Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

10 de março de 2022

The Making of a Marchioness

  


Encontrei este livro em promoção numa livraria de Hamburgo (custou apenas 5 €). Não conhecia a autora, mas o facto de ter vivido nos fins do século XIX e princípios de XX, convenceu-me a comprá-lo, pois interessa-me a condição da mulher nesses tempos já quase modernos, em termos de industrialização, mas ainda tão tradicionais, na sua mentalidade. 

Já em casa, pesquisei sobre Frances Hodgson Burnett e constatei duas coisas interessantes: escreveu cerca de cinquenta livros, muitos deles, infantis, e o mais conhecido já teve nada menos do que quatro versões cinematográficas, com o título O Pequeno Lorde (Little Lord Fauntleroy, no original). A versão protagonizada por Alec Guinness e Ricky Schroder data de 1980 e, na Alemanha, tem transmissão televisiva assegurada todos os anos, na época pré-natalícia! Nunca vi o filme completo (ou talvez o tenha visto nos anos 1980, em Portugal, não tenho a certeza), mas sei o suficiente sobre ele para me parecer muito kitsch: um pequeno norte-americano viaja para Inglaterra, ao encontro do avô, que não conhece. Ora, este é um nobre que, em idade adiantada, resolve trazer para si aquele neto de mãe americana, seu único herdeiro, a fim de o educar em conformidade. E dá-se a transformação: a alegria e a ternura da criança derrete o coração do severo lorde inglês. Enfim, é um filme que faz as delícias das avozinhas alemãs, ajudando-as a aquecer o coração, num serão frio de dezembro.

Foi, por isso, já com algum preconceito que comecei a ler The Making of a Marchioness. E, de facto, o início não foi promissor. A personagem principal, Emily Fox-Seton, é uma mulher de trinta e poucos anos. Apesar de ter origem quase nobre e gozado de uma boa educação, vê-se sozinha, solteira e sem família, tendo de ganhar o seu próprio dinheiro (o que, na viragem do século, ainda não era comum). Mas ela tem uma ocupação aceitável para uma senhora: como tem bons modos e gostos, é solicitada por senhoras nobres para lhes tratar da decoração das casas, do vestuário, fazer-lhes as compras e dar-lhes conselhos. Emily Fox-Seton executa todas as tarefas cheia de prazer e vontade de agradar, esquecendo as suas próprias necessidades e desejos. Está sempre bem disposta e sabe ser discreta, se, por acaso, se encontra numa reunião social. É assim uma espécie de eminência parda, que nunca se catapulta para primeiro plano e, ao mesmo tempo, arranja sempre maneira de a sua indumentária não envergonhar ninguém, apesar de não ter muito dinheiro.

Todo este ambiente cor-de-rosa atinge o seu auge, quando ela, acompanhando uma senhora da sociedade, se vê num convívio da alta roda, numa mansão da província inglesa, durante vários dias. E, pasme-se, acaba por ser pedida em casamento pelo viúvo mais cobiçado da festa!

Não desisti da leitura, porque, no meio de tanto kitsch, achei interessante observar certos costumes da época e aperceber-me das mentalidades. E o facto de ela já ter casado a meio do livro, intrigou-me. Afinal, que melhor final para um romance deste género do que um matrimónio que faz de uma mulher pobre, acomodada, ingénua e aparentemente pouco inteligente numa das mais ricas marquesas das Ilhas Britânicas (sem nunca o ter almejado)?

Na segunda parte, o romance muda completamente de tom. Apesar do seu comportamento corretíssimo de gentleman, Lord Walderhurst é um homem extremamente frio, destituído de qualquer emoção. E, tendo negócios na Índia, não hesita em abalar para esse país, poucos meses depois das bodas, deixando a recém-casada grávida (sem ele aliás ainda saber), amargurada e sozinha numa mansão no meio do nada. Na sua solidão, a ingénua marquesa acaba por cair na influência de Alec e Hester Osborn, um casal que chega a tentar assassiná-la! Alec Osborn, um escroque aparentado com Lord Walderhurst, vê-lhe fugir a herança com a gravidez de Emily. 

The Making of a Marchioness torna-se então num romance lúgubre, quase de terror, com alguns contornos sobrenaturais. A autora transmite, com mestria, a crueldade dos Osborns e o horror em que passa a viver a sua heroína. E retrata ainda cenas de violência doméstica, pois, afinal, Hester Osborn apenas colabora com o marido, porque ele a tiraniza e espanca.

Concluindo: um romance bastante esclarecedor sobre a condição das mulheres naquela época, sujeitas aos humores dos homens, cuja falta de sentimentos conduz à negligência (no caso de Emily, que constata ter vivido muito mais segura e feliz quando era solteira e pobre) e à violência.

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