Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

16 de fevereiro de 2021

Rapariga, mulher, outra

 


Há pessoas brancas e pessoas negras, certo? Sim, mas… onde se ordenam os outros matizes? Mesmo sem falar daqueles que apelidamos de peles-vermelhas ou amarelos, sem falar de ciganos ou indianos, há toda uma paleta de cores entre o branco e o negro. Há os mestiços de todas as etnias e feitios, há os mulatos e as mulatas e, entre estes, há mulatos escuros, mulatas claras, mulatos e mulatas propriamente ditos (assim cor de café com leite). Há mulatos quase brancos, há mesmo mulatos que não se distinguem dos brancos. E há brancos morenos, bem mais escuros do que os mulatos, incluindo senhoras brancas da socialite que investem muito num bom bronzeado, durante a época balnear. Andam muitas pessoas pela Europa convencidas de que são brancas e têm antecedentes negros, porque houve famílias negras que, com a miscigenação, se tornaram cada vez mais brancas. Até há louras e louros descendentes de negros sem o saberem.

Mas não é só a cor da pele a tornar difícil ordenar as pessoas. Também o sexo. Há mulheres e homens, certo? Sim, mas… há pessoas que não se sentem nem um nem outro. Há mulheres bissexuais e outras que se sentem atraídas apenas por mulheres. Entre estas, há as que não têm dúvida de que são mulheres, mas outras que se sentem homens e gostariam de mudar de sexo. Mas também há as que gostam de se vestir “à homem”, que adotam atitudes masculinas, mas que se sentem bem sem mudar de sexo. E nem todas as mulheres que gostam de se vestir “à homem” e adotar atitudes masculinas são lésbicas. Também há quem não se consiga decidir. Com os homens é igual.

É justo sermos ordenados e julgados pela nossa cor de pele, ou pelas nossas preferências sexuais, que nem nós sabemos explicar, apenas sabemos que nascemos assim? Este livro de Bernardine Evaristo, vencedor do Man Booker Prize 2019, é, desde já, um dos livros da minha vida. Porque nos torna mais humanos e nos ajuda a compreender muitos fenómenos. É impressionante a maneira como Bernardine Evaristo faz desfilar toda uma série de personagens, com as mais diversas formas de vida, sem julgar, nem ser tendenciosa.

O livro centra-se mais na mulher negra, a última da hierarquia social, aquela que só vem depois de todos os homens e todas as outras mulheres. Mas não pensemos que a autora faz o seu elogio,  apresentando estas mulheres como se não tivessem mácula, ou fossem apenas vítimas da sociedade branca e machista. Bernardine Evaristo mostra-nos igualmente como uma lésbica narcisista pode manipular e subjugar a sua companheira ao melhor estilo machista (independentemente da sua cor). E também nos mostra como os negros podem ser racistas. Não se trata igualmente de um livro de ódio aos homens, mostra-nos inclusive como um homem pode ser a salvação na vida de uma mulher, como lhe pode dar autoestima e proporcionar-lhe uma vida decente, de forma desinteressada e incondicional, depois de essa mulher ter sido discriminada e humilhada no seio da própria família.

Retratos de mulheres fortes e fracas, de lésbicas, bissexuais, transsexuais, heterossexuais e outras que tais, de mulheres negras e brancas, mulatas, mestiças, de brancas, uma delas loura e racista, que não fazem ideia do sangue negro que lhes corre nas veias.

Este livro é um tesouro. É assim que o vejo. Naturalmente, recomendo-o. Abram as vossas mentes! A vida é colorida, não a preto e branco. Somos todas e todos humanos.