E todos, de entre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadela, espreitavam o largo, que o sol das quatro horas dourava, por sobre os telhados musgosos da cordoaria. Do lado da Rua das Pegas, as duas Lousadas, muito esgalgadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos, ambas com guarda-sóis de xadrezinho desbotado, avançavam, estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas.
As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu estreado na missa, bolo encomendado nas Matildes, que os seus quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não descortinassem - e que a sua solta língua, entre os dentes ralos, não comentasse com malícia estridente! Delas surdiam todas as cartas anónimas que infestavam o distrito; as pessoas devotas consideravam como penitências essas visitas, em que elas durante horas galravam, abanando os braços escanifrados; e sempre por onde elas passassem ficava latejando um sulco de desconfiança e receio. Mas quem ousaria rechaçar as duas manas Lousadas? Eram filhas do decrépito e venerando general Lousada; eram parentas do bispo; eram poderosas na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois duma castidade tão rígida, tão antiga e tão ressequida, e por elas tão espaventosamente alardeada - que o Marcolino do Independente as alcunhara de «Duas Mil Virgens».
In "A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queirós
Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.
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9 de setembro de 2014
2 de setembro de 2014
Nada como ler os clássicos (12)
E, desanuviado, sentindo as imagens e os dizeres surgirem como bolhas de uma água represa que rebenta, atacou esse lance do capítulo I em que o velho Tructesindo Ramires, na sala de armas de Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenço e seu primo D. Garcia Viegas, "o Sabedor", de aprestos de guerra... Guerra! Porquê? Acaso pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o arvoredo, almogávares mouros? Não! Mas desgraçadamente, "naquela terra já remida e cristã, em breve se cruzariam, umas contra outras, nobres lanças portuguesas!..."
Louvado Deus! A pena desemperrara! E, atento às págimas marcadas num tomo da História de Herculano, esboçou com segurança a época da sua novela - que abria entre as discórdias de Afonso II e de seus irmãos por causa do testamento de el-rei seu pai, D. Sancho I.
In "A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queirós
Louvado Deus! A pena desemperrara! E, atento às págimas marcadas num tomo da História de Herculano, esboçou com segurança a época da sua novela - que abria entre as discórdias de Afonso II e de seus irmãos por causa do testamento de el-rei seu pai, D. Sancho I.
In "A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queirós
13 de agosto de 2014
A Ilustre Casa de Ramires
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Que bom haver Eça por descobrir! Sobretudo, quando ele mistura a crítica social do seu tempo com incursões medievais. Para mim, não podia ser melhor.
A personagem principal, Gonçalo Mendes Ramires, descende de uma família mais antiga do que o país. Mas carrega o peso dos antepassados como uma cruz. Tendo acabado os estudos em Coimbra, a que se segue a morte do pai, Gonçalo não sabe o que fazer na vida, a fim de igualar as façanhas dos avós. Mais uma vez, Eça de Queirós mostra-nos uma personagem vencida pelo tédio, irresoluta, à procura de uma ocupação que a realize. Este tipo de personalidade foi levado ao cúmulo n' A Capital e também Carlos da Maia apresenta sintomas.
Enfim, qual a melhor solução para atingir a glória? A política, claro! Gonçalo Mendes Ramires ambiciona tornar-se deputado, quiçá ministro. Um colega de curso aconselha-o a escrever sobre um seu antepassado medieval. Além de reabilitar o país, recordando de que raça são feitos os portugueses, trabalhará para a sua carreira política, já que: «a literatura leva a tudo em Portugal (...) de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento!»
O Fidalgo da Torre, como Gonçalo é conhecido, lá se põe a escrever a obra, consultando a História de Herculano. Atacam-no receios de plágio, ao basear-se num poema épico, mas desconhecido, de um seu falecido tio. Eça de Queirós mostra-nos as inseguranças e os conflitos de quem se atreve no mundo da escrita e liga, na sua crítica mordaz, o sistema político português, com os seus esquemas e compadrios, ao romancista romântico - as alusões a Alexandre Herculano e a Walter Scott carregam sempre um travo depreciativo.
Destaco um aspeto que me agradou particularmente: a compreensão pela mulher adúltera. Claro que o tema também é tratado n' O Primo Basílio, mas sem haver essa compreensão, até carinho e proteção, por parte de uma outra personagem - se bem que num tom paternalista; mas que se há de esperar de um homem da época?
Em suma: uma incursão deliciosa pela segunda metade do século XIX, como só Eça de Queirós sabe fazer, salpicada com incursões no reinado de D. Afonso II. Recomendo vivamente! Viva o Eça!
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