Um livro que se lê bem, de aventuras,
seguindo Pêro da Covilhã pela África e pelas Índias, à procura do reino do
Preste João. Tem igualmente uma forte componente de fantasia, já que, a 26 de
Março de 1487, o sol apaga-se subitamente no reino de Portugal. É isso mesmo! O
nosso país, tão conhecido pelo sol, fica sem ele. E D. João II envia dois
espiões em demanda da solução que restitua a luz ao país.
Paralelamente, temos a história de
Salvador, um embalsamador albino com um estranho passado, que procura também
uma luz, ou melhor, procura olhos que possam devolver a luz ao seu irmão
Mil-Sóis.
O cruzamento de fantasia com rigor
histórico levanta, contudo, alguns problemas. Há certas coisas que me soaram
anacrónicas, coisas que acho que não se podem relegar para o plano do
fantástico. Temos, por exemplo, o nascimento de Mil-Sóis com uns olhos tão brilhantes,
que cegam quem os vê. Apelidam-no de “criança com olhos de diamante”. Ora, Mil-Sóis
nasce no seio de uma comunidade de gente ignorante isolada nas montanhas.
Saberia gente dessa, no final da Idade Média, o que eram diamantes? Duvido
muito. Embora na Índia os diamantes já fossem conhecidos há dois ou três mil
anos, eles eram raríssimos e, na Europa, só se tornam mais frequentes a partir
do século XVIII. Imperadores, reis e nobres já conheciam os diamantes na Idade
Média, mas duvido que o povo comum alguma vez tivesse ouvido falar de tal, ou,
nesse caso, fizesse ideia do que se tratava.
Cito agora uma passagem da página 181,
referente à Índia:
«À sua passagem, as castas inferiores
inclinavam-se respeitosamente ou, então, atiravam bosta de vaca sagrada para
debaixo dos pés desses homens superiores. Nas Índias, pavimentava-se com merda
os caminhos que os reis ou os nobres percorriam para assim homenagear o seu
poder. As vacas eram, em boa verdade, mais bem tratadas e alimentadas que os
sem-dita que pertenciam às castas menores. Além de maltratada e desprezada, a
ralé não tinha qualquer esperança de fugir à sua triste condição, estando a sua
linhagem condenada a permanecer naquela ignomínia».
Ora bem, que Pêro da Covilhã se admire
de que nas Índias se pavimentasse «com merda os caminhos que os reis ou os
nobres percorriam», tudo bem. Já o seu julgamento em relação às castas me
parece mais de homem do século XX ou XXI. A Europa cristã de Pêro da Covilhã era
um mundo em que certa gente (na verdade, a esmagadora maioria da população) era
«maltratada e desprezada», sem «qualquer esperança de fugir à sua triste
condição». Também não devia ser motivo de espanto para ele que (certos) animais
fossem mais bem tratados e alimentados do que os homens e mulheres pertencentes
à arraia-miúda. Além disso, na Cristandade (leia-se Europa) da altura, duvidava-se
que os pretos tivessem alma (algo aliás referido no romance), por isso, era
justificável que se tratassem esses seres como animais, ou pior ainda. Este
anacronismo não se pode com certeza arrumar para o reino da fantasia…
Também não compreendi, nem achei
necessidade de, que a história de Pêro da Covilhã fosse contada na primeira
pessoa e a de Salvador na terceira. Dá a impressão de que Pêro da Covilhã seria
o contador de tudo o que se passa neste livro, mas ele não tinha hipótese de
conhecer a história de Salvador.
Dir-me-ão que são pormenores sem
importância para a maioria dos leitores. Pode ser. Mas este romance foi
finalista do Prémio LeYa em 2014, razão suficiente para sermos exigentes.
Reitero, contudo, que a leitura é agradável. E a descrição dos países visitados
por Pêro da Covilhã, assim como as suas aventuras, estão bem conseguidas.
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