Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de março de 2012

Ler nas Entrelinhas

A conhecida editora Maria do Rosário Pedreira acusou-me de não saber ler nas entrelinhas. Tudo por causa de um post de sua autoria, que, a certa altura, dizia o seguinte:

«que a família não tinha hábitos de leitura, embora comprasse livros do Círculo de Leitores para decorar as estantes. E aqui acrescentou um detalhe fabuloso: que o pai uma vez lhe bateu por ele ter retirado o celofane que cobria um volume de uma dessas colecções (e, violência à parte, vejo nesse acto um respeito enorme pelo livro, que não se podia estragar de maneira nenhuma)».

Isto deixou-me desconcertada. Como pode a Dra. Maria do Rosário Pedreira classificar um acto destes de “respeito enorme pelo livro”? Então os livros são para enfeitar, ou para ler? Abri a janela dos comentários para pedir explicações: «Não percebi bem se está a ser irónica ao ver nesse episódio do celofane um acto de respeito pelo livro que não se podia estragar de maneira nenhuma.»

Resposta: «Não, não estava a ser irónica. Porque para certas pessoas que quase não sabiam ler o livro era sagrado e tocar-lhe poderia ser interpretado como profanação.»

Seguiu-se uma troca de impressões sobre analfabetos que sentem respeito pelo livro, de que só me apercebi mais tarde e, apanhada de surpresa, comentei: «Mas quem é que disse que o senhor era analfabeto? O post não é claro quanto a isso! Só diz que um pai bateu no filho, por ele tentar tirar o celofane do livro, pois o livro servia de decoração. Deve-se depreender daí que o senhor era analfabeto?»

E, nesta sequência, atrevi-me (ó, injúria; ó sacrilégio) chamar a atenção da famosa editora: «Então, devia ter-se explicado melhor. Dizer que "a família não tinha hábitos de leitura" não é a mesma coisa que dizer que era analfabeta».

A famosa editora passou-me um atestado de ignorância: «Quem lê nas entrelinhas não precisa que lhe expliquem tudo, lamento».
Não desarmei: «Nada aqui refere o facto de o pai ser analfabeto, pode-se interpretar para o outro lado: que compravam os livros, apenas para enfeitar a estante, apesar de saberem ler».

Houve, então, um senhor Anónimo que resolveu engraçar com a minha arte interpretativa: «Afinal não gosta só de interpretar, também gosta de distorcer. Bravo!» E presenteou-me com o mimo: «Sábia interpretativa».

Dei comigo a pensar: eu não acredito! Estou aqui num blogue de uma grande editora e não se aceita uma interpretação diferente de um texto? Então, uma das qualidades da literatura não consta das diferentes interpretações que permite? Ou isso não é válido para editoras famosas?

Mas o melhor estava para vir: o Sr. Anónimo acusou-me de «ler demasiado nas entrelinhas»!

OK, estamos conversados!

11 comentários:

  1. Cara Cristina,
    Ao acabar de ler este post, fico com a impressão que está a descrever uma ou duas situações que me aconteceram no passado recente... respeitantes à minha "arte".

    A ideia com que fico das pessoas que reagem a situações idênticas à que descreve é que não são tão "boas" quanto aparentam. Sei, por experiência própria, que quando se é "bom" no que se faz qualquer crítica ou opinião dissidente faz parte da diversidade intelectual. Geralmente (e também por experiência própria) a reacção hostil a qualquer opinião divergente é sinónimo de fraqueza de espírito assim como de arte.

    Cumprimentos,
    Luís Henriques

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  2. Cristina,

    Permite-me dizer o seguinte:

    Estás-te a dar ao trabalho de responder ou trocar palavras com pessoas dessas?

    Eu há muiiittoooo tempo que não lhes ligo pévia. Percebem tanto de literatura como eu percebo de física quântica. Logo, nem me ia dar ao trabalho de questionar o que essa senhora dissesse porque, simplesmente, não iria ler jóias dessas.

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  3. Lol,

    agora é que eu vi quem é.

    A vedeta!

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  4. Tantas palavras para dizer tão pouco e ainda se refugia nas entrelinhas?!

    Melhor leres posts de pessoas simples, modestas e humildes como eu, mas que escrevem coisas fantásticas!!!!! :):):)

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  5. Luís Henriques e Iceman, obrigada pelas vossas palavras simpáticas.

    O que me levou a insistir, foi a frase: «Quem lê nas entrelinhas não precisa que lhe expliquem tudo, lamento», que é quase o mesmo que dizer: se não sabes ler, vai aprender! Senti-me tratada com injustiça.

    Há pessoas que perdem o contacto com a realidade...

