Nesta minha estadia alargada em Portugal e apenas com acesso a oito canais televisivos (que são só seis, pois dois estão de férias), quase me limito aos da RTP. Acontece que a RTP Memória passa, nesta altura, a série “Walker, o Ranger do Texas”, não pertencente às minhas preferências, mas de algum agrado do meu marido (o meu sogro era fanático). E como é de minha opinião que podemos aprender com tudo, mesmo com coisas de que não gostamos, ou com as quais não concordamos, tenho visto alguns episódios. Pensei que me pudessem servir de reflexão. E serviram mesmo.
“Walker, o Ranger do Texas” é baseada num velho pressuposto: há alguém que tem sempre razão. A série assenta numa personagem de moral indiscutível, inteligência a toda a prova, forma física infalível e técnicas de combate invencíveis. Para ser ainda mais politicamente correcta, esta personagem reconhece as qualidades das artes marciais, é sensível aos ensinamentos cherokee e muito amiga dos negros (conquanto estes não lhe contestem a supremacia e estejam dispostos a desempenhar o papel do "banana", quando dá jeito). Concluindo: estamos perante um homem que sabe sempre tudo e age sempre de forma correcta, de acordo com os princípios que lhe foram ensinados na infância e na juventude, por pessoas (entenda-se, homens) igualmente sem defeitos e de uma moral ímpia.
Homens assim não existem. O Walker é tão fictício, que podia ser representado por uma figura de desenhos animados. Esta série está ao nível de “Uma Casa na Pradaria”, ou dos contos de fadas dos Irmãos Grimm. O Ranger Walker mais não é do que a fada da Gata Borralheira, um ser com toque de Midas, pronto a resolver os problemas de gente em aflição.
E qual é o problema, perguntam vocês. Não se pode sonhar um bocadinho? Claro que pode. Desde que se tenha consciência disso. Não levamos as peripécias da família Ingalls a sério, assim como sabemos não existirem fadas. Mas muitos acreditam no Walker! E acreditam que o mundo pode ser como o da série: nunca há dificuldade em distinguir o Bem do Mal, todos têm o seu papel bem definido na vida e, caso esta ordem seja ameaçada, há sempre um justiceiro que põe tudo no lugar, um justiceiro que nunca cai em tentação, nunca se deixa corromper, nem nunca comete abusos. Quando o Walker pega numa arma, dispara sempre na direcção certa e atinge sempre o alvo certo. Quando o Walker faz um juízo sobre uma pessoa, nunca se engana (e raramente tem dúvidas). O Walker só agride alguém que o merece, nunca perde a calma nem a paciência com outros. Não há dinheiro no mundo que leve o Walker a fechar os olhos a uma incorrecção, a um desvio que seja.
Estes sonhos transformados em realidade são aproveitados por manipuladores. Até há pouco tempo, os EUA tiveram um Presidente que convenceu muitos norte-americanos ser capaz de construir uma América à medida da série do Walker, um mundo onde não há lugar para desvios, onde todas as famílias vivem felizes e seguras para sempre, onde as crianças têm sempre paciência para ouvirem os sermões dos adultos e onde as mulheres, profissionalmente, têm o rigor da Procuradora Alex Cahill e, em família, são dóceis, cumprindo o papel que dela se espera (mas, sinceramente, alguém consegue ver a Alex Cahill despenteada e desmaquilhada a levar com os salpicos de óleo, enquanto frita peixe?).
«Casaram e viveram felizes para sempre» - este é o final de chave de ouro nas histórias da Carochinha. Na vida real, todas as famílias escondem os seus podres.