Não é novidade que Mobi Dick é uma obra
gigantesca em todos os sentidos. No entanto, é a negação de muito do que se
considera essencial para um bom romance. Li uma edição alemã (excelente
tradução), contendo uma análise (no final) de Daniel Göske, Professor de Teoria da
Literatura e de Literatura Norte-Americana na Universidade de Kassel, referindo
vários aspetos que eu já havia considerado, durante a leitura. Alguns exemplos:
a personagem de Queequeg, importantíssima no início, quase desaparece, assim
que embarca no Pequod, junto com Ismael (o narrador); a partir da
maneira como essas primeiras páginas estão construídas, somos também levados a pensar
estarmos perante um romance de aventuras, mas Melville cedo nos confronta com
descrições técnicas infindáveis, mais adequadas a obras de não-ficção; o final
abrupto não combina igualmente com as centenas de páginas anteriores a
explicarem pormenores. Terá Melville modificado o seu objetivo inicial, à
medida que escrevia?
No meio de todo esse mar de letras, frases, parágrafos
e capítulos, é, porém, admirável a quantidade de referências bíblicas e literárias,
assim como de figuras de estilo e a combinação de várias linguagens
específicas, como a dos baleeiros, da navegação, bem como a religiosa, a
científica e a lírica. A isto se juntam cenas de antologia sobre a relação dos humanos
com a Natureza, dos humanos entre si e aquilo que nos move. A própria
sobrevivência? Apenas lucro? O desejo de controlar a Natureza, ao darmos conta
da nossa pequenez? Razões de sobra para justificar o mito em que se tornou esta
obra, talvez a mais importante da Literatura Norte-americana.
Herman Melville descreve como ninguém a caça à baleia.
E conhecia ao pormenor a anatomia destes seres (descrevendo-a em muitas dessas
páginas infindáveis). Porém, à luz dos conhecimentos de hoje, notamos
ignorância em muitos aspetos. Em meados do século XIX, as técnicas de mergulho eram
ainda muito primitivas, exaustivas e perigosas. Resumiam-se, por isso, a
raríssimas tentativas, estávamos longe do mergulho “em série”, para não falar da
existência de máquinas fotográficas e câmaras de filmagem. Para Melville, a
vida abaixo da superfície das águas é um perfeito mistério. Muitas vezes, ele
se pergunta para onde mergulham as baleias, o que fazem lá em baixo, em que
mundo vivem. E ignorava igualmente o seu sistema fascinante de comunicação
através de sons, que se sabe hoje ser complexo e permanecendo, em grande parte,
misterioso.
Justiça seja feita ao autor: ele confere majestade e
dignidade às baleias, transmitindo-nos a contradição entre a nossa admiração
pelos animais e o desejo de os matar. Mas acaba por optar pela explicação mais
fácil o que, confesso, me desiludiu: as baleias são animais sanguinários, capazes
de afundar uma embarcação num ápice, é necessário aniquilá-las, a fim de que os
homens não corram perigo.
Ora, qualquer animal que pese algumas toneladas é
perigoso para os humanos. Principalmente, quando vê a sua vida ameaçada por
esses mesmos humanos. E, por mais que admire esta obra, dou comigo a
perguntar-me em que medida Melville aceitaria uma convivência pacífica estre baleias
e humanos.
No seguinte vídeo, rodado através de um drone, na
Argentina, é incrível a maneira delicada como a baleia toca no frágil caiaque
da formiga humana. Bastava-lhe um movimento descuidado com a sua barbatana para
dar cabo do sapiens. Mas não o faz. E nada por debaixo dele sem o
derrubar. Denota uma delicadeza e um cálculo impressionantes.
Muito gostaria de saber o que Melville teria a dizer
sobre esta cena. Será que a conseguia imaginar?
https://pt.euronews.com/2021/09/02/baleias-brincalhonas