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  6. Exilado, isto foi quase ao mesmo tempo :)

    Obrigada :D

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  7. Olá Cristina
    Transcrevo aqui o meu comentário ao tal post:

    "Há uns tempos atrás resolvi abandonar os comentários e, como poderão ver, ninguém perdeu nada com isso.
    Por uma vez, esta, não estou nada de acordo com Maria do Rosário Pedreira.
    Nasci numa casa sem livros. A minha mãe morreu há pouco tempo e apesar de várias insistências nunca quis, quando adulta, aprender o que não pudera em criança: ler.
    O meu pai morreu com a antiga quarta classe. A minha mãe gostava, quando mais nova, de folhear um livro, de lhe sentir o peso, o cheiro. Era uma bíblia que hoje deve ter perto de cem anos (e não a encontro).
    Em minha casa só começaram a entrar livros quando iniciei a escola primária. Livros de estudo, claro está. Aos outros lia-os às escondidas e se por acaso os levava para casa era debaixo da camisola. Conheci talvez centenas de analfabetos. Nenhum que respeitasse os livros e os envolvesse em celofane. Conheci muita gente que, como diz num comentário o A.L.Pacheco, forrava as capas para os proteger (também eu detesto páginas dobradas ou sublinhados a metro). Também conheci alguns analfabetos mentais que precisavam de livros para enfeitar prateleiras e até uma vez fiz uma lista de títulos para um deles. Mas estes era (e são) outra espécie de analfabetos.
    As pessoas que conheço e que gostam e respeitam livros, usam-nos, tocam-nos, lêem-nos.
    Nunca os colocam numa prateleira envoltos em celofane como quem pões celofane sobre as flores de plástico para as proteger do pó. Não amam ou respeitam as flores de plástico como não amam ou respeitam os livros. Quando muito respeitam a pessoa que é dona dos livros, o que não parece ser o motivo do post.
    Mas por acaso não andaremos por aqui a falar em torno de um equívoco? É que os livros do Círculo de Leitores dos anos 70 tinham uma protecção de capa em material meio plástico meio celofane (que eu não faço essas distinções técnicas). Não será essa protecção, que de resto era uma capa, aquilo que envolvia o livro na prateleira?
    Esta foi uma intervenção suficientemente grande e talvez inútil e por aqui me fico."

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  8. João, já tinha lido o seu comentário, ontem, no Horas Extraordinárias, mas só de fugida. O problema é que eu pensei que o caso relatado no post da MRP se referia a um desses, como o João muito bem diz, "analfabetos mentais que precisavam de livros para enfeitar prateleiras". Chamei-lhe a atenção para isso, mas ela despachou-me com essa coisa das entrelinhas, o que achei injusto, pois, naquele texto, nesse aspecto, não há hipótese de ler nas entrelinhas. A não ser que se conheça as pessoas a quem ela se refere...

    Esse celofane que o João refere, que envolvia a capa dos livros do Círculo de Leitores, impedia de os abrir? Se sim, acho que é precisamente a isso que ela se refere. Mas está a ver como o texto dela é dúbio? Ela podia aceitar que foi menos feliz na sua escrita, não lhe diminuía o prestígio, pelo contrário.

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  9. Ontem, por duas vezes tentei uma resposta ao seu comentário e o blogger não deixou. Vamos lá a ver hoje.
    Em resumo, nunca conheci qualquer analfabeto que tivesse pelos livros um respeito maior que pela propriedade de um qualquer objecto. Guardava-os, se os tinha, com o cuidado igual ao que dispensava às outras peças que decoravam as prateleiras ou as mesas ou outra coisa qualquer. Conheci muitos analfabetos que manifestavam a sua pena de não terem aprendido a ler e manifestavam algum respeito pelo saber ler de quem o fazia. Mas o respeito não era pelos livros ou sequer pelo outro, mas pelo conhecimento que permitia ler.
    Por último, o texto não me parece nada dúbio, nem há sequer entrelinhas. Que houvesse a intenção de dizer, não dizendo, pelas entrelinhas, talvez. Mas o facto é que não há espaço para essas entrelinhas. Diz mesmo que o homem tinha um imenso respeito pelos livros e por isso os deixava embrulhados em celofane. As entrelinhas não foram construidas.

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  10. Não respondi a uma questão. Nos anos 70, os livros traziam uma capa plástica a proteger os livros, mas não me recordo que trouxessem outra protecção, muito menos em celofane. Nos últimos tempos eram protegidos por uma manga plástica, selada mecanicamente. Mas mesmo estes materiais não são aquilo a que nos anos 70/80 chamávamos celofane. É mesmo plástico vulgar de embrulho de revista ou livro. O plástico/capa mais antigo eram um pouco mais rígido e constituía de facto uma capa de protecção da própria capa. Mas só isso, porque o livro se abria como qualquer livro normal. Essa capa era destacável e com alguma frequência quebrava nas pontas.

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  11. Obrigada pelos seus esclarecimentos, João. Pois, o meu problema foi precisamente por achar que não havia entrelinhas para ler.

    Já mais alguém me referiu a dificuldade em deixar aqui um comentário. Não faço ideia do que se passa, sou alheia. Brincadeiras do blogger...

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