me parece que tal corrente, que resulta numa carta de quatro em quatro dias (mais ou menos) resolvesse qualquer problema.

Por outro lado, o livro tem momentos francamente bons e possui o encanto de, além de uma frase de Saramago lhe dar o mote, começar com o poema de Álvaro de Campos: «Todas as cartas de amor são / Ridículas».

 

Nota: li este livro na tradução alemã Der schönste Grund, Briefe zu schreiben.



 

Sem comentários: